30.7.07

Pulp non stop:

Puro Frisson!

A festa mais divertida de Porto Alegre aterrisa nesta sexta, 03/08, pela primeira vez, na CHOICE DINING CLUB (Félix da Cunha, 977).

O sensacional TRIO FRICTURA (Drégus, Rafahell e Leo Felipe) exibe seu peculiar set recheado de eletro-rock, tecno-polca e punk-funk num clube muy muy charmoso, digno do pulp-povo.

A partir das 22h30 com ingressos a R$ 20, mas se você deixar um comentário dizendo EU QUERO! paga apenas R$ 5.

Como diria o Daft Punk, one more time:

O quê? PULP FRISSON
Onde? Choice Dining Club
(Félix da Cunha, 977 - esquina Marquês do Herval)
Quando? Sexta, 03/08, a partir das 22h30
Quanto? R$ 20 ou R$ 5 dizendo EU QUERO!

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A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Parte 3 - Renascença

Capítulo 15 - Sushi!?

Ao som de um velho blues tipo New Orleans

A bancarrota parecia iminente. Penúria, desespero total. Noites vazias cada vez mais comuns. Como ratos, os clientes fugiam enquanto o bar(co) afundava. Ou apareciam de vez em quando pra comentar como todos os bares da cidade estavam lotados. Insensíveis.

Era uma dessas noites vazias clássicas e eu tinha dispensado o porteiro. O cartaz da festa anunciava a discotecagem do DJ Shufle. O primeiro cliente a aparecer foi um baixote que eu conhecia desde os tempos da Osvaldo, chato profissional.

Posso entrar pra ver como tá?

Não tem ninguém lá dentro. Mas se quiser tomar uma cerveja, vai fundo.

Ameaçou entrar mas acabou dando meia volta:

Vocês não eram sócios daquele cara que abriu o Circus?

Sim, o Marcos.

Ele tá rico, o bar dele tá sempre lotado.

Fiquei sem saber o que dizer e ele emendou, estúpida e gratuitamente:

Vocês perderam, seus fracassados.

Fracassados. A palavra ficou retumbando na minha cabeça até o final da noite quando eu, o Ricardo e dois ou três clientes fiéis (dentre eles o Jimi Joe) tomávamos umas cervejas já com as portas fechadas, um jazzinho de fundo.

Ricardo, a gente precisa fazer alguma coisa urgentemente.

E começamos um brain storm bêbado em busca de alguma saída, alguma idéia.

Por que vocês não abrem um sushi-bar?

O Jimi soltou essa. Dentre todas idéias possíveis era certamente a mais absurda.

Eca, peixe cru! Eu e o Ricardo exclamamos.

Não, é um bolinho de arroz enrolado em alga.

(Com cara de nojo)

Arroz? Nada disso, é peixe cru sim, a gente sabe.

Demorou um pouco pro Jimi conseguir explicar a diferença entre o sushi e o sashimi e que o tal do sushi-bar era agora o último grito em SP e que o sushi era uma comida super leve e barata pra servir à noite pros bebuns, dava até pra comer de pé, no balcão, um lance bem despretensioso, quase como um cachorro-quente dos japas.

A idéia era absolutamente destrambelhada. Genial. O tipo da falcatrua que a gente adorava: o bar mais chinelão, sujo e maldito de Porto Alegre se transforma num cool & clean sushi-bar. Piada de mau gosto bem ao nosso gosto. Não havia tempo a perder.

Allegro, detonando o ragtime

O Magno, um coroa gente finíssima que tocava bateria com o Jimi na Lavanderia Psicodélica de Charlie Chan, emprestou a grana pra reforma. Consertamos as infiltrações e construímos mais um banheiro; trocamos o balcão de posição; derrubamos algumas paredes; mudamos de lugar o escritório/casinha do DJ; caprichamos (tá, nem tanto) na cozinha e compramos um pequeno fogão de duas bocas. Uma geral na aparelhagem de som, tinta nas paredes, estroboscópica zero-bala, sistema de ventilação, tudo parcelado a perder de vista. Investimos em publicidade pela primeira vez, comprando spots em rádio, olha que chique.

Tudo corria perfeitamente bem. Só faltava alguém pra fazer o tal sushi. O sushiman, como se diz.

Nosso homem-sushi acabou sendo uma figura que a gente conhecia já há algum tempo. O Cláudio Monstro era um gigante pacato que frequentava o Lola e a Guarda do Embaú. Isso lá no início dos anos 90. Era completamente fissurado em boletas e chá de cogumelo e sempre foi muito ligado em música eletrônica. O fato é que a gente ficou sabendo que o Cláudio Monstro andava trabalhando num restaurante vegetariano meio hindu na Guarda do Embaú. Além de rimar parecia uma solução. O Cláudio Monstro tinha parado com as drogas e há dois verões trabalhava como cozinheiro. Nunca tinha feito sushi.

Mas eu aprendo. Dizia com a convicção dos gigantes.

Convenceu. E em seguida o Cláudio Monstro encontrou um mestre japa barbudo que lhe ensinou a milenar arte do sushi, coisa de filme. O Cláudio Monstro não era bobo e percebeu que seria no mínimo insensato, além de criminoso, servir peixe cru num lugar insalubre como o Garagem. Pediu que encomedássemos massa de peixe, uma farinha estranha com cheiro de mercado público. Mandamos baixar todos os ingredientes de São Paulo: hashis, algas, arroz, sakê, a massa de peixe. O kani-kama e o pepino compramos no supermercado. O Cláudio Monstro se trancou em casa com todos os ingredientes e uma faca afiada pra tentar por em prática os ensimamentos do Mestre do Sushi. Faltava uma semana pra inauguração do Garagem Hermética Sushi-Bar, em itálico, pra reforçar a piada.

Enquanto o Cláudio Monstro fazia seus experimentos, as reformas chegavam na última etapa. Eu e o Ricardo revestimentos o fundo do palco com papel laminado; as Little Sisters confeccionaram uns peixes de veludo que nadavam atrás do balcão; a Joyce, com um stencil e tinta spray, pintou marcas de coturno nas paredes; o Haesbaert desenhou cidades futuristas, planetas, naves espaciais, enormes sushis fálicos. Colocamos mesas e cadeiras no pátio, com a decisão de ignorar o item do nosso alvará que ressaltava: vedado o uso do pátio externo. Foda-se.

Numa madrugada, há duas noites da reabertura, o Cláudio Monstro trouxe o sushi que ele, afinal, tinha conseguido preparar. Suspense. Surpresa. O máximo de culinária japonesa que eu e o Ricardo até então conhecíamos era o China in Box.

Um arroz meio doce e avinagrado, além de frio, envolto numa alga escura e recheado com umas verdurinhas e aquela coisa esquisita com gosto de mercado público. Não era ruim. Mas também não era bom. Não tão bom como uma lasanha pelo menos. Mas a gente não queria abrir uma cantina mesmo: bom ou ruim, o sushi era apenas um detalhe.

O menu: cinco peças de sushi, servidas em azulejos brancos (sobra da obra da cozinha), acompanhadas de uma dose de sakê gelado. Cinco pila. Os spots na rádio plagiavam uma propaganda do McDonalds. Fomos citados no caderno semanal Gastronomia. A febre do sushi-bar. Uma foto de meia página de um daqueles barcos lindos cheios de sushis e sashimis coloridos, menu de uma casa noturna de investimento milionário. Ao lado, na retranca, a fotinho da mão do Ricardo com as unhas meio compridas e sujas, dispondo singelos cinco sushis no azulejo branco sobra da obra.

Aos poucos o povo foi provando o sushi, achando nem ruim nem bom mas ficando pruma cervejinha e quem sabe o show, bebendo mais cervejinha, dançando, cervejinha, paquerando, cervejinha. Claro que sempre aparecia algum formador de opinião e era justamente a noite em que o Cláudio Monstro tinha resolvido inventar um sushi diferente, de cenoura e arroz integral na cerveja, por exemplo, e aí ficava aquele climão quando o formador de opinião saía com uma cara de azia.

Mas o fim justifica os meios, já dizia Maquiavel. A operação sushi foi um sucesso. Recuperamos nossa auto-estima e saímos do negativo. Ou vice-e-versa. Daí bastou um intensivo na produção pra rechear a agenda de shows e festas incríveis. E então TODO MUNDO voltou a frequentar o Garagem. Como antes. Melhor que antes.

Ao som de "Down on the street", The Stooges

Logo o verão chegou e o Cláudio Monstro rumou pra Guarda do Embaú pra trabalhar no restaurante vegetariano meio hindu que nesse ano serviria também um ou outro item da culinária japonesa, se é que sushi de cenoura e arroz integral na cerveja pode ser chamado de qualquer coisa além de uma coisa muito estranha. Deixou um pupilo pra assumir os trabalhos na cozinha mas o ocioso sushi-boy foi logo dispensado.

Em meio à fumaceira do bar apinhado de loucos, ao som estridente dos alto-falantes, na penumbra do inferninho lotado como nos velhos tempos, melhor que nos velhos tempos, quem iria pedir sushi?

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27.7.07

Homens notáveis III - Hunter S. Thompson

Não tivesse estourado os próprios miolos, teria completado 70 anos na semana passada.

Apaixonado por esportes, drogas e política, foi colunista e repórter da Rolling Stone Magazine. A revista foi a primeira a publicar seus textos jornalísticos, que entraram pra história da profissão sob a denominação Gonzo.

Hunter S. Thompson levou o new jornalism de Tom Wolf e Gay Talese a extremos até então impensáveis. Imparcialidade my ass! No jornalismo gonzo o repórter toma partido, além de todas drogas possíveis. Aliás, o repórter é a verdadeira razão de ser da reportagem.

Antes de publicar o livro que o tornaria conhecido, Hunter Thompson perambulou como repórter por grande parte dos Estados Unidos. Também trabalhou em San Juan, Porto Rico, e até no Rio de Janeiro (no Brazil Herald, um jornal diário publicado em língua inglesa no início da década de 1960). Rodou e conviveu com os Hell's Angels por tempo suficiente pra escrever um livro sobre a famigerada gangue de motoqueiros (e ser espancado por eles quando desconfiaram que iria lucrar com a publicação da história).

Mas foi em 1971 que apareceram, nas páginas da Rolling Stone, os capítulos de sua obra mais famosa. Fear and Lothing in Las Vegas relata a viagem do jornalista Raoul Duke, alter-ego de Thompson, até Las Vegas para a cobertura de um rally de motos. Na companhia de seu advogado e de todas as drogas que se possa imaginar (levadas numa valise), Raoul Duke penetra a fundo no tal do Sonho Americano e acaba por destruí-lo completamente. Nada escapa do olhar pessimista e desencantado do insano jornalista gonzo. Nem mesmo a contracultura e o flower power dos anos 60. Raoul Duke/Hunter Thompson enxergam a sordidez humana mesmo onde ela está mais escondida.

Fear and Lothing in Las Vegas foi adaptado para o cinema pelo ex-Monty Python Terry Gillian. Johnny Depp, amigo de Thompson, fez o papel de Raoul Duke. O livro foi lançado no Brasil com o título Las Vegas na Cabeça, mas estava há muitos anos fora de catálogo. Medo e Delírio em Las Vegas chega novamente às livrarias com tradução de Daniel Pellizzari, o Mojo. Lançamento da editora Conrad que já publicou outros títulos do autor.

Hunter Thompson se candidatou à xerife no condado de Pitkin, no Colorado, publicou reportagens sobre política na Rolling Stone durante muitos anos (ele acreditava que Richard Nixon era a encarnação do mal), foi cronista esportivo da ESPN e acabou tirando a própria vida em fevereiro de 2005. Johnny Depp pagou a conta do funeral. Segundo o ilustrador Ralph Steadman, amigo e colaborador, Hunter Thompson jamais poderia suportar o tédio. Destruir o Sonho Americano tem seu preço.

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23.7.07

PULP Enterprises present:

PULP CABARET
Especial Blaxploitation

Libere o lado negro que há em você.

Sábado, 28/07, a partir das 23h no Cabaret do Beco.

Na mestiçagem o TRIO FRICTURA (Drégus, Hell und Lio) apresentando sua seleção sonora de eletrorock, tecnopolca e punkfunk.

DJs Convidados: Funk Soul Brothers e Kudla Kan (a.k.a.) Rick Red Neck.

Ingressos a R$ 15, no local.

Ride on!


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21.7.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 14 - Edu K perneta


Outra medida pra bloquear a entrada da chinelagem foi a adoção do manjado sistema de cartão com uma consumação mínima. A consumação mínima era mesmo mínima: apenas o preço de uma cerveja. Mesmo assim evitava que os muito chinelões entrassem. Alguns amigos também ficavam de fora, mas aí era só mandar chamar que a gente liberava.


No início achamos que ia ser ótimo: a identificação do cliente na porta, controle maior nas vendas, no estoque. Mas foi péssimo. Não apenas por ter que conferir centenas de cartões às seis da manhã completamente bêbado após cada noite de trabalho, mas também porque tinha o lance dos calotes. Minas que perdiam o cartão e ficavam chorando com cara de gatinho triste até a hora de fechar e no fim eram liberadas, bêbados que dormiam no palco e eram rapados e deixados sem cartão, dinheiro e nem mesmo carteira de identidade pra gente confiscar ou ainda aqueles caras duríssimas que, ao fim da noite depois de trocentas cervejas marcadas, simplesmente diziam não tenho grana e aí era confiscar um documento e esperar a vida inteira pra receber a grana, já que uma segunda via saía muito mais barato.


Um desses calotes virou um caso folclórico.


A famosa história do Edu K perneta.


*


O Edu K perneta era um notório mala da noite roqueira. O apelido adivinha do duplo fato da figura ser um perneta que se auto-proclamava o Edu K. Acho que era um papo pra pegar as menininhas incautas, mas há de ser incauta pra acreditar numa lorota dessas. Andava de muleta, usava cabelo moicano, tatuagens nos braços. Ficava sempre na frente do palco, na maior empolgação. Pulava com uma perna só gritando e girando a muleta em volta da cabeça, cantava músicas que nem conhecia, derramava cerveja nos instrumentos da banda, coisas do tipo. Era um sujeitinho pegajoso, daqueles que te encontram e cumprimentam como se fossem amigos íntimos, o sorrisinho cretino estampado na cara, tapinhas nas costas, apertos de mão supercomplexos tipo negão do Brooklin, abraços efusivamente excessivos. Bêbado, ficava ainda mais chato e era comum que armasse confusão onde quer que estivesse, brigas, discussões, desentendimentos de toda a sorte, um causador de distúrbios ambulante (ainda que manco). O fato de ser manco e carregar a muleta só fazia acentuar a impressão de traste, de mala sem alças. Sabia muito bem como tirar proveito da condição física deficiente assumindo o papel do pobre aleijadinho sempre que lhe convinha, normalmente quando, num paroxismo de fúria, alguém partia pra cima dele.


O Edu K perneta aparecia seguidamente no bar, principalmente em eventos legais, show de banda bacana, festa descolada etc., tinha bom faro pra saber quando ia ter bastante gente pra ele encher o saco. Seja como for, apareceu numa noite movimentada. Deve ter ficado lá, perturbando por horas consecutivas.


No final da festa, quando eu fechava o caixa, o barman chega no escritório e diz:


Tem um perneta aí que tomou todas e não tem grana pra pagar a conta.


Fui até o bar pra ver qual era. O Edu K perneta estava lá, trêbado. O Paulão, o porteiro dessa época, segurava o desgraçado pelo cangote. A muleta estava largada no chão. Em cima do balcão tinha um cartão de consumação com várias cervejas marcadas e uma carteira vazia. Não lembro que desculpa deu, só sei que, um pouco pra me livrar do cara, combinei que ele pagasse na noite seguinte. Pensei que nunca mais fosse ver o caloteiro, o que me deixava simultaneamente aborrecido (pelo prejuízo) e reconfortado (por ter me livrado do mala).


Mas ele voltou na outra noite. Eu estava no escritório, que também era a cabine (ou melhor: esconderijo) do DJ. O Ricardo entrou:


O Edu K perneta taí, trouxe a grana pra pagar a conta.


Beleza, tu já pegou o dinheiro?


Não, tá na boa, ele me mostrou a carteira, tá recheada, depois a gente acerta.


E eu ainda pensei: tem certeza? Mas acabei não dizendo nada, sei lá por que. Retardamento mental, decerto.


Naquela noite o Ricardo foi mais cedo pra casa e eu tive que fechar o caixa. Déjà-vu total: no escritório, batem na porta, o barman. Já fui em cima:


O quê?


O perneta.


E me passou o cartão de consumação do cara: X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X.


O maldito tinha nos enganado duas vezes. Fui em direção ao bar. Precisava esclarecer qual era a jogada daquele filha-da-puta, afinal ele tinha mostrado uma carteira cheia de dinheiro pro Ricardo e o Ricardo podia ser bêbado, chapado e louco mas não era cego. Ainda mais em se tratando de $.


O bar já tinha fechado mais ainda rolava uma musiquinha de fundo, as luzes parcialmente acessas, um ou outro amigo mais chegado tomando a saideira e fumando um com os funcionários, que enchiam os freezers pra noite seguinte. Entre os remanescentes estavam as Little Sisters, que não trabalhavam mais com a gente mas eram freqüentadoras assíduas. A Flavinha e a Virgínia estavam sentadas na beirada do palco numa boa, curtindo os últimos momentos de uma viagem de ácido. Good vibrations etc.


Enquanto eu caminhava em direção ao bar, podia ouvir as risadinhas relaxadas das meninas. No meio do corredor me deparei com o Paulão segurando o perneta pelo cangote, completamente bêbado (o perneta, não o Paulão), meio que se apoiando na muleta, meio que pendurado, à mercê do tranco forte do segurança.


Qualé a tua, cara? Eu disse emputecido. Sei que tu tá cheio da grana, paga logo e vamos acabar com essa merda.


O Edu K perneta me olhou com uma cara de pateta. Pegajoso, colou a mão no meu braço e me entregou a carteira vazia:


Gastei tudo.


O Paulão, que já tinha revistado os bolsos do cara, balançou a cabeça, confirmando.


Cheirou toda a grana.


Então o Edu K perneta começou a encenar seu papel. Chorou, soluçou, ganiu. Se estrebuchava todo, um flagelo ambulante (ainda que manco) clamando por compaixão, criatura desafortunada, pobre vítima dos acidentes de trânsito, sacanagens da indústria farmacêutica ou outro drama humano qualquer. Mas por detrás da cena trágica eu podia perceber a farsa, risinhos bêbados escapulindo enquanto ele derramava as lágrimas de crocodilo. Enganei os otários mais uma vez, devia pensar, lá do fundinho do fígado. A mão pegajosa me agarrando o braço.


À merda.


Num acesso de fúria peguei o cretino pela camisa, dei umas sacudidas e empurrei-o pra longe, com força. O empurrão lançou o corpo alguns metros ao longo do corredor, a muleta caiu pro lado, uma perna pro outro.


Até então eu jamais tinha imaginado a razão do Edu K perneta ser perneta. Ou que tipo de perneta ele era. Eu pensava, sei lá, que era manco por causa de algum defeitinho na perna, pólio na infância, talidomida na amamentação, algo assim. Imaginava uma perninha deformada. Sem o pé, no máximo. Nunca cogitei que o cara simplesmente não tivesse uma perna inteira. Cena pesada, caros leitores, digna de filme trash. O corpo voando pelo corredor e a muleta e a perna postiça tombando cada uma prum lado, supersincronizadas. E eu olhando aquela perna de plástico cor de pele, cheia de fivelas, caída no chão, pensando:


Puta que pariu.


A cena congelou por um breve instante e nisso as Little Sisters chegaram atraídas pela barulho, rindo, englobadas por uma aura da Era de Aquarius, alto astral total, nada a ver com o clima pesado de freak show que rolava no corredor. A Flavinha vê a cena: o irmão, ameaçador, encarando um sujeito em lágrimas que jaz, sem uma perna, deitado no chão. Irmão mais velho, prevalecido na infância, dado a uns rompantes esporádicos de fúria, sabidamente sádico, histérico com certeza, de modo que minha irmãzinha não teve dúvida que eu tinha arrancado a perna do infeliz. Desatou a chorar, repetindo em pânico:


Por que tu fez isso? Por que tu fez isso?


Num efeito tipo dominó, a outra começou a chorar também. No chão, o Edu K perneta berrava que nem um porco com os minutos contados. Como se, de fato, lhe tivessem arrancado a perna. Histeria geral. Eu ali, segurando tranco. Mandei as meninas calarem a boca. Silêncio antes de qualquer descisão. O Paulão foi mais rápido e pegou o Edu K perneta que já tentava se esqueirar pra saída. Encheu-lhe de tabefes. Uns tapões que ecoavam no casarão. As meninas, em prantos, saíram ameaçando ligar pra polícia. Torturadores, diziam.


Interroguei o Edu K perneta sobre a grana enquanto o Paulão, qual um capataz de filme de gangster, esbofeteava o cretino sem piedade. Ele morava em Canoas, com os pais, e por um momento cogitei ir de táxi até lá pra cobrar dos velhos o dinheiro. Alguém me demoveu da idéia. Sabe-se lá que tipo de pais ele teria. A família do Leatherface decerto. Notei a pequena platéia formada por alguns clientes mais chegados e o barman e me empolguei: mandei o cara deixar as roupas e ir embora só de cueca.


Quando ele tirou a calça e o toquinho apareceu, me dei conta do horror da situação. A que ponto se desce, caros. Subiu pra cabeça, como se diz por aí. Ou desceu, sabe-se lá onde eu andava com ela. Recomposto, disse pro Paulão acompanhar o Edu K perneta até a saída e o eficiente porteiro, depois de chutá-lo escada abaixo, atirou a perna mecânica na cabeça dele.

*


No dia seguinte, relatei o episódio bizarro pro Ricardo. Também lamentei o duplo prejuízo que o desgraçado do Edu K perneta tinha nos dado. Duas noites bebendo às nossas custas.


O Ricardo, que pode até ser bêbado, chapado e louco, mas não é cego. Muito menos mudo, disse:


Bah, por que tu não ficou com a perna? Sabe quanto vale uma perna dessas?



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20.7.07

A letra de "Losing my edge"

LOSING MY EDGE
(James Murphy)

Yeah, I'm losing my edge.
I'm losing my edge.
The kids are coming up from behind.
I'm losing my edge.
I'm losing my edge to the kids from France and from London.

But I was there.
I was there in 1968. I was there at the first Can show in Cologne.
I'm losing my edge.
I'm losing my edge to the kids whose footsteps I hear when they get on the decks.
I'm losing my edge to the Internet seekers who can tell me every member of every good group from 1962 to 1978.
I'm losing my edge.

To all the kids in Tokyo and Berlin.
I'm losing my edge to the art-school Brooklynites in little jackets and borrowed nostalgia for the unremembered eighties.

But I'm losing my edge.
I'm losing my edge, but I was there.
I was there.
But I was there.

I'm losing my edge.
I'm losing my edge.
I can hear the footsteps every night on the decks.

But I was there.
I was there in 1974 at the first Suicide practices in a loft in New York City.
I was working on the organ sounds with much patience.
I was there when Captain Beefheart started up his first band. I told him, "Don't do it that way. You'll never make a dime."
I was there. I was the first guy playing Daft Punk to the rock kids.
I played it at CBGB's.
Everybody thought I was crazy.
We all know.
I was there.
I was there.
I've never been wrong.

I used to work in the record store.
I had everything before anyone.
I was there in the Paradise Garage DJ booth with Larry Levan.
was there in Jamaica during the great sound clashes.
I woke up naked on the beach in Ibiza in 1988.

But I'm losing my edge to better-looking people with better ideas and more talent.
And they're actually really, really nice.

I'm losing my edge.

I heard you have a compilation of every good song ever done by anybody. Every great song by the Beach Boys. All the underground hits. All the Modern Lovers tracks. I heard you have a vinyl of every Niagra record on German import. I heard that you have a white label of every seminal Detroit techno hit - 1985, '86, '87. I heard that you have a CD compilation of every good '60s cut and another box set from the '70s.

I hear you're buying a synthesizer and an arpeggiator and are throwing your computer out the window because you want to make something real. You want to make a Yaz record.

I hear that you and your band have sold your guitars and bought turntables.
I hear that you and your band have sold your turntables and bought guitars.

I hear everybody that you know is more relevant than everybody that I know.

But have you seen my records? This Heat, Pere Ubu, Outsiders, Nation of Ulysses, Mars, The Trojans, The Black Dice, Todd Terry, the Germs, Section 25, Althea and Donna, Sexual Harrassment, a-ha, Pere Ubu, Dorothy Ashby, PIL, the Fania All-Stars, the Bar-Kays, the Human League, the Normal, Lou Reed, Scott Walker, Monks, Niagra, Joy Division, Lower 48, the Association, Sun Ra, Scientists, Royal Trux, 10cc, Eric B. and Rakim, Index, Basic Channel, Soulsonic Force ("just hit me"!), Juan Atkins, David Axelrod, Electric Prunes, Gil! Scott! Heron!, the Slits, Faust, Mantronix, Pharaoh Sanders and the Fire Engines, the Swans, the Soft Cell, the Sonics, the Sonics, the Sonics, the Sonics.

You don't know what you really want. (x15)

E ao vivo na Trash, in London:

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Homens notáveis II - James Murphy

(Crônica que eu tentei ler no Talk Radio de hoje)


O sujeito que mais entende o que se passa no mundo atualmente não é filósofo, economista, muito menos político. Ele não foi convidado pra palestrar no Fronteiras do Pensamento. O lugar de onde ele observa astutamente o que acontece ao redor não é a academia. Ele está nas ruas. Nas ruas de Nova York, nos club de Berlim, nos I-Pods dos garotos de Tóquio, Barcelona, Londres, São Paulo. Porto Alegre? Por que não?

Ele nasceu em New Jersey mas mora, desde os anos 1980, em Nova York. Tem 37 nanos, é do tipo meigo (meigordinho) e está sempre com a barba por fazer. É casado com uma ex-modelo, tem uma cadela chamada Petunia, é músico, produtor, DJ, dono do selo DFA Records e o líder de um dos grupos mais festejados do momento: o LCD Soundsystem.

O LCD Soundsystem (entenda-se: James Murphy) faz a melhor fusão de rock e eletrônica que já existiu. Uma música altamente dançante que traz em seu DNA elementos que a colocam no numa linhagem que começa em Sun Ra e passa por Velvet Underground, New Order e Daft Punk. Além de músico e produtor antenado (a DFA lançou o primeiro álbum do Rapture e tem em seu cast o Hot Chip, nome de peso da dance music), Murphy é um letrista inspirado. O primeiro hit do LCD Soundsystem "Losing my edge" é uma crônica do mundo contemporâneo mais afiada que as teorias de muitos estudiosos. A tecnologia, a internet, o acúmulo de informações, as novas gerações atropelando por trás, a fusão entre o rock e a eletrônica, as dúvidas diante de tantas possibilidades que a realidade (virtual ou não) oferece. "Losing my edge" é um discurso vertiginoso declamado num jeitão algo entre Lou Reed e Gill Scott-Heron com nariz entupido. É, sobretudo, um groove venenoso de contrabaixo distorcido, bateria e efeitos eletrônicos. Música pra dançar e pensar.

"Losing my edge" foi lançada em 2002 e três anos depois veio o primeiro disco, LCD Soundsystem, uma sequência de hits matadores que deixam ainda mais claras as referências de Murphy (como na balada beatle, "Never as tired as when I'm waking up" ou na faixa que fecha o disco "Great release", uma homenagem a Brian Eno). O álbum foi lançado acompanhado de um cd bônus com os primeiros singles do grupo, incluindo "Losing my edge".

Sound of Silver saiu no início de 2007 e com ele Murphy marcou mais pontos. "North american scum", o primeiro single, junta David Bowie e Kraftwerk numa canção pop obsessiva que fala da América e de seus habitantes, aqueles mesmos que elegeram Bush Junior. "Não culpem os canadenses", berra Murphy ao final da música. "All my friends", o segundo single, já ganhou covers de Franz Ferdinand e John Cale.

James Murphy anda aborrecido com sua amada New York City, dominada por mauricinhos descolados. Ele tem tocado nos mais importantes festivais dos Estados Unidos, da Europa e do Japão e atualmente está em turnê mundial de seu segundo disco (hoje, 20 de julho, ele se apresenta no Festival Vieilles Charrues, na França). Já se apresentou no Brasil no Skol Beats, em 2005. No final do ano passado, participou de um projeto da Nike e da Apple, criando a faixa "45:33", trilha sonora pra ser ouvida em I-Pods especiais durante exercícios físicos. Um dos últimos lançamentos da DFA é um single com as versões pra "All my friends" e um cover do LCD para "No love lost", do Joy Division.

"You don't know what you really want", repete 15 vezes James Murphy no verso final de "Losing my edge". Filosofia em forma de música pop. James Murphy sabe o que está acontecendo. Ele percebe as transformações pelas quais nossas vidas estão passando, transformações causadas pelo uso e pelo abuso da tecnologia. James Murphy traduz essas questões em música. Mesmo que você não entenda uma palavra do que o homem diz em seu inglês novaiorquino fanho, apenas se deixe levar pelo ritmo. Periga aprender.

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16.7.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE


Capítulo 13 - Cocaína dez real ou Não basta descer até o fundo do poço, tem que cavocar

Parte II


Nessa época rolou um estranho fenômeno: todo mundo estava virando traficante, conseqüência da situação econômica hostil. Dali a pouco você encontrava um amigo que não via há um tempo, cidadão honesto e batalhador, figura acima de qualquer suspeita. Então desenvolvia uma breve conversa com o cara e, do nada, ele enfiava a mão dentro da calça, tirava da cueca um pedaço de papel higiênico amassado e abria a maçaroca. Disfarçadas na brancura do papel, apareciam as buchas:

Tafim? Tô fazendo uma mãozinha pra levantar um troco.

Também coincidiu que o cara que me descolava maconha um dia apareceu com pó. Tinha pegado de não sei quem, a um preço super bom. Um troço muito melhor que a porcaria que rolava no bar, aquele sal de fruta brabo. Comecei pegando um pouco de vez em quando. Em seguida já estava na função quase diariamente.

Coisinha de nada, mixaria. Eu pensava, patinho inconseqüente nadando em águas perigosas.

Passei a frequentar apartamentos de traficantes, uns lugares suspeitos, com latas de cerveja e cinzeiros sujos pelo chão. Tráfico de drogas é uma das piores profissões que pode existir. Além dos óbvios riscos com a lei – viver na contravenção et al – tem o lance de lidar com os drogados, o que é um grandessíssimo pé no saco. Ô, gente mais impregnante: 1) porque não têm simancol, batem no seu apartamento a qualquer hora (tipo cinco da manhã), gritam no interfone se não rola uma cocaína. Se você não estiver em casa, periga tocarem no vizinho pra perguntar, 2) por causa das manias.

Todo drogado tem uma relação muito peculiar com a droga que consome. Têm aqueles, por exemplo, que só cheiram com uma das narinas. Outros, revezam. Uns não cheiram em dinheiro porque pode passar doença. Outros, colonizados, só tecam em nota de dólar. Manias das mais variadas. Por exemplo, tinha esse cara que sempre pegava pó no bar. Cheirava todo dia, mas se alguém mencionasse a palavra vício perto dele tinha acessos ilusórios e moralistas sobre o seu auto-controle e eu paro quando eu quiser e blablablá.

O cara pintava, cedo da noite, e pegava uma buchinha. O traficante perguntava:

Não quer três? Te faço pelo preço de duas, superpromoção.

Não, eu só vou cheirar essa.

Tem certeza?

Tenho.

E então ele voltava dali a meia hora pra buscar mais uma e de meia em meia hora até as seis da manhã.

Pior são as manias nojentas dos drogados, como aqueles que peidam quando sentem o cheiro da cocaína. Eu tinha um amigo que, de tão cocainômano, só de ouvir a palavra cocaína ele já peidava.

Vamos pegar um pó? Alguém perguntava e as peristalses tinham início no interior do meu amigo. Eu tenho um canal do bom.

E ele quase se cagava.

Outra mania repulsiva dos junkies é lamber o plástico da bucha depois de cheirar o pó. Abrem a buchinha, esticam o plástico e passam a língua ou esfregam nas gengivas os resquícios do produto. Uma coisa muito nojenta. Uma vez presenciei um conhecido músico da cena local que, não satisfeito em ter quase dissolvido o plástico de tanto lambê-lo, lambeu também a própria nota com a qual cheirara o produto. Desenrolou a cédula e, em movimentos precisos e ritmados (me lembrou uma máquina de costura fazendo a bainha num tecido) percorreu meticulosamente com a língua lépida a nota de um real, das mais manuseadas na praça.

Também têm as manias dos cheiradores e as manias dos tomadores. Uma noite bateram na porta do escritório. O bar cheio de gente do lado de fora e eu entocado lá dentro. Abri uma frestinha e dei uma espiada, um vago conhecido (VC) acompanhado de um completo estranho (CE).

Tafim dum teco? Me perguntou o VC.

Os caras entraram, o VC pegou um cd e esticou duas carreiras, o CE pediu pra usar a pia (nessa época o escritório/casinha do DJ/cheiródromo ficava na cozinha). Achei que fosse lavar as mãos. Me abaixei pra dar o teco, o CE foi até a pia e voltou com a manga da camisa dobrada, uma seringa na mão, tudo muito rápido, perguntou:

Tudo bem?

Não seja hipócrita, pensei.

Vai firme.

Fiquei olhando o cara tomar o pico com curiosidade científica. Tirou do bolso um pedaço de barbante e amarrou no braço, fazendo o torniquete. Fincou a agulha na veia, afrouxou o barbante e empurrou o êmbolo com firmeza. Um fio de sangue escorreu do buraco depois que ele retirou a agulha. Pôs de lado a seringa e só então me veio a repulsa: quando limpou o sangue com a própria bucha vazia, ainda contendo uns restinhos de cocaína. Nem sei o que fez com ela depois, não pude mais olhar. Talvez a tenha engolido, junkies são capazes de qualquer nojeira.

*

Um dia recebi um telefonema. A namorada do cara que descolava o pó:

Sujou.

Fiquei completamente paranóico, eu tinha frequentado aquele apartamente demais nos últimos tempos. Comecei a achar que estava sendo perseguido, que a polícia ia invadir o bar a qualquer momento, que meu mundo, assim como o da Maysa, ia cair. Passei uma semana trancado em casa. Só na tele-pizza, sem tirar o nariz pra fora. Desliguei o telefone.

Alguns dias e pizzas depois, caiu a ficha:

Mas que merda eu ando fazendo?

Queimando o filme, botando tudo a perder.

Virando um viciado ainda por cima.

Se as previsões do Tim Maia estiverem certas eu acabo dando o rabo rapidinho.

Na primeira noite depois do meu auto-exílio, completamente limpo, observei estarrecido as cenas que transcorriam no bar.

O fundo do poço era terraço perto daquilo. Nossa clientela havia se transformado num bando de cocainômanos desesperados, gente suspeitíssima cheirando pelos cantos, a maioria homens usando bonés. Brigas explodiam a todo momento, ajustes de contas entre trafis, surras em consumidores inadimplentes, barbarismo.

Porra, por onde eu andei esse tempo todo? Perguntei pro Ricardo que assistia a tudo com o mesmo assombro.

Ele não respondeu à minha pergunta retórica furada. Assim como ele, eu sabia muito bem aonde a gente tinha estado nos últimos seis meses: trancados no escritório, cheirando todas, dançando a mesma valsa dos vampiros de boné, a casa inteira sob uma maldição como num conto de terror. Mas bastava interromper o consumo do veneno pra que o feitiço se desfizesse.

Putz, a gente tem que tomar alguma providência.

Urgente.

Vai sujar.

Feio.

Precisávamos de um plano para nos desvencilhar daquela teia de cocaína na qual estávamos enredados, uma estratégia de ação pra expulsar a escória e trazer de volta nossa clientelinha querida, drogaditos inocentes de classe média, gente que não trazia perigo nenhum.

Demos uma de Carlito Brigante. Chegamos em todo mundo que estava traficando no bar e falamos:

Ó, a partir de agora o lance vai ser diferente, chega de ficar traficando como se isso daqui fosse a Rocinha. Se nego for pego metendo pó aqui dentro vai expulso e não volta mais.

Depois que a chinelagem fosse expulsa a gente pensaria em como trazer os bons clientes de volta e encher os bolsos de dinheiro honesto, até porque com o desonesto eu só enchia o nariz e ainda estava perigando ir em cana ou perder o bar ou matar alguém de overdose ou me matar de overdose ou acabar dando o rabo conforme as previsões do Tim Maia.

Da noite pro dia as regras mudaram na casa, nada mais de cheirar nas mesas, traficar no banheiro ou gritar cocaína dez real na pista impunemente. Repressão total, neguinho escancarou usando drogas no bar: rua.

Mas foi só um tequinho no banheiro?

Não interessa: rua.

Um pega numa pontinha?

Foda-se: rua.

Em nossa cruzada moralizante logramos expulsar muitos traficantes e queimadores de filme, nunca sem antes ouvir juras de morte, ameaças de vingança, pragas mortais, que iam nos pegar na saída, nos matar, matar nossos filhos, esposas, mães, gatos, cachorros, periquitos. Mas a gente não estava nem aí, via o sujeito vendendo cocaína, chamava o porteiro e apontava na cara:

É esse, pode levar: rua.

Graças ao Bom Senhor ninguém jamais cumpriu as ameaças. Mas uma vez cheguei a pensar que tinha chegado, enfim, meu fim. Caminhava à noite pela Osvaldo quando um vulto se aproximou por trás, sorrateiro. Só o percebi quando já estava muito próximo, quase colado. Sussurrou no meu ouvido:

Se eu quisesse te dava uma facada.

Ufa, ainda bem que não queria. Era uma dessas figuras que eu tinha enxotado do bar, um negrinho com dentes (poucos) enormes e cara esfomeada.

Decidi evitar a Osvaldo à noite por uns tempos. A vida vale mais que uma cerveja na Lancheria do Parque.

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13.7.07

Dia do Rock - crônica lida no Talk Radio de hoje

Mais uma empulhação que nos enfiam garganta abaixo. Ou melhor: rabo acima - estão sempre nos fodendo mesmo. Pra piorar, cretinamente encoberta com máscaras altruístas. Por causas nobres, o cu dói menos.

O motivo da efeméride é o aniversário do Live Aid, mega concerto que aconteceu simultaneamente em Londres e na Filadélfia, em 13 de julho de 1985, com o objetivo de arrecadar fundos em prol dos famintos da Etiópia. O evento foi organizado por Bob Gedolf, um cantor medíocre que ficou conhecido pela atuação no filme "Pink Floyd The Wall". O Live Aid reuniu centenas de medalhões da música pop (citando apenas uma dezena: Bowie, Dylan, Eric Clapton, U2, Madonna, Paul McCartney, The Who, Black Sabbath, Queen e até a princesa Diana). A transmissão pela TV atingiu a audiência de 1,5 bilhão de pessoas, número que o Live Earth do também medíocre Al Gore não passou nem perto.

Vinte anos depois, um bando de executivos, auxiliados pelos cérebros superdotados dos publicitários, inventa o Dia Mundial do Rock. Tão fácil quanto tirar doce de um emo. O Dia Mundial do Rock é o novo Dia das Mães. Meio disfraçado de Dia do Índio, já que tem um aspecto, digamos, social. E ainda com um saborzinho de Dia da Pizza porque, afinal de contas, é gostoso. Todas essas datas servem pra mesmíssima coisa: vender. Seja celular, cocar, pizza ou All Star. Não é mesmo uma grande coincidência que o Dia Mundial do Rock tenha sido criado justamente agora que as gravadoras estão quebradas?

Esses gênios do mal das mega-corporações querem acabar com que o rock tem de melhor. Enquadrar o que nasceu pra não ser enquadrado. Só falta agora quererem inventar Faculdade de Rock. Ai!
Como mais ou menos dizia a Baby Consuelo (que já foi roqueira mas agora é evangélica) todo dia era dia de rock. Mas agora ele só tem o dia 13 de julho. Tadinho.

Por isso vos conclamo, verdadeiros roqueiros, vós em cujas veias correm riffs ao invés de hemoglobina, vôs filhotes de Lennon e McCartney, escarros de Sid Vicious, devotos de Axl Rose, protótipos de Julian Casablancas, vós que sonhais com guitarras elétricas, vós que usais calças apertadas e pulseiras de tachas, vós que ostentais no peito buttons do The Who, vós com topetes engomados, eu vos conclamo à rebelião!

Em 13 de julho de 2007, Dia Mundial do Rock, proponho a primeira Greve Geral do Rock.

Atirai-vos de ouvidos atentos na cadência do samba, na batida do funk, nos nuances do jazz, no transe eletrônico do tecno, no barato narcótico do reggae, no papo hipnótico do rap. Em Cartola, Coltrane e Nat King Cole, Gonzagão e Gonzaguinha, Billie Holiday, Grace Jones, Donna Summer, Simian Mobile Disco, Basement Jaxx, Daft Punk, Diana Ross & The Supremes, Smoking Robinson & The Miracles, Harold Melvin & The Blue Notes, Miles, Mingus e Monk, Strauss e Sebastian Bach (não confundir com o vocalista do Skid Row), Paulinho da Viola, Tom Jobim, Astrud Gilberto, Isaac Hayes, Bob Marley, Frank Sinatra, Frank Sinatra, Frank Sinatra.

Existe um universo inteiro de música maravilhosa esperando por seus ouvidos, basta uma boa conexão e um pouco de paciência.

Todavia, roqueirinho amigo, se este 13 de julho de 2007, Dia Mundial do Rock, te inspirar prum solo genial ou praquele refrão sacado que buscavas a tanto tempo, te proporcionar um show inesquecível, diversão etílica com os melhores amigos, sexo com aquela groupiezinha predileta, eu te digo: tá valendo.

Porque, afinal, qualquer dia é O Dia.

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10.7.07


PULP FRICTION #54
A edição 54 da festa mais animada da província vem recheadíssima de atrações:
No Ocidente, o inatacável TRIO FRICTURA (Drégus, Lio & Hell) apresenta seu set matador cheio de novidades, velharias e esquisitices altamente dançantes.
No Espaço OX, pela primeira vez em Porto Alegre, show do IMPÉRIO DA LÃ, agremiação musical liderada pelo Imperador Carlinhos Carneiro (Bidê ou Balde) que junta músicos de algumas das principais bandas da cena roqueira da capital: Pedro Petracco (Cartolas), Gustavo "Prego" Telles (Pata de Elefante), Guri Assis Brasil e Guilherme Almeida (Pública), Guilherme Netto (Stratopumas), Júlio Porto (Ultramen), Chico Berlota (Groove James), entre outros. No repertório, composições próprias, além de sucessos dos Beatles, Frank Sinatra, Beck, Tim Maia e Wilco.
Como Djs convidados, Dani Boy, atacando de hits do novo rock, e o coletivo LO PEOR DEL DÍA, apresentando músicas inspiradas nos bafos e bizarrices dos filmes de Almodóvar.
É no próximo sábado, dia 14/07, a partir das 23h, no Bar Ocidente (João Teles esquina Osvaldo). Ingressos no local a R$18 (valendo uma cerveja), ou antecipados a R$15 nas lojas Rouparia e Lei Básica.

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6.7.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 13 - Cocaína dez real ou
Não basta descer até o fundo do poço, tem que cavocar

Parte I


Cocaína é uma merda. Só mesmo a séria tendência masoquista que me acomete pode servir pra justificar todas as vezes que usei essa droga de merda. Porque não houve uma sequer em que não tenha pensado: que merda. O único momento realmente bom da cocaína é quando se está com um lado do canudo enfiado na narina e o outro percorrendo a carreira, fazendo sumir aos poucos os floquinhos brancos (se não estiver melada) carregados no ar em direção ao nariz através do túnel feito de cédula enrolada: o ato de cheirar propriamente dito, o rito, momento que dura mais ou menos (dependendo do tamanho da carreia) um segundo e depois que o sujeito levanta a cabeça e dá uma aspirada forte sentido o amargo na garganta e levando a droga direto pro cérebro, plim!, se esvai junto com os dez reais. Então é só merda: boca seca, espasmos faciais, mãos geladas, suor frio, mau hálito. Em termos psicológicos os danos são ainda maiores. Nunca saquei essa de cheirar e se sentir o super-homem. Rolava o efeito adverso: o supermerda, dominado por uma sensação arrebatadora de fragilidade e solidão. Muitas vezes me peguei com os pensamentos mais sinistros sob o efeito do pó: suicídio, falência, incêndio, assassinato. Mesmo na companhia dos melhores amigos, em ambientes agradáveis e insuspeitos como o próprio aconchego do lar, na fruição da conversa viajandona de fim de noite eu podia identificar a base pessimista nas idéias e falas, um direcionamento negativo naqueles papos existencialistas típicos dos muito loucos, filosofia botequiniana baseada na certeza irrefutável de que a vida ruma pra morte. Sem falar nos sortilégios da deusa dos junkies, a Paranóia, em cujo altar todo drogado deve imolar-se.

A questão do sexo também é bastante complexa em se tratando de cocaína. Dizia o Tim Maia: quem muito cheira acaba dando o rabo. Só pela máxima desse especialista já dá pra sacar a complexidade do negócio. Na maioria das vezes é uma frigidez pânica, o aniquilamento de todo e qualquer tesão, sobrando nada além de uma libido seca que nem com colher se raspa do fundo do pote do corpo, o pau encolhido no meio da cueca, coisinha irrisória tipo pica de guri em domingo de piscina, o que faz com que ao roll dos pensamentos negativos imediatamente se acrescente o tópico impotência. E como beijar com a boca tão seca? Apalpar com a mão gelada? E o mau hálito? Cocaína e sexo aparentemente não combinam. Digo aparentemente, porque, pra confirmar a complexidade do caso, cocaína e sexo também podem combinar muito bem. Quando o pó branco abre a caixinha de Pandora dos bad feelings liberta outros bichinhos trancados juntos por engano, presos lá dentro por conta de instintos repressores, culpa católica, timidez, insegurança, homossexualismo latente, perversões sexuais extremas que na hora H (na hora S, do sexo) durante esse caratê de caralhos, bucetas, dedos, bocas e cus, são como o golpe decisivo que leva o lutador à vitória (ou ao empate como seria mais justo e agradável): a possibilidade de um orgasmo alucinante.

Repito: sexo e cocaína é assunto complexo. Como é possível uma mesma substância conduzir a estados físicos e psicológicos tão distintos? Explicaria Freud? O caso é que, afora a tendência masoquista, fica difícil encontrar justificativas pra compulsão mórbida de seguir insistindo no erro. Quem sabe a falta de nada melhor pra fazer, tédio ou mesmo a facilidade: o troço estava sempre lá ao alcance do nariz, toda hora alguém precisando do escritório pra dar um teco ou um traficante que vinha fazer uma presença pros donos ou um velho amigo ligadão à procura de um interlocutor. Em épocas mais nefastas, dava a impressão de que todo o bar estava cheirado, noites inteiras e consecutivas movidas à cocaína, centenas de pessoas em função do produto, comprando o pó de péssima qualidade que circulava no recinto. Se um traficante daqueles fosse pego pela polícia nunca seria enquadrado por tráfico. Tráfico de aspirina? De sal de fruta? Talco? Giz? Só no código de defesa ao consumidor poderia haver alguma lei que enquadrasse aqueles delinqüentes, algo como propaganda enganosa ou falsidade química.

O fundo do poço foi em 95 (equivalente ao 75 do Bowie: ano em que o cara não se lembra do que aconteceu porque estava afundado numa montanha de cocada). A maconha parecia estar fora de moda e era impossível conseguir um baseado no bar. Em compensação, cocaína, ou pelo menos aquilo que os traficantes diziam ser cocaína e que, pior, os consumidores acreditavam, tinha de sobra. Era gente esticando nas mesas, cheirando no banheiro de porta aberta, na escada, na frente do bar, na sala dos fundos, na pista de dança, traficantes gritando pelos cantos:

Cocaína dez real!

Seringas encontradas no dia seguinte pelos cantos do bar, em frestas no chão ou em lugares improváveis como a caixa da descarga do banheiro. Um dia não funcionava e fomos ver qual era o problema, o Ricardo subiu na privada, espiou pelo buraco e tirou de dentro da caixa três seringas enferrujadas. Alguns junkies têm lá seus caprichos.

O cúmulo da selvageria aconteceu quando traficantes começaram a vender pra traficantes. Gente que metia pó em outros bares da cidade e que, quando terminava o produto, vinha repor o estoque no Garagem onde a oferta era abundante. Acho que pelo menos 20% da nossa clientela nessa época era composta por traficantes. Isso quando o bar estava cheio. Vazio, podia chegar tranqüilamente a 100%. Tudo isso se passando sem que nós, os donos, tomássemos qualquer providência. Ocupados demais cheirando no escritório.

Alguns traficantes se tornaram personagens clássicos na noite garageira. Como o Big Ant, um negão magro e desdentado, malandro brasileiro típico, que uma vez vendeu aspirina prum traficante argentino e depois quase morreu de tanto tomar porrada na pista de dança. A história o seguinte: o cara apareceu no bar, grandalhão, jaqueta de couro e bota, anelões nos dedos, cabelo comprido bagaceiro de argentino, a motoca estacionada na frente, metia pó em bar de maurício e tinha ido ali pegar mais, entrou, perguntou quem vendia pro primeiro negão desdentado que encontrou e o Big Ant respondeu:

Tá na mão.

Daí que o Big A foi até o banheiro, cheirou o pó, esmagou umas aspirinas, voltou e vendeu pro gringo o remedinho, o cara pagou, botou o troço no bolso, subiu na moto e pulou fora, tudo muito rápido. Deve ter se dado conta logo em seguida porque foi o tempo de dar a volta na quadra pra que o cara já estivesse montado em cima do negão, imprimindo a forma dos anéis na cara subnutrida. Big Ant teria os dentes quebrados naquela noite se ainda tivesse dentes. Mas afora a malandragem inata, Big A era um cara legal, bem-humorado, excelente contador de piadas. Inteligente à sua maneira.

Tirando essas cagadas que tu comete de vez em quando, negão, tu até que é esperto. Eu costumava dizer pra ele. Preto, feio, pobre, sem dente, tu saiu em muita desvantagem nessa vida, se não fosse esperto já tava fudido.

Outro trafi gente fina era o Little Juice. Cara educado, pai de duas guriazinhas, vendia o pó menos malhado que poderia ser comprado no Garagem. Quando era muito ruim, o Little Juice dizia:

É bom. Mas fazia uma careta que entregava o jogo.

Vivia falando que um dia ia parar de vender, estava construindo uma casinha pra família nos fundos do terreno do pai, lá na Bom Jesus, e precisava muito da grana. Era discreto e nunca dava bandeira. De repente sumiu da noite e um dia o encontrei numa rua do centro, usava um uniforme de empresa e carregava uma pasta debaixo do braço. Morava com a família na casa que tinha construído sozinho, tijolo por tijolo. Não cheirava há meses.

Tinha também o Vibe, mais conhecido como Bad Vibe. Figura sinistra, estilo hippie-satânico, Charles Manson em versão de migrante nordestino em Porto Alegre. Barba rala e comprida, dentes estragados de comer cogumelo, dread-locks fedorentos, dúzias de colares dependurados no pescoço e anéis em profusão em torno dos dedos de unhas sujas (a do mindinho era mais comprida). Sempre aparecia acompanhado de uma menina bonitinha que parecia enfeitiçada, imersa num transe, se deixando beijar por aquela boca asquerosa e ouvindo passiva os comentários do charlatão:

Essa é filhinha de papai rico. Faz qualquer coisa por um teco.

Voz sibilante e acintosa. Se dizia bruxo, carregava um cajado com uma serpente de durepóxi esculpida no cabo e costumava ler a sorte de quem lhe comprava pó, a pessoa estendia a mão pra pegar o produto e ele a agarrava e não soltava até que fosse pago. Vidente e alquimista, pra lucrar no tráfico também usava métodos encantatórios: ao toque de seu bastão mágico, julgava transformar qualquer pó branco em cocaína.

Por fim havia o Johnny. Um loiro com cara de colono e cabelo Ramone, sempre de jaquetinha de couro, calça jeans apertada e tênis All Star. Circulava entre a gurizadinha punk, o cabelo amarelo em cima da cara, disfarçando as rugas de uma velhice precoce. Se dava bem, o filha-da-puta, sempre com alguma garota a tiracolo, quando não duas. Uma vez me contou do seu método com as mulheres. Entupia-as de cocaína a noite toda. Depois, em casa, com as minas fissuradas por mais um teco, fazia a proposta:

Já experimentou cocaína pelo cuzinho?

É mucosa, absorve igual. Completava com ar de doutor.

Rabos empinados e dá-lhe o Johnny a empoar os cus das minas. Depois de bem anestesiados, metia com tudo, o sacana. Mas um dia o Johnny sacaneou com a gente: passou uma nota fria no balcão, nota gorda, falsificação grosseira que o Gelson, o barman, aceitou num momento de vacilo. Azar o dele, pagou igual. Aí ficou putíssimo da cara e jurou o Johnny de morte. O Gelson, bicha macho pra caralho, disse pro porteiro:

Ó, se tu deixar esse cara entrar, eu faço o maior bafão, dou uma garrafada na cabeça dele e mato o filha-da-puta. Vocês não sabem do que eu sou capaz!

Bicha vingativa é foda. E o Johnny ficou sem aparecer por um tempão. Depois pintava de vez em quando e ficava varejando na porta por horas, escorado no poste da frente, rasgando as meninas que se aproximavam. Às vezes se fazia de louco e tentava entrar aproveitando um descuido do Jorge, o porteiro. Mas o velho tinha a manha, pegava o Johnny de leve pelo braço e sussurrava no ouvido:

Olha que o Gelson te mata.

E o Johnny dava meia volta.
(continua)

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2.7.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 12 - Noite Vazia

Não foi uma, foram várias. Nada de glamour. Bar-fantasma sem alma penada. A noite custando décadas pra passar e a gente torcendo pra que desse ao menos algum pro táxi. Sacanagem ainda ter que ir pra casa a pé depois de uma noite inteira trabalhando. Se bem que trabalhando seria mais um modo de dizer porque o que se fazia numa noite dessas era basicamente beber, fumar e cheirar pra passar o tempo. O tédio é o pior inimigo do homem. As noites vazias que estou falando aqui não são, por exemplo, aquelas que seguem fracas até às três da manhã quando, de repente, o povo começa a aparecer e eis que a festa vira um sucesso, tardio porém sucesso. Não. Noite vazia aqui é noite vazia mesmo. Deprê total. As horas rastejando intermináveis e inúteis enquanto você torce que dê ao menos algum pro porteiro (qualquer chance de ir pra casa de táxi já foi pro brejo).

No auge do verão eu chegava a levar televisão e vídeo-cassete pro bar e ficava lá assistindo a favoritos como o recém lançado Pulp Fiction; o clássico do humor negro Doutor Fantástico ou um pouco de putaria psicodélica como Garganta Profunda, isso quando eu não tinha que trabalhar na portaria, porque no auge do verão a gente dispensava até o porteiro, melhor garantir o táxi. Nessas noites, eu e o Ricardo dividíamos a pouca grana do caixa (tipo uns cinco pila pra cada um) e acabávamos voltando na pernada pra casa, melhor garantir o almoço do dia seguinte. O fato é que as noites vazias sempre acompanharam a nossa existência. Como um herpes. Causas variadas: evento mal divulgado, chuva, sábado de Carnaval, promotores desacreditados, repé da noite anterior, melhor opção na concorrência, fim de mês, banda chata e, principalmente, durante todas as vezes em que estivemos à beira da falência (e não foram poucas) quando o público parecia sentir o cheio do fracasso e suavemente, como aves estúpidas, migrava pro bar da frente, pro Ocidente, pro bar do Marcos ou pra qualquer bar bem longe, sem nem passar por perto, minto, passando na frente, perguntando pro porteiro: tem gente? e ouvindo um tem (bons porteiros nunca revelam a eventual condição de noite falhada do bar onde trabalham, está no código de ética da profissão) e pedindo: posso entrar pra dar um confere? (Faca de dois gumes: deixando ou não o cara vai embora.) E esse senso de perigo, falência, fracasso, a iminência de uma catástrofe que paira no ar deixando um clima de caos permanente, é que dava o suporte pra gente se reerguer do vazio, Fênix que surge das cinzas do baseado: púnhamos os velhos cérebros combalidos pra trabalhar e vinha alguma idéia mirabolante (tipo sushi bar, pode?), prontamente acompanhada – of course – de uma pinturinha interna à qual chamávamos de reforma, que nos tirava da merda e fazia com que voltássemos a ser sucesso sem que nenhuma grande mudança tivesse, de fato, ocorrido. Sou obrigado a confessar que a gente tinha mesmo a manha.

Duas noites vazias permanecem registradas no inventário apagado da memória. Mais por um senso de desperdício que qualquer outro motivo:

1) Certa vez as Little Sisters produziram uma festa à fantasia inspirada em personagens do cinema. Então a Flavinha foi de Cesare, o zumbi expressionista de O Cabinete do Dr. Galigari, olheiras fundas, corte de cabelo anos 1920 e aquele jeito de caminhar se esgueirando abraçado na parede. A Virgínia se fantasiou de Olívia Palito e uma amiga, a Cris, foi com a mesma fantasia. Duas Olívias e nenhum Brutus ou Popeye, total quebra de paradigma. Eu andava numa fase Al Pacino e resolvi ir de Serpico, o policial hippie do filme do Sidney Lumet. Deixei a barba crescer (não tinha muita, confesso), vesti umas pantalonas e uma camisa de gola e punhos gigantescos, desencavei de um baú na casa da minha mãe uma peruca do tempo do Serpico, enfiei na cabeça um chapéu esportivo (tipo aqueles dos Stone Roses) cheio de buttons e calcei uns sapatões de salto, me achando o máximo. Mas creio que o Serpico era um personagem por demais, digamos, hermético. Logo na entrada do bar, um cliente me olhou e disse: Roberto Carlos! Descartei o chapéu e assumi o novo personagem. Todo mundo achou a fantasia de Rei ótima, ainda bem que eu tinha pouca barba naquela época. O Ricardo entrou numas e disse que não ia se fantasiar, imagina que mico, mas na hora ficou com cara de criança emburrada que se arrepende de não ter entrado na brincadeira. A festa foi um sucesso e, pensando numa segunda edição, as Little Sisters agendaram pra alguns meses adiante um Baile de Máscaras. Durante aqueles meses elas se puxaram muito: confeccionaram centenas de máscaras de papel machê incríveis, tipo Carnaval de Veneza psicodélico. No dia da festa decoraram o bar com panos e velas, iluminação vermelha, deixando tudo envolto num clima misterioso, erótico. A festa prometia. Mas a promessa não se cumpriu. As horas passavam e eu assistia às velas derretendo em cima das mesas, os panos solitários pendurados no corredor, os olhares decepcionados das meninas, a tristeza amarga do fracasso. Até hoje não sei porque ninguém aparceu. Nem o que elas fizeram com todas aquelas máscaras.

2) A outra vez tem motivo. Um temporal que alagou a cidade. Daquelas chuvas medonhas que começam no cair da tarde e seguem noite adentro sem dar a mínima trégua. Só louco pra sair numa noite dessas. Então apareceu o Otto Guerra e acho que o sujeito deve ter um ímã de ninfetas porque logo depois pintou uma menininha que andava frequentando o bar nas últimas semanas. O Otto, a ninfeta e eu fomos os únicos espectadores de um dos shows mais incríveis que já houve no Garagem. Era o pessoal da Molly Guppy, um coletivo de freaks que trabalhava com música, artes gráficas e reciclagem - dentre os quais o Edu e a Mari, que seriam os fundadores da Space Rave, verdadeiro baluarte do noise sulista. Quem entrava na festa (no caso, só o Otto e a ninfeta) ganhava um fanzine criado pelo Itapa, o guitarrista da Molly Guppy, e umas bijouterias malucas feitas de botinhas do Falcon, cavalinhos de plástico, bracinhos de boneca e outros objetos improváveis. O mundo desabava lá fora, na lateral da pista de dança uma goteira em forma de queda d'água escorria pela parede. O show começou. Sobre uma tela afixada na frente do palco, umas projeções em slide mostravam a história em quadrinhos Squeak the Mouse, do Massimo Mattioli. Por trás da tela, a banda provindenciava a trilha sonora usando instrumentos construídos por eles próprios, um contra-baixo tosco de toco de pau, pedais caseiros, bateria enjambrada de latas e caixotes. Umas silhuetas embalando com ruídos estranhos a barbárie de gatinhos e ratinhos fofos em orgias de sexo e assassinato. Reparei que a ninfetinha corou quando o gato fez uma suruba com três gatinhas. Quando o ratinho morto-vivo chacinou todos os outros bichinhos com uma motoserra ela já estava no papo (ainda que vazia, toda noite é noite). De repente faltou luz. Blecaute geral, donde fui obrigado a me dedicar às tarefas de administração do moquifo (achar umas velas por exemplo). Então o Otto foi mais rápido e arrastou a ninfeta prum canto escuro (qualquer um àquelas alturas) e aplicou o papinho. O sujeito é expert, vale lembrar. Levou e eu fiquei a ver, não sei se navios mas pelo menos a Arca de Noé, tamanha chuva. Nem todas a gente ganha, afinal.

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