25.5.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 8 - Up against the wall
Parte I

Além do stress com os bandidos, tinha o stress com a polícia. Era ordem expressa na porta: aconteça o que acontecer, não deixa entrar. É claro que nem todas vezes funcionava (principalmente as com mandado) e era horrível ver a polícia lá dentro, presença em oposição total a tudo em volta (principalmente à parede com o desenho do Silvinho Ayala com um guri cagando num capacete de brigadiano). Quando o porteiro era dos bons, conseguia segurar os tiras lá embaixo e mandava alguém chamar o primeiro dono que encontrasse pela frente. Eu, por exemplo:

Os hômi tão aí. Dizia alguém.

A reação dependia do meu estado, não digo psicológico, mas farmacêutico. Cocaína era o pior. Eu gelava de pavor em ter que convencer a polícia de que estava tudo OK cheirado. Era a prova de que tudo não estava OK. Chegava encarquilhado no portão, a boca seca se contorcendo em bicos e rictos, baba branca acumulada nos cantinhos, mal conseguindo pronunciar as palavras, terror & pânico:

T-á t-u-d-o O-O-O-k-a-y.

Não sei como acreditavam. Maconha era ruim também, não há nada que seja ruim que fique bom sob o efeito da maconha. Álcool era o normal: ruim. Agora ácido era bom. Controle total da situação. Eu me sentia o Rei do Mundo e enfrentar a polícia em tais condições era um ótimo desafio pra confirmar a minha soberania. Chegava a esfregar as mãozinhas de felicidade quando alguém vinha me dizer os hômi tão aí e eu no ácido. Ia até a entrada e já saía perguntando pro porteiro em voz bem alta e debochada:

Qualé o problema?

Os vizinhos mandaram baixar o som. Dizia o porteiro apontando pros hômi, que sempre vinham em dupla quando os vizinhos reclamavam do barulho. Primeiro eu olhava a plaquinha de identificação na camisa pra saber quem era o superior, depois encarava o sujeito bem nos olhos, um olhar-scanner que penetra a alma e saca tudo da pessoa na hora, e telepaticamente conseguia convencê-lo de que os vizinhos é que estavam errados. Uns tapinhas nas costas já meio que enxotando e segundos depois eles já tinham caído fora. Facílimo. Com cocaína seria uma merda, eu sairia balbuciando escusas e gaguejando justificativas sem eles terem perguntado nada, me dirigiria direto ao soldado deixando o sargento puto da cara com o desrespeito à hierarquia militar e com uma vontade louca de me massacrar, torturar, botar nos eixos, dar uma bela duma lição, me ensinar o que é ser homem, e ele mandaria baixar o som imediatamente sob ameaça de fechar a casa e eu imploraria clemência ajoelhado, o que inflaria seu ego como um balão cheio de peido e ele acabaria demovido da idéia por pura vaidade, entraria altivo na viatura com o soldadinho a tiracolo, ligaria a sirene e aceleraria em disparada pelo cruzamento cantando pneus e furando o sinal vermelho, não sem antes gritar que voltaria em dez minutos pra ver se a gente tinha mesmo baixado o som que é pra deixar bem claro quem é que manda aqui nessa porra.

Mas à vezes não tinha porteiro que segurasse e eles invadiam mesmo. A grande maioria das visitas – senão todas – era por causa do barulho. Algum vizinho insone ficava atordoando a polícia pelo telefone até que eles mandavam uma viatura verificar se a queixa tinha procedência. Três da manhã, a duas quadras do bar e a música já podia ser ouvida, alta. Bota procedência nisso. Mas a única coisa que podiam fazer era meter um terror psicológico porque a resolução do problema não compete à polícia – teoricamente, só a Prefeitura, através da Secretaria do Meio Ambiente, pode fechar um estabelecimento comercial por excesso de ruído, poluição sonora ou barulho que o valha. A sensação de impotência só fazia aumentar o desprezo dos policiais para conosco, um bando de drogados, putas e pederastas fazendo coisas ilícitas na madrugada e perturbando o sono das pessoas decentes. Se o porteiro não tivesse a manha de barrá-los (o que não devia ser fácil), eles invadiam mesmo.

Ver a polícia lá dentro era um SUSTO!, aparição medonha na penumbra, os bonezinhos brancos à primeira vista nos fazendo pensar que eram apenas alguns manos. Então o inconfundível uniforme cinza com as calças enfiadas pra dentro dos coturnos e os cassetetes nas mãos, armas nas cinturas. Cruz credo. Temia que algum cliente com o coração mais fraco pudesse ter um troço diante de uma aparição dessas. Daí eles entravam, olhares inquisidores, algumas perguntas e mais tantas ameaças, mandavam baixar o som e iam embora, solenes. Mal a viatura dobrava a esquina e tascávamos volume máximo de novo. O que é proibido é sempre mais gostoso, já dizia o povo.

Às vezes o perigo vinha sorrateiro e quase nos apanhava numa armadilha. Por exemplo, a vez que eu fumava um beque no pátio dos fundos com uns quatro ou cinco amigos, praticamente toda a clientela naquela noite. Todos riam faceiros em meio à montanha de entulho que era o pátio dos fundos nessa época. Rindo, fumando e bebendo e sendo jovens e felizes. De repente notei algo estranho: de dentro do bar não vinha som algum, a música tinha parado.

Apaguem o beque e fiquem quietos, eu vou lá dentro ver o que tá rolando. Falei pro pessoal.

Só mais um pega. Alguém disse e todos caíram na risada.

Shhhhh! Fiz com o dedo entre os lábios. Silêncio.

Alguma coisa estranha estava rolando, eu pressentia, peguei o isqueiro e atravessei a escuridão da salinha dos fundos, cheia de obstáculos: tralhas inúteis, restos de carpete, mesas quebradas. No breu da saleta, espiei por uma fresta da porta, uma porta velha, toda lascada que dava pro corredor do banheiro e só fechava por dentro com cadeado. Vi dois policiais caminhando pelo corredor em direção à salinha. Pus o cadeado na tranca e fechei-o rapidamente, os policiais chegarem até a porta e tentaram entrar, forçando a velha maçaneta. Um deles se abaixou e, pela mesma fresta que eu espiava, olhou do outro lado. Vi a cabeça com bonezinho branco se aproximando do buraco até se transformar num olhão que mirou na escuridão através da fresta. Desviei tirando o rosto do seu campo de visão e colei o corpo na parede. Deixei passar uns segundos pra recobrar do cagaço, olhei pela fresta e vi os policiais rumando pra saída. Abri o cadeado e saí. O Fabinho quebrava um galho no balcão naquela noite, me olhou apavorado:

Eles perguntaram pelo dono e eu disse que tu tinha saído. Disseram que voltam mais tarde.

Puta merda, essa foi quase. Gotinhas de suor frio brotavam da minha testa. Pedi uma cerveja e voltei pro pátio dos fundos. Os quatro ou cinco amigos continuavam rindo faceiros, bebendo e fumando e sendo jovens e felizes. Totalmente alheios ao perigo.

Seus cretinos, a polícia acabou de entrar no bar e vocês aqui dando gaitada e fumando maconha!

E eles:

Ah é é, entrou?

Quando?

Agora?

Ah, pára!

(risadas)

Ô, fuma aqui – alguém disse me passando um baseado – aquele acabou e a gente fechou outro.

Olhando o baseado que me passavam, sem saber se mandava todo mundo à merda ou se chamava a polícia de novo pra prender aquele bando de irresponsáveis ou ainda se aceitava a oferta mesmo, optei pela última alternativa. Resignado, dei um pega.

*

Nem sempre dava pra tirar de letra as visitas da polícia. Não digo essas visitinhas inócuas feitas em dupla pra reclamar do barulho, mas os verdadeiros e genuínos ATRAQUES, ações coletivas e planejadas em que a coerção é o meio, e o terror, a finalidade. O Garagem teve três atraques históricos.

1º Atraque Histórico: Os porões da ditadura

Alta madrugada, quase na hora de fechar. Bêbados remanescentes juntavam os últimos trocados pras saideiras. O show já tinha terminado e a música mecânica tocava num volume médio-alto (médio o suficiente pra não importunar o sono dos vizinhos e alto o suficiente pra ser bem ouvido lá dentro). Tudo calmo no front. Eis que duas viaturas estacionam na frente da casa. Apenas uma visita de rotina, pensamos. Nada ledo engano, aqueles tiras estavam mal intencionados. Sem que o porteiro pudesse detê-los, quatro brigadianos invadiram a casa e já saíram empurrando os clientes contra as paredes e revistando bolsos, cuecas, meias e sapatos. Olhei as plaquinhas de identificação pra saber a quem eu deveria me dirigir pra reclamar da invasão, mas não havia sargento entre aqueles soldados. Alguém começou a falar em direitos civis e mandado de busca e apreensão e foi logo repreendido com um chute de coturno no meio das canelas. Um brigadiano tentou tomar a bolsa de uma das clientes, a Lica (uma garageira das mais confirmadas conhecida por seu temperamento forte) e ela fez um escândalo. Em represália, ele torceu o braço da moça. A Lica gritou.

Numa atitude cavalheiresca de Casanova de fim de noite, o Dias entrou na história. O Dias era guitarrista e tinha tocado na Plastic Dream, banda-cometa da virada dos anos 80/90 que causara frisson na ceninha under com o hit Shake my mind, entoado na voz de outos dois garageiros beneméritos, o Régis e a Marion. Nessa época a banda já tinha terminado e o Dias se tornara um guitarrista bissexto, fazendo participações em alguns shows mas sem banda fixa. Tinha um fenótipo inegavelmente negróide, mas ficava puto da vida se fizessem qualquer insinuação quanto à cor de sua pele ou o encrespado do cabelo – o que fazia com que, nas internas, todo mundo se referisse a ele como o Noites.

Então o Dias, embevecido pela chance (sem falar no trago) de ganhar a menina em atitudes de gentleman, se interpôs entre ela e o policial, segurando o braço que torcia o braço da garota:

Como ousas? Disse o Dias com um ar de lorde indignado.

Cala a boca, crioulo. Disse o policial. E lascou-lhe um tapão que chegou a fazer eco. Todos na sala ficaram perplexos diante do ato brutal e inesperado, e a perplexidade congelou o tempo e os movimento deixando tudo ao redor em suspensão por um breve instante. Nesse átimo congelado, olhei a cara do Dias paralisada de susto como um menino que toma o primeiro tapa do pai, expressão acuada, ombros encolhidos, os olhos cheios d’água. Depois de um tapão desses, só mesmo um duelo pra recuperar a honra de cavalheiro ofendido, mas o Dias não pegou em armas e se recolheu num canto, assustado. Protestamos contra a violência dos policiais e eles mesmos se deram conta de que tinham passado dos limites. Sem pedir desculpas, foram embora. Depois que saíram baixou a maior deprê. Foda perceber com que facilidade podemos nos tornar reféns da violência, uma violência travestida de autoridade, castigo sem crime. Pagamos uma rodada saideira pra clientela prostrada e nos comprometemos em tomar uma atitude contra aquela arbitrariedade. Era nossa obrigação moral. Sobretudo em consideração ao Dias, coitado, que tinha levado a pior (e também porque se ele espalhasse a notícia de que polícia saía batendo nas pessoas no Garagem a nossa reputação (seja lá ela qual fosse) estaria arruinada). Pra ele foram duas saideiras.

No dia seguinte começou a peregrinação. Enredo de filme: o homem contra o sistema. Ou três homens contra o sistema, no caso. A nossa batalha: desafiar a polícia em sua própria fortaleza. As armas para travá-la: a coragem dos bravos, a determinação dos loucos e um saco de Papai Noel. Usar de argumentos contra a obediência cega e burra, acusar a casta militar, emaranhar-me kafkianamente nos interiores da burocracia invencível, registrar queixas em bem guardados quartéis de pátios ensolarados e corredores úmidos fedendo a água sanitária com ladrilhos faltando no chão, descer escadinhas subterrâneas que conduzem a saletas cheias de arquivos e móveis velhos mal-iluminadas por lâmpadas pendendo de fios do teto, a interminável espera em cadeiras gastas e comidas por cupim em frente à escrivaninha de um suboficial qualquer. O mais perto que eu jamais poderia chegar do que talvez tenham sido uma vez os tais porões da ditadura. Confesso que revivi o que nunca vivi. Sem apanhar, graças à Deus.

O Ricardo conseguiu o contato de um deputado ligado à defesa dos direitos humanos que foi dando uns toques de como a gente deveria agir. Fui até o batalhão a que pertenciam os soldados que invadiram o bar e identifiquei-os através de fotografias. A queixa era por agressão. O processo se desenrolou de tal maneira que, num dado momento, tínhamos quase todas as cartas na mão pra liquidar com aqueles milicos, o deputado pronto pra armar o maior bafafá na imprensa, o depoimento do agredido, nossa cartada final. Só que o Dias arregou, não quis depor. Disse que não se envolveria no caso por recomandação de seus advogados (sic). Ainda que o tapa tivesse sido na cara dele, o problema era nosso. Sem o depoimento da principal vítima, fomos obrigados a retirar a queixa depois de quase um mês de incursões sombrias nos meandros da burocracia militar. Morremos na praia, como diria o meu avô. Mas pelo menos mostramos praqueles milicos com quem eles estavam lidando.
(continua)


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23.5.07


Pulp Experience presents:
PULP no Espaço. A diversão de sempre em novo ambiente. Experimente! No Laika, sexta, 25/05, 23h.

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21.5.07


Pecha Kucha Nigth POA
Tô nessa! O evento foi inventado lá no Japão por um grupo de designers. Depois correu o mundo e acabou agregando gente de literatura, artes, cinema, música, fotografia etc. A Pecha Kucha Night aterrisa em Porto Alegre sob o comando do Cardoso e o do Scott. Vai ser lá no OX, no domingo, a partir das 19h. O cast é de primeira. Altamente recomendado. Quer saber mais? Vai lá em www.pecha-kucha.org.

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18.5.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
2ª Parte: Hard Times
Capítulo 7 - Pega ladrão!

Agora começa a parte deprê. O primeiro degrau que nos levou pra baixo numa longa descida – se pro inferno, só confirmarei depois da morte. Inevitável a alusão aos filmes e às histórias de terror: sempre houve um quê de casa mal-assombrada no velho casarão da Barros Cassal, principalmente durante o mau tempo, nas fases negras, nuvens carregadas pairando por cima que nem a mansão da Família Adams, trovões estalando sobre o telhado, raios quase caindo na nossa cabeça, sentença de morte de algum anjo exterminador – mas o anjo tinha má pontaria ou talvez estivesse só dando recados, nosso anjo da guarda quem sabe:

Vamos se ligar, galera! Desse jeito não vai dar pé.

De nossa parte, só indiferença quanto aos avisos celestes. Acaso tínhamos o corpo fechado? Porque aquilo era gozar com a cara do Grande Barbudo lá em cima, brincar com o perigo, surfar no repuxo das ondas do destino, desafiar as mais elementares leis da natureza e, sobretudo, as do bom senso (casa velha de madeira e estuque, parte elétrica periclitante, centenas de fumantes atirando baganas no chão e simplesmente nunca foi visto sequer um extintor de incêndio por lá, só pra citar um exemplo de desafio a leis elementares). Ignorávamos o sentido de expressões como Prevenção de Incêndio ou Segurança do Patrimônio, e uma vez nosso anjo, nos guardando por vias tortas ou tentando exterminar sem muita pontaria, pulou o portão da frente (muy facilmente, confesso, até eu que não tenho asas pulava quando esquecia a chave) e tentou atear fogo na casa, derramando gasolina por baixo da porta e queimando por fora. Foi num domingo. Mas só descobrimos na segunda, chegando no bar pro fechamento da semana. A porta da frente estava chamuscada e vários fósforos queimados haviam sido deixados no patamar da escada. Uma garrafa plástica com um restinho de gasolina também tinha sido esquecida, prova irrevogável do crime. Levando em consideração os sentimentos da vizinhança em relação à gente, julgamos se tratar de algum vizinho pró-ativo querendo assustar. Mal desconfiávamos ser obra do anjo. Anjo-barômetro da pressão altíssima que lentamente nos apertava, o tempo fechando e envolvendo a casa em trevas. Anjo-arauto das calamidades do porvir, assoprando sua trombeta e cantando nossa longa descida pro fundo do poço.

*

Não apenas anjos vinham nos fazer visita. Exus, cavalos, pombas-gira e outros encostos também apareciam por lá seguidamente. Tinha um par de exus em particular, dois bandidinhos aspirantes a Scarface, que se tornaram assíduos. Nossa política em relação à venda e ao consumo de drogas sempre foi muito clara: tudo liberado desde que mantidos o decorro e as aparências, nada de cheirar em cima das mesas por exemplo (uma vez peguei um cara cheirando numa mesa – eu devia estar fora mim, cheirado provavelmente – falei:

Banheiro existe pra quê, meu amigo.

E assoprei o pó do cara, jogando tudo pros ares. Ele ficou possesso, não se assopra a cocaína dos outros assim impunemente, levantou da cadeira e veio em minha direção aos socos. Por sorte era um baixinho. Estiquei o braço e segurei sua testa com a mão espalmada, os braços mais curtos que os meus giravam como as pás de um moinho em alta rotação, os socos passando a centímetros do meu queixo sem atingi-lo. Mantive-o afastado até que alguém chegasse e o tirasse pra fora – abaixo de pau). A verdade é que não éramos hipócritas nem ingênuos: pessoas vêm a bares para, dentre outros, cheirar cocaína, então se houvesse cocaína, pessoas viriam ao bar. Conquanto soubéssemos quem eram os traficantes e que eles não passassem dos limites do decorro, podiam trabalhar tranqüilos.

Mas os dois exuzinhos não eram assim. Malvados e briguentos, não tinham limites. O primeiro era um branco classe média baixa que não escondia o ar de filhinho da mamãe e nem sinalizava tanto perigo, encosto inofensivo, a menos que aliado ao outro, um mulato com nome de jogador de futebol e uns olhões arregalados de assassino de Lombroso, que parecia nunca ter tido mãe, o filho-sem-mãe. Com um jeito persuasivo, muita malícia e a medida exata de violência, foram tomando conta do ambiente e quando nos demos conta tinham mais autoridade que nós. Imbuídos de poderes autoproclamados, reinavam. E a gente agindo como se nada acontecesse, com uma complacência covarde pra evitar qualquer reação violenta, perdendo o controle a cada noite, domador subjugado que não esboça medo pra não ser atacado pelas feras.

Até o dia em que trancamos os bichos do lado de fora. Foi depois de um fim-de-semana em que superaram todos os limites do barbarismo. Primeiro, quase mataram um dos nossos clientes mais pacatos, um ruivo comprido e cabeludo, totalmente nerd, cujo único defeito era importunar as pessoas com piadinhas idiotas (talvez tivesse merecido a surra afinal). Foi um ato cruel e covarde, pegaram o cara desprevenido com uma voadora nas costas, mal ele caiu, já saíram chutando. Nem se estivesse prevenido teria chance. Depois a dupla foi pega vendendo cocaína na fila do banheiro. O problema não era exatamente a venda do produto, mas como ela era feita. Com um saco de supermercado cheio de pó entre as mãos, ofereciam a cocaína de colherinha pra qualquer um que aparecesse: uma por 10, duas por 20, quatro por 30 e assim por diante. Só faltava anunciar no grito. Decorro zero. Alguma atitude precisava ser tomada. Mandamos expulsá-los do bar, acho que não gostaram muito, saíram dando coices e cabeçadas.

No final de semana seguinte, alertamos na entrada (nessa época a gente já tinha porteiro) que eles estavam barrados. Quando chegaram e tiveram seu barato cortado, armaram a maior confusão, chutaram o portão, xingaram a mãe do porteiro, juraram-no de morte. Depois ficaram horas esperando na entrada até que um dos donos aparecesse. Adivinha quem foi? Primeiro fizeram carinha de santo, perguntando por que a gente não pode entrar?, depois quase imploraram por uma segunda chance e só então partiram pras ameaças:

Tem certeza que tu não vai deixar a gente entrar?

Tenho.

Vai te arrepender.

E o par de olhões de assassino de Lombroso brilhou numa chama vingativa enquanto Exuzinho apontava o dedo na minha cara, chutava o portão com violência, três, quatro vezes e ia embora. Mama’s Boy também deu uns chutes repetindo o gesto do dedo em riste mas não obteve o mesmo efeito dramático.

Não me arrependi. Apenas sei que pagamos o preço pra nos livrar dos exus. Custou caro: boa parte da nossa aparelhagem de som, incluindo um belo prato Gradiente vintage, e uns 200 cds, a maioria do Drégus. Cumprindo as ameaças de vingança, eles arrombaram o bar e fizeram todo esse estrago (além de quebrar algumas coisas, enxugar as bebidas e rapar os trocados do caixa). O golpe foi duro. Dureza também foi dizer pro Drégus que todos os cds que ele tinha nos emprestado tinham ido pro saco. Quem empresta sempre se fode, já dizia a minha irmã.

Mas alguém poderia perguntar:

Como cês tinham certeza que foram eles?

Por uma simples e objetiva razão: encontramos uma carteira de identidade jogada no pátio dos fundos, bem embaixo da janela pela qual os ladrões tinham entrado. O Marcos a recolheu do chão e vimos a foto de um mulato com uns olhões arregalados de assassino de Lombroso, ao lado, a assinatura preenchida com letra de semi-analfabeto, um nome de jogador de futebol. O cretino tinha esquecido a própria identidade na cena do crime. Isso é que eu chamo de amadorismo. Não, chamo de burrice mesmo.

Nós também fomos amadores (burros?). Ao invés de contratar um advogado ou até uns bandidos pra tentar recuperar nossas coisas, lá fomos nós, numas de detetive, tentando solucionar o caso. Demos queixa na delegacia do bairro, onde Exuzinho já era fichado. Descolamos o endereço de Mama’s Boy e na companhia de dois policiais (por uma gorjeta pra cerveja e pro churrasco) fizemos uma visita. A mãe atendeu e acobertou o filho, disse que o menino (sic) não estava. Também se recusou a abrir a porta a pedido dos policiais. Talvez devêssemos ter oferecido uma gorjeta maior, teriam sido mais enfáticos. No dia seguinte os meninos se apresentaram na delegacia. Mamãe veio a tiracolo com um advogado e a justificativa:

Eles foram assaltados no final de semana.

Justamente na noite do arrombamento, ora que coincidência, e tinham consigo uma ocorrência policial registrando o roubo da identidade encontrada em nosso pátio, lavrada numa delegacia do Bom Fim, pouco depois da nossa visita a Mama’s Boy. Depois de tanto amadorismo (burrice) estávamos lidando enfim com um profissional, nada como um bom e sujo advogado pra fazer um bom trabalho sujo. Pra dar fim ao caso, a esposa do Ricardo, que tinha uns contatos meio obscuros, sugeriu que a gente pagasse alguém pra cagar os dois a pau. Bem que mereciam, mas acabamos arregando, se sobrevivessem poderiam se voltar contra a gente muy malvadamente. Também desistimos de qualquer ação legal. Nada seria pior do que metê-los na cadeia. Primeiro porque virariam profissionais. Segundo pelo ódio vingativo que alimentariam pelos anos de reclusão: soltos, com pena reduzida por um bom comportamento friamente dissimulado, iriam direto aterrorizar nossas famílias com requintes de crueldade. Já vi esse filme.

Não digo que os exus sumiram da minha vida totalmente porque vira-e-mexe encontrava-os em algum boteco menos qualificado que eu costumava frequentar. Eu procurava ficar cool, agir como se não existissem, mas era impossível ignorar as ondas de hostilidade vibrando no ar. Eu de um lado, retesado como um gato em aflição, e eles do outro, rangendo dentes, grunhindo injúrias, espumando ameaças, olhões arregalados disparando torpedos de mau-olhado sobre mim, dá-me sal grosso!

Eventualmente os cretinos também aproveitavam as mudanças de porteiro pra entrar no bar. Era só ter algum novato na porta, alguém por fora da nossa lista negra, que eles faziam a aparição. Chegavam na hora mais movimentada e ficavam em algum canto escuro (eram muitos), curtindo a festa na penumbra e fazendo uma graninha de leve. Mas aí vinha algum amigo mais chegado, alguém dos Velhos Tempos, e:

Pó, vocês liberaram aqueles dois que meteram o bar aquela vez?

Como assim?

Acabei de pegar um pó deles ali no cantinho ao lado do palco.

Então eu chamava o novato, levava até o local e apontava o dedo:

Inaugura a lista negra. Números 1 e 2.

Acho que no fundo, bem no fundo, devem ter se arrependido do que fizeram. O preço que pagamos foi pequeno se comparado ao que deve ter custado pra eles deixar de freqüentar o Garagem. Ficaram de fora das melhores festas da década basicamente. Sem contar que não devem ter feito muita grana em cima do nosso equipamento e dos cds. Tudo convertido em alguns gramas de pó cheirados em mais uma noitada, entre tantas. O crime que não compensou.

Dentro do castelo a coroa voltou pra cabeça de quem realmente reinava.

Um reino falido. Pilhado por hordas de bárbaros, castigado pelo mau tempo, amaldiçoado pelos deuses. Haveria de haver força e determinação pra reerguê-lo, promover a alegria da plebe, dar-lhe razão de viver.

Começamos com um cd player e um mixer parcelados a perder de vista. Trouxe mais alguns cds de casa pra quebrar o galho, conseguimos outros emprestados e fomos repondo a discoteca pouco a pouco, garimpando em promoção. O Drégus fez uma lista dos discos que tinha perdido e avaliamos todos a um preço médio de dez dólares, cada, já que a maioria era de importados. Ele ficou com um crédito enorme na casa. Pouco tempo e muitas cervejas depois, saldamos nossa dívida.

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9.5.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 6 - Um corpo que cai

Foi em janeiro. E diferente das histórias escabrosas do hemisfério norte, quando janeiro é inverno e frio, muito frio, aqui era verão e quente, muito quente. História escabrosa de verão, sem vento gélido açoitando-nos os ossos e outros clichês de filme de suspense. Verão e quente. E vazio. Naquelas noites de sábado em que todo mundo parecer ter ido pra praia, só restando na cidade os chatos, os duros e as feias. Sendo eu um duro, tinha que ficar também. E ainda tentar fazer algum dinheiro em cima dos chatos e das feias (até porque com os duros não teria chance). Sendo meus sócios outros duros, ficamos todos.

Poucos clientes. Ventiladores ligados no máximo pra tentar assoprar o calor pra fora, calor insuportável mesmo com a casa quase vazia. Ninguém na pista de dança. Ou talvez tivesse alguém, uma mina bêbada e um carinha idem, embalados pela cerveja e pelas melodias de um disco qualquer, coletânea de preferência, tocada aleatoriamente pelo meu alter-ego da discotecagem, o infalível DJ Shuffle. Enquanto Shuffle assumia o som, eu podia sair pelo bar pra beber ceva na sacada, papear no patamar da escada, olhar as meninas, fumar um na salinha dos fundos, dançar. Bastava esconder o acervo de discos debaixo do palco, escolher a coletânea e deixar o Shuffle comandar a ação.

De tanto calor, a maioria dos clientes (tão poucos que chega a ser ridículo chamar um número tão pequeno de gente de MAIORIA) só entrava no bar pra pegar uma cerveja e logo depois saía de volta e sentava no patamar da escada pra jogar conversa fora. Acho que os melhores assuntos já discutidos no Garagem – salvo as discussões movidas à cocaína no escritório – se deram no patamar da escada. Na verdade, acho que essa é uma frase de efeito mentirosa porque eu nunca poderia afirmar onde se deram os melhores assuntos já discutidos no Garagem – salvo as discussões movidas à cocaína, que, sem sombra de dúvida, posso afirmar que as melhores e a maioria (agora sim tendo como referência um número grande o bastante pra chamar de MAIORIA) se deram no escritório.

Pra reduzir gastos, tínhamos dispensado as meninas do balcão e o Marcos servia as bebidas pra clientela. DJ Shuffle rolava o som, o casal bêbado dançava na pista e o Ricardo e eu bebíamos e conversávamos no patamar da escada com a maioria dos clientes, umas 4 ou 5 pessoas, dentre elas um cara alto e magro, muito alto e magro, que tinha aparecido não sei de onde e se juntara ao grupo. Ele também era a parte da clientela que mais entrava no bar pra pegar cerveja. Um daqueles bêbados solitários obstinados, enxugando uma atrás da outra. Tinha uma cara grande e quadrada, emoldurada por cabelos compridos, pretos e lisos, visivelmente sebosos. Usava uma camisa listrada de mangas curtas, barba por fazer de vários dias. Muito alto, tão alto que o corrimão da escada dava um pouquinho acima da altura dos seus joelhos. Em alguém de estatura mediana, esse corrimão dava nos quadris. Muito alto.

Então o cara muito alto, depois de buscar uma seqüência de cevas, se encostou no corrimão e entrou na conversa falando rápido, rindo, soluçando e bebendo golões de cerveja. Na maior das animações, balançava o corpo comprido, encostado no corrimão. Lá pelas tantas, em meio a uma risada mais forte, se inclinou pra trás e foi caindo lentamente. Ficamos olhando a cena como num filme em câmara lenta, pensando: o c a r a t á c a i n d o. De repente, como se a velocidade do filme tivesse sido acelerada, as pernonas compridas ficaram suspensas e deram um pinote pra cima. A cabeça e o tronco foram pro outro lado do gradil, as coxas ficaram apoiadas no corrimão e os pés se ergueram no ar. Depois foi um escorregão e o corpo caindo da altura de uns quatro metros, que era mais ou menos a altura da escada. Num reflexo, o Ricardo tentou segurar o cara, mas o peso do magrão e o tecido fino da camisa listrada tornaram inútil o gesto de salvamento. O próprio cara também tentou se agarrar à grade com uma das mãos enquanto a outra ainda apertava o copo de plástico com um resto de cerveja. Preso à grade por uma das mãos e embalado pela queda, o sujeito fez um movimento de pêndulo, indo prum lado e depois voltando e, quando atingiu o ponto máximo da trajetória, desprendeu a mão e desabou. Caiu de barriga pra baixo, de carão na laje, os braços esticados como quem dá um mergulho. Um desses pranchaços que os inexperientes dão em piscina de clube. Só que no cimento.

Tudo aconteceu muito rápido. Ficamos olhando o cara lá de cima, corpo estirado, a cara grudada no chão, nenhum sinal de vida. Passada a perplexidade, os primeiros socorros. Alguém gritou cara, tu tá bem? Sem resposta. Descemos as escadas. Cutuquei o ombro dele com a ponta do pé, depois o Ricardo se abaixou e sacudiu o corpo inerte. Nada. Nisso, todos os clientes (uns 9, no máximo) já estavam no patamar olhando pra baixo, menos o casal bêbado que ainda devia dançar o set do DJ Shuffle, imperturbável. Os rumores da tragédia chegaram até o Marcos que largou o balcão e foi ver o que tinha acontecido.

O Marcos era um carinha estressado. Chegou aterrorizando, botando a culpa em mim e no Ricardo por algum motivo inimaginável, nos chamando de irresponsáveis, que a gente ia ser processado. Depois do furacão de stress e dos prenúncios de calamidades, vieram as questões práticas. Ninguém ali conhecia o infeliz, que trazia apenas um dinheiro amassado no bolso, sem carteira nem documento (nem lenço).

Então fazer o quê?

Chamar a polícia?

Ambulância?

Arrastar o corpo até a calçada e deixar por lá?

Enterrar no pátio em meio ao entulho?

Alguém sugeriu que a gente chamasse um táxi e o levasse pro hospital mas outro disse que não se deve mexer no corpo de uma pessoa acidentada. Um foi até o orelhão da esquina chamar uma ambulância mas logo depois voltou dizendo que não tinha fichas. E o cara ainda lá, imóvel, sem a gente saber se respirava ou não. Alguma atitude precisava ser tomada. Não podíamos nos responsabilizar por todos os bêbados irresponsáveis desconhecidos que entravam no bar, já tínhamos os conhecidos pra nos preocupar. O melhor a fazer era se livrar do corpo. Uma vez eu tinha visto num filme: pra desovar o amigo morto de overdose, o cara dirigia até o hospital, reduzia, abria a porta do carro, atirava o morto, acelerava e caía fora. Só precisávamos adaptar a estratégia prum táxi (depois de aliciar o taxista) porque nenhum de nós sabia dirigir. Ainda assim parecia o plano mais viável. Como eu tinha sido o mentor intelectual já saí dizendo que não ia executar. O Marcos disse que não podia abandonar o balcão sob nenhuma hipótese.

Sobrou pra ti. Falamos pro Ricardo.

Vocês tão loucos? Vamos tirar no palitinho.

Mas como já dizia a avó de uma amiga:

– O que é teu tá guardado!

Para o bem ou para o mal, digo eu. E o Ricardo perdeu no palitinho.*


*N. do A.: Em termos de literatura este é o final da história. Mas, mediante às queixas daqueles que insistem que os fatos da relidade não ficam assim sem explicação (ô doce ilusão), cabe informar que: 1) provavelmente o cara não morreu; 2) depois de perder no palitinho, o Ricardo levou-o num táxi até o HPS e lá o deixou, antes de fugir sorrateiramente; 3) nunca mais o vimos, o que nos leva a pensar que 4) talvez ele tenha morrido mesmo.

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7.5.07



Taí o (pra variar!) lindo cartaz da edição 52 da nossa festinha clássica, a PULP FRICTION, obra do não menos clássico Drégus. É no sábado, 12/05, a partir das 23h, no Ocidente.

Discotecagem do festivo TRIO FRICTURA (Lio, Hell & Drégus) e show especial da banda SUEDEHEADS, interpretando The Smiths.

Ingressos antecipados a R$15 (valendo uma cerveja) nas lojas Rouparia e Lei Básica ou a R$18, no local.

A SUEDEHEADS é formada por Guilherme Neto (bateria), Jojô (baixo), André Lacet e Cristiano Wortmann (guitarras) e Leo (voz).

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3.5.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 5 - Banda desenhada

Numa das paredes do bar tinha um desenho de um casal dançando e se beijando. A menina usava um vestidinho azul esvoaçante e o carinha, paletó, gravata e calça boca-de-sino. Eles tinham umas cabeças gigantes, desproporcionais em relação ao corpo, e de suas bocas escancaradas saíam enormes línguas vermelhas que se enroscavam num trançado vertical. Um beijo muito louco, como na música dos Mutantes. No topo da trança de línguas, onde a pontinha se bifurcava, dava pra ver, pequeninho, o Major Fatal com o seu capacete de expedicionário inglês do século XIX, uma valise numa das mãos e a outra sobre os olhos como quem procura ao longe.

O autor do desenho era um jovem e talentoso ilustrador, o Rodrigo Rosa. Além do Rodrigo, muitos outros ilustradores, chargistas e desenhistas freqüentavam o bar naqueles early days. Atraídos pelo nome Garagem Hermética – referência pros aficcionados em HQs – passaram a formar, ao lado dos músicos, groupies e estudantes, a base da pirâmide social garageira.

Criados em ambientes controlados como quartinhos a meia luz com paredes recobertas de pôsteres e desenhos, nas estantes coleções dos grandes monstros do cinema e da televisão, Frankenstein, Alien, Jason, Freddy Krueger, Choobaka, He-Man, o Gato Guerreiro, os quadrinistas são, na maioria das vezes, oriundos de famílias classe-média de mães superprotetoras ou pais desquitados. Essencialmente nerds, foram adolescentes marginalizados nas aulas de educação física, que adoravam ídolos improváveis pra meninos de doze anos, Bela Lugosi, Boris Karlof, Charles Manson, Aleister Crowley, Van Gogh. Com a chegada à vida semi-adulta (um quadrinista nunca é inteiramente adulto), os quadrinistas encontram seus semelhantes em mostras de filmes tipo cult, sebos e bares malucos com nome de história em quadrinhos, por exemplo. És o que consomes, já dizia o filósofo.

Uma vez no Garagem (e bastante à vontade, diga-se) os quadrinistas passaram a promover uma série de eventos e, principalmente, a interferir na paisagem interior da casa, antes uma vastidão de paredes brancas com magros majores fatais pincelados aqui e ali.

A primeira interferência aconteceu durante uma festa-happening. Foi num domingo em clima de matinê, ainda no primeiro ano do bar. Artistas faziam suas interferências nas paredes enquanto bandas tocavam no palco e a gente vendia cerveja, tudo-ao-mesmo-tempo-agora, pessoas entrando e circulando e bebendo ceva e assistindo aos shows e de repente surrupiando um pincel ou spray e fazendo suas próprias interferências nas paredes e saindo com alguns sprays pra rua e interferindo nos prédios e carros e calçadas, de modo que pegou muito mal (péssimo, diria) com a vizinhança. No final da festa, dissipada a névoa da tinta spray que tinha deixado chapada a nossa tripulação, pudemos ver o resultado final da pintura, um lixão visual em que todo mundo – desenhistas, clientes, músicos, garçonetes, bêbados, passantes – tinha interferido. Em meio aos rabiscos da massa, desenhos obscenos, símbolos do anarquismo, folhas de maconha, declarações de amor, caralhos voadores e outras pérolas do imaginário pichador coletivo, distinguiam-se, numa ou noutra parede, os trabalhos dos artistas.

Foi nesse happening de música e tinta que o Rodrigo Rosa desenhou o casal do beijo muito louco. O Fábio Zimbres também pintou no evento e fez vários cachorros surrealistas que pareciam uns cavaletes com focinhos. O Silvinho Ayala desenhou um guri cagando num capacete de policial. O Alex Ramires fez um porco capitalista com o Palácio do Planalto ao fundo. O Carlos Ferreira desenhou um menino gigante com cara de psicopata. O Guillermo pintou, num compensado que vedava uma das janelas da pista, uma máscara negra sadô-masô com a frase “Kinky sex at 3:00 AM” rabiscada embaixo. O Drégus, que também era da turma dos quadrinistas, atuando principalmente como roteirista de umas histórias estilo noir, fez alguma coisa também. Eu próprio cometi um desenho numa parede pequena.

Mesmo com algumas obras-primas, como o beijo muito louco do Rodrigo e o kinky sex at 3:00 AM do Guillermo, num todo, a coisa tinha ficado bem mais ou menos. Essa do povo pegar os sprays e cair matando na pichação não estava nos nossos planos, já nos bastava a poluição visual do nosso banheiro adolescente. Um tempo depois, quando rolou a primeira reforma, aproveitamos pra repintar tudo. A grande parede da pista de dança, infestada por pichações anônimas e sem qualquer atributo estético, virou suporte de grandes trabalhos: primeiro um desenho lindo e burroughsiano da dupla Jack e Pax: um bar em profundidade ultra-realista freqüentado por insetos, um louva-deus gigante sorvendo drinks com canudinho no balcão, dois moscões batendo um papinho numa mesa, a Formiga Atômica voando num canto; depois o Haesbaert, um pintor da maior categoria, fez uma paisagem espacial, bem minimalista: dois planetas brancos e uma estrela cadente que parecia realmente cair com o piscar da luz estroboscópica; por último, o Adriano Rojas pintou um imenso Sonho de Valsa com um casal punk pogueando ao invés da tradicional dupla em trajes de gala que baila provavelmente o Danúbio Azul. Me acompanha nesta contradança?

Uma das facções de quadrinistas que mais agitava festas no Garagem era a turma do Drégus, que incluía as feras Jack/Pax, Rodrigo, o Rosa, e o Carlos Ferreira. Eles editavam, entre outros, o zine Peek-A-Boo e a revista Made in Brasil, e promoviam uns eventos malucos. Lembro de uma exposição com uns desenhos de inspiração jazzística, feitos pelo Carlos, e uma obra de minha própria autoria. O vaso sanitário tinha ido pras cucuias e tivemos que fazer uma reforminha, aproveitei pra passar uma tinta nas paredes porque a poluição visual de banheiro adolescente já tava enchendo o saco até dos adolescentes. Comprei uma tinta verde na promoção e mãos à obra. A inauguração do novo banheiro coincidiu com a exposição, e um dos guris afixou numa das paredes uma plaquinha semelhante a que identificava os desenhos do Carlos como “Jazz, nanquim sobre papelão”. Dizia assim: “Banheiro verde, tinta acrílica sobre banheiro”, o meu nome escrito embaixo.

No final de 93, Drégus e seus asseclas armaram um festival de bandas, o Loolapaloozinha, versão miniaturizada e com sotaque tri porto-alegrense do mega-festival promovido lá na Califórnia pelo Perry Farrel . Uma incipiente MTV Brasil fez uma matéria sobre o evento e assim nossa existência começou a ser notada na grande metrópole São Paulo S/A – os músicos da ceninha under fazendo cara de blasé durante a entrevista pra disfarçar o pânico provinciano diante da câmera da televisão estrangeira.
O mundo dos quadrinhos trouxe também pro Garagem essa figura emblemática da noite porto-alegrense, o Otto Guerra, a quem deveria ser concedida uma medalha por serviços prestados à boemia e a fubangagem nacionais. Dino do cinema de animação brasileiro, gentil protetor de jovens solteiras e bon vivant avant la letre (?), o Otto é o sujeito que sabe levar uma vida de vícios, pecados e outras delícias terrenas, cagando e andando pra todo o resto: má fama, mau hálito, impotência, juros bancários, calvície, caspa e outras piorréias. Trata-se, caros, de um especialista. O Otto pintou no Garagem acompanhado de sua gangue, feras envolvidas em publicações importantes como o fanzine Kamikase e as revistas Animal e Dumdum: Alemão Guazelli, Pedro Alice, Zimbres, Adão Iturrusgarai (outro catedrático da chinelagem) e o mascote Allan Sieber.

Além de produzir as revistas e os zines, os quadrinistas também queriam entrar pro maravilhoso mundo do roquenrol. E quem iria impedi-los?

O Carlos Ferreira montou a banda Os Carlos e o Drégus, a Cowabunga.

O Allan (nessa época um metaleiro com look Jesus Cristo gótico) armou uma banda pra tocar no lançamento do zine Glória, Glória, Aleluia!. A decoração desse show consistia numa galinha preta pendurada no teto, balançando entre o guitarrista e o baixista. O som era alguma merda alta e barulhenta. (Nessa época, não sei se por dureza, pão-durice ou retardamento mental, a gente mesmo fazia a limpeza do bar. Na noite seguinte à da festa do Glória, Glória, cheguei pra trabalhar e vi um amontoado de copos, latas e bitucas que o Marcos tinha deixado pra eu juntar. Filha-da-puta, fez o serviço incompleto. Sobrou pra mim, pensei, e peguei a vassoura e a pá. De repente descubro o galinhão preto e duro, despistado dentro da montanha de sujeira. Triste fim. Até mesmo pruma galinha. Melhor seria terminar bêbada em oferenda, deitada numa bandeja prateada de papelão.)

O Adão Iturrusgarai e o FZ (não confundir com Frank Zappa) formaram a Dumdum Boys, inspirada em Pixies e Iggy Pop. Foi a festa de lançamento do terceiro (e último) número da polêmica revista Dumdum, evento superbadalado. Mais uma equipe da MTV apareceu. Entrevistando umas pessoas no corredor, o repórter se depara com o Otto e pergunta que cê acha desse bar?

Isso aqui é um underground infantil. Diz o Otto.

Quando eu vi a matéria na televisão fiquei puto da cara.

Sacana, nos tirando pra guri.

Passei a implicar com o Otto e sempre me fazia de surdo quando alguém pedia pra liberar a entrada dele. Mais tarde ele foi morar no Rio. De volta à cidade, depois de um longo tempo, nos encontramos num desses bares da vida, como diria o Milton.

Quanto tempo?

Muito.

Como foi?

Médio.

Prefere aqui?

Yeah.

Sentiu saudade?

Até de ti.

Não sabia se ficava lisonjeado ou ofendido. Aí ele começou um papo sobre a gente nunca ter ido muito com a cara um do outro e porque eu nunca liberava a entrada dele no Garagem e porque só o Ricardo deixava ele beber fiado (como assim, beber fiado?).

Demorei alguns instantes antes de responder:

Porque tu disse uma vez que a gente era underground infantil.

E o Otto sorriu em silêncio da minha cara de velha criança estúpida ao finalmente me dar conta que era mesmo.

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