30.3.07

Homens Notáveis I
Marcello Mastroianni


Para sempre será lembrado como galã. Não um galãzinho qualquer, desses que aparecem em seriado, estrelam meia dúzia de arrasa-quarteirões pra depois cair num ostracismo típico de filme B. Galã original, dos anos de ouro da galanteria cinematográfica. Italiano, como devem ser os de verdade. Supra-sumo, em suma, do latin lover. Dotado de um rosto terrivelmente comum, conforme disse uma vez. Talvez por isso o jeitão às vezes patético que o fazia também um mestre sutil da comédia. Galã que comete erros, deslizes, atos de covardia, fraqueza. Galã ordinariamente humano e por isso tão especial nesse universo de canastrões queixudos e imaculados. No teatro, foi dirigido por Luchino Visconti. No cinema idem, e ainda por outros grandes desta arte em que os italianos são considerados mestres. A lista, um menu de cantina: Antonioni, Fellini, Ferreri, Scola, De Sica, Monicelli. Não bastasse, celebrizou-se como par romântico da mulher mais linda de toda história do cinema: Sophia Loren. Morreu em 1996, aos 72 anos, com mais de 60 filmes no currículo. Com Catherine Deneuve em seu leito de morte, reza a lenda.


Pra conferir o homem naquilo que ele faz melhor basta aproveitar os últimos dias da mostra Marcello Mastroainni, no Santander Cultural. De hoje à segunda, algumas peças-chave de sua cinematografia. Em Um dia muito especial, de Ettore Scola, faz o papel de um improvável homossexual apaixonado por uma mãe de família em plena Itália de Mussolini. A noite é o filme emblemático da chamada estética da incomunicabilidade de Antonioni, Mastroianni e Jeane Moreau interpretam o casal em crise perambulando por uma noite vazia. A comilança, de Marco Ferreri, famosa comédia escatólogica sobre quatro amigos que se reunem para comer até a morte. Finalmente, o premiado La dolce vita, de Fellini, um dos maiores clássicos do cinema europeu, nele Mastroianni é Marcello Rubini, um jornalista especializado em fofocas que questiona o sentido de sua vida enquanto vaga por uma Roma de belas mulheres, crianças santas, príncipes, prostitutas e peixes gigantes.



Se ainda não viu, é a chance. Dá também pra pegar em DVD, mas ali, na penumbra da sala de cinema, sempre tem um charminho a mais. O galã merece.

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28.3.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 2 - A casa assassinada
Parte II

Já estávamos desesperados. Mais de três meses procurando casa pra alugar e só porta na cara. Enquanto isso, o dinheiro da rescisão sendo gasto aos poucos. O Marcos tinha sido o primeiro a largar o emprego e conseqüentemente a grana dele ia acabando antes. A situação do Ricardo ainda era mais complicada. A firma de óleo de soja estava sacaneando com ele e não queria fazer acordo nenhum. Se ele quisesse dar o fora que pedisse a demissão, o que reduziria sua grana em quase 50%.

O desespero era tanto que chegamos a cogitar planos absurdos pra colocar nosso projeto em prática. Um deles foi o de abrir o bar nos fundos de um outro bar. O Marcos tinha um cunhado que recém abrira um barzinho. Se chamava Violeta (o barzinho, o cunhado eu não me lembro) e ficava lá pelos lados da 24 de Outubro, mesas e cadeiras de madeira e palhinha, paredes coloridas, música ambiente tipo muzak e uns vasinhos de violeta espalhados por todos os cantos, coisinha assim bem meiga. Era uma casa grande de um piso com garagem pra três carros no fundo, onde poderíamos montar o nosso bar. O problema era que, além da excessiva meiguice (o nome Garagem Hermética viria logo depois porque, como bons fanáticos por Iggy Pop, eu e o Ricardo pensávamos em chamar o nosso inferninho de Funhouse, título do legendário segundo LP dos Stooges, bastante apropriado ao conceito que tínhamos de um bar, mas um tanto destoante do meigo Violeta.
Violeta/Funhouse, que tal? Perguntava o Ricardo.

Não sei, alguma coisa me soa estranha...),a localização era péssima e as condições de trabalho propostas pelo cunhado do Marcos, insustentáveis, algo como ter que dar 20% do nosso lucro, ainda pagar todas as despesas e ter dias e horário de funcionamento regulados. Podíamos ser jovens, mas não éramos burros. Nosso negócio não vingou e o próprio Violeta durou pouco. Poucos meses após abrirmos o Garagem, o cunhado do Marcos tinha um bar falido, pilhas de contas a pagar e um monte de vasinhos de violeta em casa.

Graças também à situação desesperadora, já estávamos tentando alugar qualquer casa que encontrássemos à disposição. Alguns desses imóveis não apresentavam as mínimas condições, mas, por pura falta de opção, somada à inexperiência e à ânsia de abrir logo o bar, a gente achava que poderiam servir de todo o jeito. Fazíamos planos e projetos, desenhando mentalmente o palco, o balcão e a pista de dança conforme a casa que estivesse pra alugar. Casas imperfeitas, mas prováveis, diante da nossa miopia ansiosa. Por sorte, as imobiliárias que suspeitavam de nossas intenções e aparência nos impediam de alugá-las. Hoje, depois de todo o know-how (ou qualquer outra expressão que signifique agüentar por oito longos anos a encheção de saco que é ter um bar e, mais importante, não ir à falência nem ser preso, processado ou exposto à humilhação pública e, ainda!, faturar alguma grana depois de tudo isso vendendo o bar pra um incauto – sim, a expressão correta é mesmo know-how), percebo que aquelas casas enquanto bares eram mesmo imperfeitas, improváveis, impensáveis e impossíveis: ou pequenas demais ou caindo de velhas ou – e o principal em se tratando de bares – em vizinhanças-família. Vizinhanças-família são o Inimigo Número 1 dos bares. Nelas, não há bar que resista. Pensando bem, a agente imobiliária gorda e loira em cuja mesa eu havia escarrado fizera um favor em não nos alugar o imóvel. Não duraríamos seis meses naquela casa da Ramiro quase Independência, casinha pequena, velha e colada a um prédio superfamília.

*

Foi o Marcos quem descobriu o casarão da Barros Cassal.

Encontrei a casa. Disse enquanto comíamos um à la minuta no Centro (alguns hábitos a gente custa a abandonar). Terminado o almoço passamos na imobiliária, pegamos a chave e fomos olhar a casa. Depois de tantas decepções eu já andava incrédulo.

Abrimos o antigo portão de ferro trabalhado e subimos, o Marcos e eu, os degraus da escada lateral que levava à porta. Lá dentro, janelas cerradas, eletricidade cortada, tudo era muito escuro, um breu, mas chamou a atenção a altura do pé direito. Naquele negrume que cheirava a mofo e poeira, mas no qual eu distinguia contornos de paredes, portas e corredor, o teto parecia um céu distante e sem estrelas olhando do alto os invasores do antigo sobrado. O Marcos, que já conhecia a casa, abriu os janelões e deixou a luz entrar. Caminhamos pelos aposentos fazendo o habitual desenho mental do bar e percebi que tínhamos de fato encontrado o lugar certo. Corri pela casa dizendo u-hu achamos achamos e, de repente, meu pé afundou no assoalho podre.

Mas vamos ter que trocar o piso, tá todo comido de cupim. Advertiu o Marcos, já fazendo os cálculos mentais de quanto gastaríamos na reforma.

Vai dar. Completou.

A casa era podre de velha. Em compensação, o aluguel, uma barbada, e o proprietário, o enigmático Dr. Kraemer, estava disposto a qualquer negócio para faturar mais algum naquele sobrado do início do século passado, caindo aos pedaços, que ele já alugava pra dois locatários. Uma lavanderia ocupava a parte térrea principal e um barbeiro, umas das salas da frente (o tradicional Salão Gomes, fazendo barba, cabelo e bigode de respeitosos cidadãos portalegrenses desde mil oitocentos e antigamente. Pobre Gomes!). O piso superior já tinha sido, dentre outras atividades, puteiro e pensão de moças, não necessariamente nessa ordem, ferragem e casa de massagem, não necessariamente nessa ordem. Iniciava por um hall que levava a uma saleta com janela, à esquerda, e, mais adiante, a um grande salão com sacada pra rua e corredor na outra extremidade. Pelo corredor chegava-se a duas peças interligadas por uma porta dupla, à cozinha e a um terceiro aposento, mais amplo, com três grandes janelas e um banheiro. Pra chegar à última peça, uma salinha com janelas pequenas, era preciso atravessar este banheiro. Para tanto, uma parede tinha sido construída dentro dele, dividindo-o em toda a sua extensão e formando um novo corredor, como uma miniatura do primeiro. Esse corredor em miniatura, alienígena à arquitetura original da casa, levava, à direita, à entrada do banheiro e, ao fundo, à salinha, de onde uma porta se abria ao pátio com duas árvores (uma delas um limoeiro) brotadas não sei se da terra cinzenta ou do próprio concreto daquele jardim underground suspenso. Uma escadinha de cimento colada ao paredão que limitava o terreno e corria em paralelo à casa por todo seu lado direito dava no pátio do primeiro piso e, a seguir, no portão de entrada, fechando o ciclo labiríntico do casarão.

Os vizinhos diziam que a casa era amaldiçoada. Tirando o centenário Gomes – ele mesmo quase um fantasma – nenhum negócio dava certo naquele ponto. Durante a existência do bar, alguns clientes com inclinações esotéricas chegaram a dizer que sentiam a presença de espíritos por ali. Espíritos atraídos por antigos vícios de álcool e fumo, povoando a casa junto aos vivos. Eu mesmo, que dificilmente poderia ser classificado de religioso ou místico, sempre que ficava sozinho na casa ouvia sussurros e passos misteriosos que me faziam crer que havia mais alguém ali. Numa ocasião tive também uma espécie de visão fantasmagórica. Durante uma das muitas e tediosas esperas pela entrega da bebida, atividade – se é que podemos chamar algo tão maçante de atividade – que me marcaria como das coisas mais chatas de toda a história do Garagem, uma imagem, algo sobrenatural, algo maconheira, misto de espiritismo e do filme Rebecca, a Mulher Inesquecível, me viria, pálida e perturbadora, envolta em brumas como num filme de terror: depois de ouvir os usuais passos e sussurros, caminhava no corredor em direção à peça das três janelas, quando tive a visão de uma bela mulher. Usava um longo vestido branco (igual àquele que a Joan Fontaine usa na cena do baile, causando um ataque no marido, o Lawrence Olivier) e estava de pé, ao lado de uma grande cama. Cortinas brancas esvoaçantes pendiam das três janelas. Como num sonho em que sabemos as coisas a priori, eu sabia que ela tinha sido a dona da casa e que aquele era o seu quarto. A visão durou apenas um segundo, a duração de um passo no corredor. Quando entrei na peça, só vi o de sempre: mesas e cadeiras, engradados de cerveja, copos plásticos amassados, baganas de cigarro e a sujeira da noite anterior. Rebecca já tinha desaparecido.

Mas naquele primeiro dia na casa, na primavera de 92, com o pé encravado na madeira podre do assoalho, os fantasmas não me preocupavam. As únicas questões que ocupavam meus pensamentos eram estritamente materiais e muito mais me afligiam. A casa era velha, necessitaria de muitas reformas, algumas imediatas. Mas a casa era grande, maldita, misteriosa, cheia de portas e possibilidades, quase um labirinto. Próxima a uma avenida movimentada, numa via de acesso à rodoviária, ao rio, às putas, num bairro nada família: nas ruas de baixo, cabarés e puteiros dividiam o espaço na ronda noturna com os butecos de pinga dos sobrados e prédios antigos; na esquina da frente, uma tradicional choperia servia filés e bebida gelada a notívagos mais abastados e, na avenida acima, uma lancheria fuleira vendia pastel, xis e cerveja barata.

Tirando os gastos imprevistos com as reformas, o resto era perfeito. Agora dependíamos apenas do interesse do proprietário. Pelo que o Marcos já tinha averiguado estava tudo certo, mas eu tinha meus receios, quase trauma, quando havia imobiliárias na jogada. No dia em que fomos entregar os documentos pra fechar o negócio, me preparei desde a rua, acumulando saliva e catarro na boca, caso ouvíssemos um não do agente imobiliário. Estava preparado pra cusparada terrorista quando o cara diz:

Tudo certo, amanhã vocês podem pegar a chave.

Tive que engolir tudo. Faceiro.

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26.3.07


PULP FRICTION PRODUCTIONS APRESENTA

::::[]PULP on the ROCKS[]::::
- A Pulp mais Rock ever!-Sábado, 31 de março, 23:30, na NEO!

A festa que trouxe o rock de volta ao OCIDENTE e a dança de volta pro ROCK completa 4 anos e, pra comemorar, faz um tour por casas clássicas de Porto Alegre, e agora chega a vez da NEO! A festa que mistura tudo com tudo vai caprichar no ROCK dessa vez, do IEIEIÉ ao NU METAL, passando pelo INDIE e NEW RAVE um passeio por tudo o que as caixas de som suportarem. Com aquele bom humor que nos é familiar...

Line up PULP(pista KEO):
EL Grán Trio Frictura!
DREGUZ
RAFAHELL
LEO FELIPE

Line up FRICTION(pista SCAPE):
YOG MARS(ClubKids)
RODKA(Trio Flamingo)
DANIHYDE (POARoqueTown)

No Telão: filmes B e clipes incríveis!
Ingresso:Até 1h R$10Após 1h R$15
Dia 31 de março, sábado @ Club Neo - Plínio 427*

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O resumo dos últimos acontecimentos

(Crônica do Talk Radio de 23/03)

1) Crônica da última sexta interrompida por súbita pane no computador

2) Já era mesmo hora de jogar no lixo essa carroça

3) Certas coisas não têm preço, as outras parcela-se em seis vezes

4) Águas passadas, já era

5) Rapidíssimas da Semana:

Segunda-feira:: Maria Antonieta
Com um delay aproximado de cinco meses e três dias (o filme estreou no Brasil na sexta) vejo o aguardíssimo terceiro filme da nova darling da indústria cinematográfica Sofia Coppola. A abertura de letras cor de rosa sobre fundo negro ao som nervoso do Gang of Four, o minueto new wave no luxuoso baile de máscaras da corte Luis XV, a beleza européia de Kirsten Dunst interpretando a lost little girl que virou rainha. Sofia Coppola construiu um filme exuberante, porém vazio. Intencionalmente vazio. Uma estética da superficialidade. Nada mais contemporâneo. Maria Antonieta é um filme sobre um mundo de aparências, que enganam, como diria o senso comum. Já alguém mais esperto como a Sofia (ou o Leminski, por exemplo) diria que pelos menos elas aparecem. Não bateu a simplicidade cool de Lost in Translation. Aumentou a expectativa pelos próximos trabalhos desta promissora menina. Que não demorem tanto, ao menos.

Terça-feira:: Açorianos de Música
Confirmou sua tradição de equívocos ao conceder uma menção honrosa à Cachorro Grande. A própria idéia de honra é tão estranha ao rock quanto uma medalha por bom comportamento. Depois me explicaram: Menção Honrosa como Destaque Nacional. Ah, claro, além de equivocado provinciano, como sempre.

Quarta-feira:: Pet Shop Boys
Um show tecno-pobre. Local e público também não contribuíram. No palco, lona branca servindo de telão, barras de neon falhadas, dançarinos meia boca e som idem. Um jeitão inegável de fundo de quintal. De Londes talvez, mas ainda assim quintal. Pior ainda depois do DVD da Confessions Tour , que todo mundo viu, 5 pila na calçada. Num espaço menor talvez as coreografias e projeções não parecessem tão toscas . Ali no Gigantinho fedendo a fritura e com pelo menos 50% do público que os promotores do evento esperariam ficou estranho. Ponto pra voz de Neil Tennant: que nem no disco. De olhos fechados parecia até o Fim-de-Século.

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21.3.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 2 - A casa assassinada

Parte I

A família não recebeu muito bem a notícia. Mas como o pai morava longe e não lhe cabia o direito de opinar, família mesmo era só o vô e a mãe – que choramingava, reclamava, advertia, mas, no fim, influía pouco nas decisões:

Mas como tu vai largar o emprego no banco pra... pra... pra abrir um bar?

Emprego tá tão difícil hoje em dia.

O que o teu vô vai pensar?

Vendo que suas admoestações não levariam a lugar nenhum, ela achou melhor dizer pro vô que eu tinha sido demitido do banco. Minha mãe sempre foi uma mentirosa compulsiva e era uma merda porque ela passava todo o tempo na iminência de ser desmascarada. Quando aplicou a lorota no velho, ele ficou indignado e cogitou ligar pro seu Gonçalves, um gerente do banco que ele conhecia, pra saber porque tinham demitido o seu neto querido. Meu vô fazia um tipo Don Corleone, um careca temperamental, muito bem humorado num extremo e altamente severo no outro, de uma rigidez de caráter exemplar, mas muitas vezes cabeça-dura, reacionário e impiedoso e, quando contrariado, dado a rompantes de fúria em que esculhambava, pra usar uma expressão muito sua, quem quer que ousasse contestar suas determinações. Nunca aprovou a idéia do bar, sempre detestou o Ricardo, mas foi figura fundamental na história do Garagem: anos mais tarde, eu iria recorrer a ele prum empréstimo (nunca pago, forçoso lembrar) que seria empregado na primeira grande reforma feita na velha casa do número 386 da Barros Cassal e que nos salvaria da primeira das muitas crises que enfrentaríamos.

No banco, a recepção também não foi das mais positivas.

Não vai durar seis meses. Dizia o Bernoto, um colono pelego que chefiava o setor de cobrança, pra Ester, secretária do diretor regional, uma morena peituda que dava pra chefia inteira.

Desiste disso, meu filho, já vi tanta gente largar emprego pra abrir locadora, farmácia, padaria, restaurante. Sempre se arrependem. O seu Itamar, um negão manhoso e malandro, sub-diretor geral, que tinha as gavetas da escrivaninha cheias de revistinhas pornô e, nos intervalos e horas do almoço, comia as meninas da limpeza na salinha do ar condicionado que ficava no quarto andar, ao lado do almoxarifado.

Mas nada poderia me impedir. Fiz um acordo com o banco, que me demitiria sem justa causa, estando eu comprometido a não entrar na justiça trabalhista pelas inúmeras horas extras não remuneradas e série de outras irregularidades a que me submetera nos últimos três anos. Lembro do dia em que fui no sindicato assinar a rescisão do contrato, tive uma diarréia horrível. Seria cagaço ou uma imagem metafórica da minha posição em relação aos conselhos dos meus colegas de banco e ao banco propriamente dito? Eu cagava e andava pra aquela porra de instituição, mesmo assim iria cumprir a minha parte do acordo, afinal, por mais filhas-da-puta que fossem os diretores, chefes, sub-chefes, secretárias e todo o ambiente de trabalho em geral, eu era um cara de palavra.

A grana viria em três parcelas. Fundo de garantia, salário desemprego e não-sei-mais-o-quê. Daria pra aplicar no bar e ainda segurar a onda por um tempinho até que o negócio engrenasse. O mais importante no momento era achar uma casa pra dar início ao trabalho, mas justamente aí estava a maior das dificuldades: nenhuma imobiliária queria alugar uma casa pra gente. Em geral imobiliárias vêem com desconfiança locatários que almejam abrir bares noturnos em seus imóveis. Alguns anúncios já vinham com instruções precisas quanto a este tipo de locação. “Menos para saunas e bares noturnos”. O problema se agravava quando os locatários eram três jovens entre 18 e 24 anos de idade com aspecto de roqueiros. Intenções e aparência nada confiáveis segundo os preceitos do setor imobiliário. Era um saco. Muitas vezes, a negativa vinha de cara.

O imóvel já foi locado. Dizia a moça no guichê de informações.

Em outras, quando pensávamos que teríamos a casa pra nós – toda a papelada na mão, assinaturas dos fiadores, contrato social da empresa, documentos do locatário – a negativa vinha sorrateira, lá no finalzinho, no último minuto, faltando a última rubrica.

O proprietário não está mais interessado.

Numa dessas ocasiões não pude conter a fúria impulsiva-hormonal própria da idade, diante da cara de pau da mulher ao dizer que a casa na Ramiro quase Independência que a gente paquerava havia 15 dias e que finalmente iríamos alugar (eu, nervoso, com o cabelo emplastado de gel como nos dias do banco, bleiser de lã, segurando uma pasta cheia de cópias autenticadas, certidões, segundas vias, firmas reconhecidas e todas essas pequenas coisas que só fazem atordoar o espírito das pessoas sensíveis, suando frio, taquicardia, louco pra sair dali correndo e fumar um, mas pensando é agora, é agora, é agora...) não estava mais à disposição pois o proprietário tinha decidido alugá-la a um parente próximo, primo (!), creio. Minha única reação foi fungar como quem engole seco, mas, ao invés de engolir seco, cuspir molhado todo o catarro na mesa da tal da mulher, uma agente imobiliária gorda e loira, de idade indefinível pra mim (qualquer um acima dos trinta me parecia infinitamente velho). O frango veio acompanhado de um monte de palavrões, algo como gorda escrota vai dá cu sua vadia mal comida de merda, e ela nem teve tempo de reagir enquanto eu voava da sala pronto pra jogar tudo pro espaço e pensando em que merda eu tinha me metido mas lembrando da mãe e dos Bernotos e sub-Bernotos e gerentes e chefes e secretárias e até as meninas da limpeza:

Não vai dar certo.

Então tinha que dar. E eu segurei a onda e a papelada junto ao peito e fui correndo fumar um pensando tem que dar.

(continua)

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19.3.07

15 Great Songs

(A lista abaixo foi publicada, há pouco mais de um ano, no extinto site Jornal do Rock RS, editado lá em Nova Petrópolis pelo Jacques, baterista da banda Piazitos Muertos. Ele me pediu que listasse 15 músicas prediletas. Obviamente incluí uns textinhos junto. Provavelmente se fosse fazer essa lista hoje, ela sairia um pouco diferente.)

“IF YOU SEE HER, SAY HELLO” / BOB DYLAN
Citação (não literal) do próprio autor acerca da predileção de muitos de seus fãs por este álbum de 74: “Não sei como as pessoas podem apreciar dor”. Mas é isso aí mesmo, a dor alheia, que afinal de contas podia muito bem ser nossa (a tal da empatia), faz sofrer em regozijo o nosso lado masoquista que dá pulinhos, sangrando faixa a faixa. Canções de amor sempre batem mais forte. E essa é especialmente bela e doída. O sujeito que apresentou o primeiro baseado pros Beatles expelindo do fundo do peito, de um lugar que certamente não são os pulmões: “And though our separation/ it pierced me to the heart/ she still leaves inside of me/ we’ve never been apart”.


“IT’S FUCKING BORING TO DEATH” / DEFALLA
Edu K, Flu (que era Flávio Santos na época), Castor e Biba: uma das melhores bandas do mundo. Uma vez fui à Tramandaí de carona pra ver um show dos caras. Isso no tempo em que eu tinha disposição pra essas coisas. “It’s fucking boring", música do segundo disco do grupo, é total nostalgia. Levada redondinha com letra escrota (com direito à citação de filme do Stanley Kubrick) ao melhor estilo Chainsaw Massacre. Pop perfeito.

“BLANK GENERATION” / RICHARD HELL & THE VOIDOIDS
O cara mais cool do pedaço. O creme de la creme do CBGB em 77, ano da melhor safra. Ex-baixista do Television e dos Heartbreakers (do falecido Johnny Thunders), em carreia solo-relâmpago com os Voidoids, puro punk-jazz. A música em questão, vocais rascantes e guitarredo esquizóide, virou até filme, além de definir a inquietação (ou o tédio) de uma geração inteira a partir de seu primeiro verso, aqui em tradução livre: “Eu tava querendo sair fora antes mesmo de ter nascido”.

“I’VE GOT YOU UNDER MY SKIN” / FRANK SINATRA
Par perfeito: o melhor compositor de música popular do século XX e o maior intérprete de todos os tempos. Cole Porter é o cara! E Sinatra um exemplo de classe em que todos os homens deveriam se espelhar. Classe pra cantar, atuar, beber uísque, se envolver em negócios escusos com a máfia, levar um pé na bunda do animal mais belo do mundo (a Ava Gardner, conforme a definição do Hemingway) e amargar um fundo do poço em que até latiu numa gravação bizarra do início dos anos 50. Não esta, obviamente. “I’ve got you under my skin” é a volta por cima no maior estilo. Só pra quem tem classe.

“CHANGES” / DAVID BOWIE
Tarefa difícil escolher uma de Mr. David Jones (a alcunha é a marca da faca que lhe vazou o olho). Fico com a faixa de abertura de um dos seus álbuns mais bonitos e confessionais, a particularmente emblemática “Changes”, com a célebre premonição final pra roqueiros com síndrome de Peter Pan: “Look out you rock’n rollers/ pretty soon you’re gonna get older”.

“STRAIGHT TO HELL” / THE CLASH
The best of them all. A banda a que eu queria ter assistido na máquina do tempo: o primeiro dos 16 shows que fizeram em Nova Iorque no verão de 81. O Clash foi a banda mais punk de todas porque superou o punk e buscou inspiração no jazz, no rap, no reggae, no funk... “Straight to Hell” sintetiza toda essa, digamos, busca.

“BILLY, THE MOUNTAIN” / FRANK ZAPPA
Outra daquelas difíceis: escolher uma das centenas de músicas desse cara que tem na discografia mais de 60 álbuns. Então chuto o balde e fico com os quase 25 minutos de “Billy, the Mountain”, espécie de rock-novela sobre uma montanha que sai de férias com a grana dos royalities de cartões postais e fotos em que aparece. Mister FZ e seus Mothers contavam nessa época com o auxílio, mais cômico que luxuoso, da dupla Mark Volman & Howard Kaylan, fundadores da banda pop sessentista The Turtles (Nota pedante: Volman & Kaylan também são aqueles backing vocals agudinhos nos discos Electric Warrior e The Slider, do T.Rex).

“WE’VE ONLY JUST BEGAN” / THE CARPENTERS
Essa música era tema de um comercial de TV nos anos 70. Mas era tão bonita que os Carpenters decidiram regravá-la, transformando-a num dos carros-chefe de seu segundo álbum, Close to You, de 1971. Curtis Mayfield, no disco Curtis/Live!, lançado no mesmo ano e gravado (ao vivo, of course) num buraco underground chamado Bitter End, em Nova Iorque, também regravou “We’ve Only Just Began” numa versão mais crua e low-fi que só não está aqui porque a Karen Carpenter é demais.

“LOVE IS IN NEED OF LOVE TODAY” / STEVIE WONDER
Ver Stevie Wonder em Porto Alegre foi realmente muito emocionante, apesar do show do Gil. “Love is in Need Of Love Today”, faixa de abertura do álbum duplo de 76, Songs in The Key of Life, tido como um dos melhores da discografia do talentoso ceguinho, estava no set list desse show.

“MALEVOLOSIDADE” / SUPERGUIDIS
Pra mim (e pro Gus, um amigo de quem eu roubei essa teoria) a música dos Superguidis está ligada a obras como o livro O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, ou o disco Brighten the Corners, do Pavement. O fator comum sendo uma certa ingenuidade por parte dos personagens/narradores daqueles pequenos devaneios lúdicos e melancólicos, coincidentemente duas palavras proparoxítonas, que são as canções. E o melhor de tudo é que os Caufields e Malkmuses dos Superguidis se expressam em português, e melhor ainda!, num português urbano que está aí nas ruas e nas bocas. “Malevolosidade”, com seu neologismo romântico de white sensitive guy, é típico exemplo da poética dos caras.

“SEVEN NATION ARMY” / THE WHITE STRIPES
Um novo clássico. Pra incluir naquelas listas clichê tipo Melhores de Todos os Tempos, ao lado de “Satisfaction”, “Stairway to Heaven”, “Smoke on the Water”, “Bohemian Raphsody”, “Smells Like Teen Spirit” etc.

“GIGANTIC” / PIXIES
Outra nostálgica, da mesma época em que eu tinha disposição pra ir à Tramandaí de carona assistir ao Defalla. Comprei o Surfer Rosa numa loja que hoje é aquela Multisom da Galeria Chaves. O vendedor tirou o vinil lacradinho do estoque. É o meu disco predileto dos Pixies. Adorava ouvir a Kim Deal nos vocais de “Gigantic”. Mais tarde li numa revista importada, ela dizendo que odiava white sensitive guys. Fiquei tão triste.

“EU E MINHA EX” / JÚPITER MAÇÃ
Os dedinhos do atonal Marcelo Birk (são dele os arranjos) contribuem para a realização de um dos momentos mais felizes do álbum A Sétima Efervescência, hoje transformado em objeto de culto. O adolescente cujo dilema existencial era a menstruação da namorada cresceu e é capaz de criar cenas de uma beleza cinematográfica, tais como a da ex dividindo o guarda-chuva pelas ruas da cidade. Porto Alegre redesenhada num cenário da Nouvelle Vague.

“HAPPINESS IS A WARM GUN” / THE BEATLES
Beatle predileto entre todos Beatles prediletos, Lennon era um cara que sabia da importância de uma boa letra pra uma boa canção. Mas o quesito conceitual não é desculpa pra incluir “Happiness is a warm gun”, uma mini-suíte que contém muito da produção dos earlys 70’s em menos de três minutos num disco de 1968.

“PABLO PICASSO” / THE MODERN LOVERS
Em torno dos Modern Lovers há uma aura de culto: os caras nunca lançaram um álbum oficial, tendo gravado duas demos produzidas pelo ex Velvet Underground John Cale, dissolveram a banda logo após o primeiro contrato e acabaram se transformando em um dos grupos mais influentes das últimas três décadas. Liderados pelo enfant terrible Jonathan Richman e tendo em sua formação o futuro Talking Head Jerry Harrison, os Lovers precederam o movimento punk em pelo menos três anos (sua primeira demo é de 72) e foram regravados por gente como David Bowie e os Sex Pistols. Em “Pablo Picasso”, Jonathan Richman nos premia com todo seu wit e sua nonchalance, coincidentemente duas palavras gringas bacanérrimas, no genial verso de abertura: “Some people try to pick up girls and get called asshole/ This never happened to Pablo Picasso”.


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16.3.07

Society of Cutting Up Men
(Crônica não lida no Talk Radio de 16/03)
Eu não saberia dizer a posição do buraco. Sei que é maior. Uma cratera. Quase vinte anos após as escavações que estabeleceram as bases do feminismo, feitas meticulosamente pela Simone de Beauvoir em seu O Segundo Sexo, vem uma mulher e arromba tudo, explodindo estruturas até então intactas com uma carga de palavras raivosas, divertidas e tão contraditórias quanto todas as pequenas coisas que realmente valem a pena nesse mundo.

O título do petardo é SCUM Manifesto. O nome da autora do atentado: Valerie Solanas.

Valerie Solanas teve em seu currículo muitas atribuições. Foi atriz, prostituta, estudante universitária, escritora, mendiga em Greenwich Village, lésbica, viciada em drogas. Mas o que a tornou célebre foram os disparos que desferiu contra o papa da pop art Andy Warhol, em 1968. O feito rendeu música e filme (“Andy’s Chest”, composta por Lou Reed e gravada pela primeira vez com o Velvet Underground, e I Shot Andy Warhol, filme da canadense Mary Harron). Os tiros também possibilitaram a publicação de seu manifesto, escrito um ano antes.

O livro é um manual de guerrilha, elaborado num rigor lógico tão exato quanto o raciocínio de um camicase. SCUM. Em inglês: escória. Para Valerie Solanas, a abreviação de Society of Cutting Up Men (algo como “sociedade para fazer quisado dos homens”). O que esta mulher nos propõe nas pouco mais de 50 páginas de seu manifesto é, caros leitores, nada menos que a destruição do sexo masculino. Algo que a Simone sequer cogitaria. Um sexo é imprescindível do outro, diria a ponderada filósofa. Já a Valerie, louca em fúria, diria bancos de esperma.

Contudo, para conquistar seu objetivo ela precisa também subverter o governo, eliminar o sistema monetário e instituir a automação completa, abolindo completamente o trabalho – o que no final das contas, convenhamos, talvez valha a pena. A Valerie não é nada boba. Ela sabe que propriedade e patriarcado andam de mãos dadas. Para ela, também as teorias freudianas são balela: não existe inveja do pênis e sim cobiça pela vagina. O homem é um animal grosseiro, obcecado por sexo e morte, “capaz de atravessar um rio de catarro ou de andar um quilômetro com vômito até o nariz se acreditar que no final terá uma vagina amigável à sua espera”.

Diferente da Simone, que defendia a igualdade entre os sexos, Valerie afirma que a mulher é um ser superior. Os machos são fêmeas incompletas, aberrações genéticas que não merecem viver. Os únicos poupados na revolução SCUM seriam aqueles pertencentes ao chamado Corpo Auxiliar Masculino, ou seja: “homens que matam homens; biólogos que trabalham em programas construtivos; escritores, redatores, editores e produtores que disseminam e promovem idéias propícias à realização dos objetivos do SCUM; bichas que por seu exemplo fulgurante incentivam outros homens a se desmasculinizar; homens que estão sempre jogando tudo fora, como dinheiro, coisas, serviços” e assim por diante.

Já os primeiros no paredón da Valerie seriam os estupradores, políticos, cantores e músicos ruins, todos os membros das forças armadas, artistas trapaceiros, corretores da Bolsa de valores, DJs, magnatas, e todos os homens do setor publicitário – o que me faz novamente pensar que talvez a revolução SCUM não seja mesmo uma má idéia.

O tiroteio de Valerie Solanas atinge também as colaboracionistas. Tão desprezíveis quanto os homens são as mulheres masculinizadas subservientes ao Grande Pai. E ainda sobram balas pra Grande Arte, a educação superior e toda e qualquer autoridade.

Valerie Solanas morreu louca, pobre e sozinha. Como muitos expoentes de sua geração, como diria o Allen Ginsberg. Não conheceu aquilo que a gente costuma chamar de bom senso. Viveu sem glamour. Lúcida como um suicida.

Deixo aqui uma frase de sua artilharia. Entre o deboche, a premonição e o epitáfio:

“(...) o macho está, pouco a pouco, eliminando a si próprio. Além de se dedicar às clássicas guerras e aos tradicionais tumultos raciais, os homens estão cada vez mais se tornando bichas ou se destruindo com as drogas. A fêmea, queira ou não queria, acabará assumindo totalmente o comando, se não por outra razão, porque não terá alternativa: o macho, para todos os efeitos práticos, não existirá.”

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14.3.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE (ou O Livro do Garagem)
"O Garagem era a Fantástica Fábrica de Chocolate das drogas"
(A genial frase do meu ex-sócio Ricardo inspira o titúlo deste livro que provavelmente nunca será finalizado. Comecei a escrever essas, digamos, memórias em 2004, logo após o lançamento do "AUTO". São 29 capítulos (dos quais concluí apenas 13), divididos em 4 partes: Early Days (1991-93), Hard Times (1994-95), Renascença (1996-98) e Finale (1998-2000), que recontam a trajetória deste fenômeno da chinelagem chamado Garagem Hermética. É uma narrativa super pessoal, muito mais comprometida com a literatura do que com a verdade dos fatos. Ainda assim, estão lá personagens clássicas da noite garageira, causos tão bizarros quanto verídicos e queimações de filme de toda sorte. A partir de hoje e semanalmente, os capítulos serão publicados aqui neste Foguete.)
Capítulo 1 - Ab ovo

Começa pelo começo.

Digo porque poderia começar pelo meio. O narrador-protagonista em plena festa, bar apinhado de malucos, luz estroboscópica, som a milhão e a história sendo contada em idas e vindas através do tempo.

Ou pelo fim. Tudo acabado, bar vendido e um longo flashback em preto-e-branco ou a história em retrocesso, projetada de trás pra frente como num filme surrealista.

Mas não. Começa pelo começo.

Minto. Antes: pré-ovo, pré-gestação, namoro, paquera. E então pedido, proposta, proposição, propositura.
E depois de desvirginado foi foda.

*

Eu era um bancário infeliz com uma bela coleção de discos e o cabelo comprido emplastado de gel e penteado pra trás (não podia usar cabelo comprido no banco então eu disfarçava). Nas horas vagas fumava uns baseados, lia, saía na noite, fumava uns baseados, ia ao cinema, fumava uns baseados, escutava música, fumava uns baseados e, dentre outras atividades culturais e mais uns baseados, atacava de produtor (leia-se que eu escrevia e entregava os relises, colava cartazes, distribuía panfletos, carregava equipamentos e outras chatices mais) da banda do Ricardo, meu amigão.

Conheci o Ricardo numa viagem pro litoral, era feriado de Navegantes. Eu estava na saída da cidade com a Debbie, a minha namorada na época, pedindo carona pra praia quando ele passou no carro de uns amigos (dele) e ofereceu uma (carona). Ele já conhecia a Debbie de outros carnavais – Navegantes, no caso – nos viu na estrada, eu com cara de tédio e a Debbie com o dedo em riste, mochilas no chão do acostamento, e pediu pro cara que dirigia parar. Só tinha lugar pra mais um no carro e a Debbie foi com eles. Consegui uma carona logo depois (na verdade, foi um semi-conhecido que ia de ônibus mas acabou descolando uma carona e me deu a passagem. Anos mais tarde esse sujeito bateu na minha casa pra mendigar um baseado e eu disse cai fora e ele me jogou na cara: aquela vez eu te dei uma passagem pra Capão, seu filha-da-puta-malagradecido!).

Seria um típico feriado adolescente. O apartamento de veraneio do meu avô liberado e eu tinha convidado uns amigos. O combinado era que todo mundo se encontraria na rodoviária de Capão da Canoa, cidade praiana das mais deprimentes dentre as deprimentes cidades praianas do litoral sul, mas, em se tratando de cidade com apartamento liberado longe dos cuidados e olhos dos pais, transformava-se no lugar perfeito prum bando de adolescentes sedentos por sexo, drogas e auto-descobrimento auto-descobrirem-se. Cheguei na rodoviária e o bando já me esperava. A Debbie me apresentou ao Ricardo e a um outro cara que estava com eles, o dono do carro. Perguntou se não podiam ficar lá no apê do meu avô também.

No problem, i guess. Onde dormem cinco, dormem sete.

E foi assim que conheci o Ricardo. Ele fazia um curso de pára-quedismo e tinha ido dar uns saltos em Capão, onde tinha um aeroclube. Um ruivo que saltava de pára-quedas, meio superdotado, que trabalhava com computadores numa época em que pouca gente tinha computador e que seria o meu parceiro nos próximos dez anos na viagem fantástica que foi o Garagem Hermética. Logo no primeiro dia eu já tinha simpatizado com o cara. Principalmente quando, no caminho pro apê, ele sugeriu, à vista de uma sapataria, que comprássemos uma latinha de cola pra cheirar à noite. Pra um jovem toxicômano como eu, nada poderia parecer mais simpático.

O feriado transcorreu como deve transcorrer um feriado adolescente longe dos pais: vômitos, gritarias, desmaios, comas alcoólicos, queimação de filme com os vizinhos e, num paroxismo de demência suicida inspirada pelo efeito dos inalantes, a tentativa de me atirar nu pela sacada do apartamento. A viagem também foi muito marcante pro Ricardo e pro amigo dele porque uma menina morreu durante um salto no aeroclube. Tinha muito vento e ela não conseguiu operar direito o pára-quedas. Acabou caindo sobre os fios de um poste de luz e foi eletrocutada. Acho que os dois nunca mais saltaram depois disso.

De volta à cidade, passei a encontrar o Ricardo regularmente. Ele freqüentava os mesmos lugares que eu: o Lola, o Fim de Século, o Ocidente, a Lancheria. Além disso, ele tinha uns óculos escuros descolados, uma câmera fotográfica e ainda tocava guitarra, que pra mim era o mais legal. O fato era que eu queria desesperadamente me infiltrar no maravilhoso mundo do ronquenrol e, a despeito do primeiro convite ter sido pra ser o produtor e não vocalista da banda do Ricardo, não pude recusá-lo. Eu não tocava nada mesmo. Não me restavam muitas opções. A banda chamava Brigitte Bardot e além dele na guitarra (purple, bizarra, réplica de uma guitarra do Prince que já tinha sido do Edu K na fase em que ele imitava o Prince) tinha um tecladista, um vocalista (que eu achava péssimo, por óbvias razões), uns irmãos muito estranhos da Restinga, fissurados em Alice in Chains e Soundgarten, sempre de camisa de flanela, que tocavam baixo e guitarra, e o Marcos. O Marcos tocava batera e era colega de trabalho do Ricardo numa empresa que produzia óleo de soja. Um cara-mais-velho de uns 24 anos, idade que eu – no esplendor dos meus teens – achava o cúmulo da velhice.

A sede da empresa de óleo de soja ficava no centro, pertinho do banco onde eu trabalhava. Depois do expediente, o Ricardo sempre aparecia e a gente pegava um filme no Ponto de Cinema, uma sala bacana que pegou fogo depois, mas que, na época, final dos 80/início dos 90, só passava uns filmes cult tipo mostra expressionismo alemão ou ciclo Jim Jamursh ou retrospectiva Wim Wenders ou festival Hitchcock. Era fatal: seis e cinquenta e poucos chegava o Ricardo enquanto eu passava as últimas mensagens na minha – tão ruidosa quanto anacrônica – máquina de telex, aberração mecânica que eu operava com perícia e destreza, diariamente da uma da tarde às sete da noite, repassando contratos, minutas, requerimentos e afins, sentado de frente pruma janela que dava pra parede do edifício do lado e pensando que era bem melhor quando eu era boy que pelo menos eu dava umas voltas. O Ricardo chegava e a gente fechava os baseados que iríamos fumar antes do cinema. O crime era cometido atrás da Santa Casa, onde hoje tem um complexo hospitalar novo, supermoderno, só pra clientes particulares ou com plano de saúde. Antes, o terreno era só um estacionamento pros professores e alunos da Faculdade de Medicina e um pico tranqüilo pra se fumar um baseado antes do cinema.

Ou ele pintava no banco com o Marcos e a gente ia lá pra casa ouvir um som e escrever os relises da banda – sempre cheios de frases feitas e clichês medonhos como “riffs psicodélicos”, “grooves envenenados” e coisas do gênero. A gente também costumava almoçar em restaurantes de à la minuta do Centro e, um dia, sentados num banco da Praça da Alfândega depois do rango, pegando um solzinho de inverno antes do trabalho, os dois me contam que vão largar os respectivos empregos e, com a grana da rescisão, abrir um bar, um velho sonho do Marcos. Tinham feito as contas, o dinheiro talvez fosse pouco, talvez precisassem de mais algum, mas foda-se, iriam arriscar do mesmo jeito. Chega de ser empregado dos outros. Perguntaram se eu não queria ser sócio deles na empreitada.

Um bar diferente, cara, só com música legal. Um espaço pras bandas, onde os músicos vão ser tratados com respeito. A ceva e o ingresso por um preço acessível. Dizia o Marcos.

E certamente vamos ganhar dinheiro. O Ricardo.

Pra ganhar aquele dinheiro eles só precisavam de algum dinheiro e da disposição de chutar o balde. Se o que tinham em termos de grana era pouco, a disposição pro chute compensava. De óleo de soja, os caras já estavam de saco cheio. Assim como eu também não agüentava mais as minutas, os contratos, o cabelo emplastado de gel, a máquina de telex, a parede do prédio do lado. Eu queria ser um astro de rock ou pintor famoso ou poeta maldito ou qualquer coisa bem artística rebelde experimental, tipo morrer jovem e belo. Um emprego num banco não ajudava muito nas minhas ambições. Eu via o taxímetro da minha vida girar enlouquecido enquanto mofava dentro daquela agência escrota. Nunca tinha pensado em ter um bar, só pensava em ir a bares, mas por um instante a idéia me pareceu interessante. Talvez ter um bar fosse artístico. A história estava cheia de bares legais: o Cabaret Voltaire em Zurique, o Whiskey a Go-Go em Los Angeles, o La Hacienda em Manchester, o Rick’s em Casablanca, o Studio 54 e – o the-great-of-them-all – CBGB, em NYC. Tá certo que aqui era apenas Porto Alegre, mas a gente faz o que pode.

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9.3.07

As mulheres são o inferno
(Crônica do Talk Radio de 09/03)

Mulheres. O tema me atrai tanto quanto as próprias. Sabendo dessa minha atração, a Melissa, amiga queridíssima que já foi inclusive personagem destas crônicas, me presenteou com um livro obrigatório para o entedimento deste ser que, conforme aprendi no tal do livro, não nasce, se torna.

Publicado originalmente em 1949, O Segundo Sexo é um clássico da literatura feminista, ainda que o termo nem existisse na época. O livro, composto por duas partes Fatos e Mitos e A Experiência Vivida, é um extenso ensaio, em que a autora, a filósofa existencialista Simone de Beauvoir, tenta explicar porque a mulher se deixou submeter à tirania do macho durante toda a história humana. A obra foi recebida na França como um acinte, deixando alvoroçado o macharedo conservador do pós-guerra. Pela primeira vez, esquerda e direita se uniram com um mesmo propósito: esculachar a autora de semelhante infâmia.

É que a Simone – com o perdão da total falta de formalidade – foi certeira em seus disparos.

A mulher é o Outro, diz ela. A alteridade que ajuda o homem a se compreender. E enquanto este vive uma existência plena como indivíduo, a mulher carrega consigo as obrigações para com a espécie. Ou seja: ele goza e cai fora, ela ovula, emprenha, gesta, amamenta...

A mulher, o ser relativo. Semelhante e dessemelhante ao mesmo tempo.

A diferença entre os gêneros existe, sabe muito bem a Simone, mas ela não explica a vexamosa segunda colocação na hierarquia dos sexos. A Simone é erudita. E lá vêm biologia, antropologia, filosofia, materialismo, psicanálise. Ufa! Nenhuma das ciências, sozinha, dá conta da complexidade dessa construção chamada mulher. Mas os dados históricos apontam pra uma só conclusão: o homem fodeu direitinho com a mulher durante esse tempo todo. Em apenas dois momentos na história da humanidade ela esteve, senão por cima, ao menos ao lado do homem. E, olha, faz tempo: foi lá na Idade da Pedra.

No início dos nossos dias, quando éramos nômades e coletores, homem & mulher andavam juntos na caravana. Elas carregavam os fardos pra que eles, de compleição mais avantajada, tivessem as mãos livres pra lutar e caçar. Status social de 50% pra cada um.

Em seguida, ou seja: alguns milhares de anos depois, o homem descobre a agricultura e vê nela semelhanças com a mulher: ambas geram algum tipo de fruto, estão sujeitas às variações lunares e aos ciclos das estações. A mulher goza de privilégios, é uma figura totêmica, associada à fertilidade, à colheita, espécie de divindade que não escolheu estar no pedestal.

Foi o homem que a colocou ali. E pra tirar, um pulinho.

Chega a Era do Bronze. O homem trasforma a natureza com ferramentas que são extensões de seu corpo. O pensamento prático suplanta o místico. Surge a ciência e o entendimento de que o fruto que sai de dentro da mulher também foi engendrado por ele, que se declara único detentor desse fruto. Seu proprietário. Dono dos filhos, da mulher e da terra.

Tradição, Família e Propriedade, e a mulher virou escrava pra sempre. Bem vindos à sociedade patriarcal. Bye bye filiação uterina, como diria a Simone.

Hoje em dia, enquanto em alguns lugares do planeta a mulher ainda vive como na Idade Média, em certas partes a situação melhorou um pouquinho. Aqui no Brasil, por exemplo, 25% dos altos cargos da administração pública e privada são ocupados por mulheres, olha se não é um luxo. Deu no site da BBC. Deu também que no mundo dos bussiness, são mulheres as que mais têm mais propensão ao alcoolismo. Consequência da absurda competitividade do setor, pobrezinhas.

Resumo da História:

A mulher é o Outro, disse a Simone. Mas como maridão dela, o Jean Paul, disse que o inferno são os outros, conclui-se que as mulheres são o inferno.

O equivalente ao caos e às trevas, conforme eu li na epígrafe do livro, escrita pelo sábio Pitágoras.

Ainda bem que lá na Era do Bronze, em algum lugar na pré-História, a gente tomou o controle da situação, não é mesmo rapazes?

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5.3.07

Incomparável, inesgotável, insubstituível...

PULP FRICTION - Edição 50!

Precisa dizer mais?

É nesse sábado, 10/03, a partir das 23h no Bar Ocidente. Ingressos a R$ 15 (valendo aquela cervejinha). Na discotecagem o incansável TRIO FRICTURA (Drégus, Rafa und Lio), apresentando um set list com os maiores pulp hits de todos os tempos. Ali do lado, no Espaço OX, discotecagem AVALANCHE e show especial com LES RESPONSABLES (pop francês dos anos 60).

Encore:

O quê? PULP FRICTION - Edição 50!
Quando? Sábado, 10/03, as 23h
Onde? Bar Ocidente (João Teles esquina Osvaldo)
Quanto? R$ 15 (valendo aquela cervejinha)
E o quê mais? Discotecagem AVALANCHE e show especial com LES RESPONSABLES

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1.3.07

Diálogo

(Crônica do Talk Radio de 02/03)

– Sinceramente eu acredito que a função da arte é enganar a morte. Mas aí será que música pop pode ser considerada arte? Poucas coisas me tocam tanto quanto a música pop. Pensa bem, uns versinhos muitas vezes bobos, cantados muitas vezes em inglês (eu li em algum lugar que é mais fácil compor música pop em inglês porque a maioria das palavras é oxítona, então isso dá uma possibilidade de fazer rimas sem rimas, entende? mas então). Você tá ali ouvindo a música e, de repente, num estalo, esses versos fazem todo sentido, parecem dizer verdades tão óbvias que ninguém jamais pensou em dizê-las e quando elas são ditas desse jeito, com uma melodia perfeita como todas as boas melodias são, é um golpe direto em algum lugar entre o cérebro e o coração. Música pop pode ser arte sim. Pensa no Cole Porter. É um bom exemplo. Com aquelas canções de amor incríveis ele se tornou imortal. Esse lance mágico que faz com que eu, um carinha que vive numa cidade provinciana ao sul da América do Sul seja profundamente tocado por algo que o cara fez há sei lá, setenta e tantos anos. E isso me toca profundamente. E é um lance que não é só com a música, mas também com a literatura, o cinema. O lance da experiência artística, aquela vertigem que faz com que tudo gire numa velocidade estática enquanto a gente fica fixo num ponto geométrico. Curtir a obra plenamente. Sacar tudo. Annie Hall, do Woody Allen, o Diana Caçadora, da Márcia Denser, o Hunky Dory, do Bowie. Filmes, livros e discos que são talvez as melhores coisas que já aconteceram na minha vida. E enquanto não houver um cataclisma qualquer que leve essas obras ao esquecimento elas vão continuar tocando as pessoas, provocando a vertigem. E o Woody Allen, a Márcia Denser, o Bowie, o Cole Porter vão ser revividos toda vez que isso acontecer, toda vez que alguém sacar tudo naquele instante. Eles conseguiram, conseguiram enganar a velha caveira carregando a foice.

– Putz, cara, tu acabou de matar o Woody Allen, a Márica Denser e o Bowie tentando argumentar que eles são imortais! Pelas minhas contas isso dá um homício triplo.

Soltei junto com a gargalhada um jato da cerveja que eu tinha bebido logo depois da pausa no meu discurso artístico-existencial-filosoficamente-furado. Uma parte da cerveja espirrou na cara do meu interlocutor e a outra escorreu pelo meu peito enquanto eu admitia que ele tinha razão mais uma vez. O amigo perfeito, embora muitas vezes um pé no saco com seu sarcasmo prêt-à-porter. Me chamou de filha-da-puta e secou o rosto na manga da jaqueta cheia de bottons de bandas do momento. Botton com o mesmo, cu em inglês. Porque button é muito pretensioso.

– Leonardo, tu é mesmo muito superficial – me disse ele – tendo epifania artística com disco do David Bowie? Putamerda vai ler filosofia, meu filho, Hegel, Kant. Ouvir Bach, Mozart, Maller! Ou um pouco de literatura de verdade: Maupassant, Flaubert, Proust, os russos fodões, o vellho Machadão. Isso aí tu não leu, aposto. Tu só tem literatura beat e novela policial na estante que eu sei. E quem sabe tu deixa de aplaudir esses filmecos do neurótico do Woody Allen e vai direto na fonte: Bergman, tu já viu algum filme do Bergman, por acaso?

Era mesmo muito engraçado ver aquela figura magra, cabelos despenteados, óculos de aro grosso, botton dos Arctic Monkeys pregado na jaqueta, pontificar sobre a Grande Arte. Principalmente porque o cretino se tratava de um notório apreciador de filmes de terror e pornografia barata. Dificilmente teria lido qualquer um dos autores que tinha acabado de citar.

Chamei o garçom e pedi mais uma. A noite ia ser curta pra tanto assunto.

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Aleijadinha

(Esse conto ficou de fora da edição final de "O Vampiro")

Essa quem contou foi o Robério, jornalista, ex-roteirista de programas infantis da Globo que nos anos de 1970 trabalhou (como todo mundo nos anos de 1970, ao que parece) num esquema de teatro meio hiponga, gente finíssima, perfeito gentleman no trato para com seus dessemelhantes, bon vivant, maconheiro pertinaz e – sobretudo – um daqueles caras tipo a personagem-paradigma pra tudo isso aqui: o homem que amava as mulheres do Truffaut, grande Robério, um cara pertencente à seleta classe dos best friends. Pois bem, o Robério conta:

A gente fazia uma campanha pra prefeito em Piranópolis, um cu de mundo, noventa dias naquele inferno e o Zaneti começou a sair com uma guria paraplégica que trabalhava no comitê do candidato. Uma moreninha bonitinha pra caramba, tinha tido uma doença na infância e parou numa cadeira de rodas, imprestável da cintura pra baixo, coitadinha, um amor de guria, precisa ver. O Zaneti se apegou à menina e começou com papinho no restaurante do hotel e mãozinha dada à mesa, em seguida já tava ajudando com a cadeira de rodas da calçada pro carro, e daí foi um pulinho pra beijinho na boca no Furyo’s, a boate onde a gente ia dar uma esticada pra desopilar do estresse que são essas campanhas, sacumé.

Pois eles ficaram nessas de casalzinho por um tempo, papinho e mãozinha dada, um help com a cadeira de rodas e beijinho na madrugada no Furyo’s, mas não saía disso. Lá pelas tantas a guria intima:

Tá, e aí?

Mas rola?

Claro que rola.

Então o Zaneti começou a falar do momento decisivo em que a campanha tava chegando e das últimas pesquisas do Ibope e do volume de trabalho da equipe, problemas insolúveis na ilha de edição, relatórios & cronogramas & fluxogramas & o caralho a quatro, fingiu um bocejo que soou forçado, olhou no relógio se espantando com o horário (muito mais cedo do que normalmente ele ia pra cama) e se despediu da guria prometendo pra amanhã.

No dia seguinte o Zaneti tava que era uma pilha de nervos, pensativo, murmurava e gesticulava sozinho, parecia louco. Puro cagaço, medo de não saber administrar a novidade, de brochar, macular a fama de fodão.

Tá, Robério, como é que eu faço?

Me perguntava o Zaneti e eu ria e dizia:

Sei lá, Zaneti, pendura ela em algum lugar, num cabide.

Mas no fim das contas o Zaneti acabou cumprindo a promessa e acho que deu tudo certo porque ele chegou a comentar depois que a guria era bem criativa, carinhosa, que tinha sido uma experiência interessante et al, o que me faz acreditar que ele curtiu de verdade a menina porque nunca entrou nos detalhes, vamos dizer, pitorescos da coisa. O Zaneti um cara reservado, quem diria. O romance dos dois ainda durou um tempo até que ele trocou a aleijadinha por uma ruiva estagiária da assessoria de imprensa. Anfan, como diria o Baudelaire.

Fim da campanha (só pra constar: o candidato não se elegeu), todo mundo voltou pra Porto Alegre e um tempo depois eu vou numa reunião de um projeto prum documentário na casa do Zaneti e, entre um uísque e outro, vem o papo da aleijadinha e ele me conta que a namorada tinha descoberto um certo e-mail com fotinho de mão dada no Furyo’s, declaração de bons momentos que passamos juntos no cabeçalho. O maior rebuliço mas o Zaneti negou até a morte. Aproveitei a deixa e perguntei:

Tá, Zaneti, mas conta aí, como é que foi com a aleijadinha afinal?

Foi bom.

Disse o Zaneti caindo numa absorção enigmática. Suspirou devagar e contemplou o vazio com um brilho estranho nos olhos e esse gesto do Zaneti me faz pensar até hoje em como será que foi essa porra dessa foda com a tal da aleijadinha.

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