25.8.08



Wax the van!

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22.8.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: WIM WENDERS
Parte II
Soube que, na noite da chegada de Wim Wenders à cidade, um convescote (sic) reuniu, de maneira informal, o cineasta, jornalistas e intelectuais. Porra, eu nunca sou convidado pra esse tipo de coisa, pensei. Deve ser porque falo muito palavrão, merda! Na tarde seguinte, Wenders, sempre solícito, participou de uma palestra para professores e alunos do curso de cinema da PUC. Quando deixei o Salão de Atos, depois da conferência, ele concedia uma entrevista para um programa de tevê, transmitido do saguão do auditório, no olho do furacão do Fronteiras (David Lynch, que medita, não teve um décimo da paciência). Durante a coletiva, foi extremamente atencioso com os jornalistas que contribuíram, na maioria, com perguntas decentes.

A crítica Ivonete Pinto mandou bem com uma sobre a experiência de Nick’s Movie, que registra as últimas semanas de vida do cineasta Nicholas Ray. A idéia original era fazer um filme de ficção que desse continuidade ao personagem de Ray em O Amigo Americano. Mas a doença do diretor de Juventude Transviada e Johnny Guitar impediu o projeto de avançar.

“O câncer foi mais forte que todas nossas idéias ficcionais.”

Como Ray queria muito fazer o filme, Wenders adaptou-o para o que se transformaria num tocante documentário sobre a morte de um artista. Experiência assustadora que só não foi interrompida a pedido do médico de Ray. Para viver, seu paciente precisava continuar o filme. Wenders filmou Nicholas Ray até o último momento possível, no leito de hospital.

“É um mistério que isto exista em filme.”

O tema da morte também rendeu comentários sobre seu novo filme Palermo Shooting, em que um fotógrafo alemão vai à Itália e consegue fotografar a morte, na forma de uma mulher. Li em algum lugar na blogosfera que o filme recebeu péssimas críticas. Deve ser por isso que Wim Wenders não mais as lê, conforme revelou na coletiva.

“Meu filmes preferidos obtiveram as piores resenhas.”

O Marquinhos Mello, afiado como sempre, fez referência ao documentário Chambre 666 pra perguntar sobre o futuro do cinema. Wenders realizou o filme durante o festival de Cannes de 1982. Pôs uma câmera 16 mm num quarto de hotel. Os diretores que participavam do festival eram convidados a entrar, ligá-la e responder à pergunta: qual o futuro do cinema? A referência do Marquinhos foi a deixa pra Wenders contar que lhe haviam proposto o mesmo desafio, algumas horas antes naquele hotel. Idéia do Gustavo Spolidoro (baita espertinho), que fez um documentário encomendado pela organização do evento (também deve ter sido do Gus a idéia de dar uma camisa do Inter pro Wim Wenders).

O correspondente do JB fez uma pergunta péssima, daquelas com uma longa introdução traçando um breve apanhado da carreira do artista e destacando aspectos relevantes de sua obra, pronunciada num tom tão blasé que fez com que o tradutor (baita profissional) perguntasse ao fim:

Hein?

E pediu que repetisse a segunda parte. O correspondente do JB refez a pergunta, suprimindo a introdução, uma pergunta boba que Wenders respondeu com a maior gentileza, tão vagamente quanto tinham lhe perguntado. Dois guris cabeludos que faziam a cobertura prum site quiseram saber da relação do rock com o trabalho do cineasta. Wenders, que leciona numa escola de arte em Berlim (“Nas escolas de arte entende-se o cinema num sentido mais amplo. Escolas de cinema são muito voltadas para a carreira.”) e deve estar acostumado a lidar com os jóvens (como diria o Carlinhos), respondeu que morria de inveja dos roqueiros.

“Eles têm muito mais liberdade que os cineastas.”

Confessou que, em suas aulas, está muito mais interessado com o futuro do que com o passado do cinema. Sente gratidão pelos mestres mas prefere o trabalho das novas gerações. Também contou da visita de Glauber Rocha ao set de O Estado das Coisas, em Sintra, pouco antes de sua morte. E, claro, abordou o onipresente tema novas mídias. Para Wenders, a tecnologia digital expandiu a linguagem e o vocabulário do cinema e deu mais liberdade aos iniciantes.

“Não tenho nostalgia da película.”

DON’T COME KNOCKING

Li em letras vermelhas nas costas da jaqueta de um carinha sentado na segunda fila do auditório. Se a vida tivesse a opção com legenda, viria escrito embaixo:

ESTRELA SOLITÁRIA

A coletiva tinha sido boa, mas a conferência estava matando a pau.

A América, uma das obsessões do artista, foi evocada através de um de seus produtos mais importantes: o cinema.

“O senso de identidade americano foi estabelecido pelo cinema.”

A construção do sonho americano se dá nas imagens em movimento, projetadas na grande tela.

“Imagens são as armas mais importantes do século XXI.”

Então WW disse que exibiria algumas imagens. E como não é bobo, não caiu na armadilha preguiçosa de mostrar uma clipagem de seu trabalho. Não iria ilustrar o que acabara de dizer, como alguém que escreve as legendas primeiro pra depois escolher as fotos. Exibiu Invisible Crimes, um curta feito pra organização humanitária Médicos Sem Fronteiras. Sua equipe viajou até o Congo, no coração das trevas, na mesma região em que Conrad ambientou o famoso livro que inspirou Apocalypse Now. Lá, numa aldeia perdida no meio da zona de guerra, colheu depoimentos de mulheres abusadas por militares e milicianos em eterno confronto.

“Depois da exibição do filme, vocês poderão me perguntar sobre qualquer coisa que eu tenha dito ou feito até agora.”

Disse Wim Wenders antes de nos tocar com um delicado soco nos peitos. Aturdido com a pancada, demorei a aplaudir quando o diretor voltava ao palco, luzes acessas novamente. Veio a rodada de perguntas. Wenders falou da paz e de sua impopularidade (“Todos os épicos são sobre a guerra”) e de detalhes da produção do filme que tínhamos assistido. Muito pragmático, Gerbase quis saber como resistir ao cinema de Hollywood (“resegva de megcado?”) que, segundo seu brother Giba Assis Brasil (baita frasista), é ao mesmo tempo o melhor e o pior do mundo.

“First of all, não tentar copiá-lo.”

Antes ele já havia manifestado sua preferência por estações de trem aos Batman, Harry Potter e semelhantes. Fui obrigado a concordar, esses filmes de Hollywood são cada vez mais (e sempre) a mesma merda. Depois do último Batman (Heath Ledger merece um Oscar, essa deve ser a piada mortal) decidi que não perco mais meu tempo precioso que adoro perder com um monte de outras coisas inúteis indo ao cinema ver blockbuster da estação. Opa, mas voltando ao Wenders, cinema de Hollywood é que nem junk food: de vez em quando é bom, mas não enche cabeça. Segundo ele, devemos ignorar a indústria, ela vai ficar bem sem nós.

Antes do anúncio do fim da conferência (que desencadeou um muxoxo coletivo no auditório) Wenders narrou um episódio biográfico quando, aos 23 anos, trocou numa loja de penhores seu saxofone tenor (em que tocava “nada além de Coltrane”) por uma câmera Bolex 16 mm. Ótimo negócio. Pra ele e toda a humanidade. Coltranes já bastam os que têm por aí.

Mas um dos melhores momentos da noite veio na resposta a uma pergunta aparentemente idiota:

Qual a diferença entre atores americanos e alemães?

E Wenders, um cara legal pra caramba, contou uma ótima história de bastidores de O Amigo Americano que foi mais ou menos assim:

Aquele era o primeiro filme de Bruno Ganz. O dedicado ator, escolado nos palcos teatrais, acordava de manhã cedo e, todos dias, ia bater na porta do diretor pra passar o texto. As filmagens acontecendo de acordo com o cronograma, tudo nos conformes. Foi Dennis Hopper (“o arquétipo do ator americano”) chegar que o set virou do avesso. Hopper voltava das filmagens de Apocalypse Now, direto da selva, trajando o figurino do filme, cinco câmeras penduradas no corpo cheio de feridas, louco, chapado, rindo e falando compulsivamente, a complete mess. Isso não vai dar certo, pensou Wenders. No outro dia, ao bater da claquete, Hopper se tornara uma nova pessoa. Recomposto, encarnou o talentoso Ripley, dando-lhe vida, improvisando inesperadamente, alterando a marcação original do texto. Quelle performance. Mas através do visor, Wenders percebeu algo errado: Bruno Ganz acertou um soco no meio da cara de Dennis de Hopper. Ao revide do americano, o diretor foi obrigado a gritar corta! Os dois deixaram o set e Wenders achou que fossem brigar lá fora. Voltaram na manhã seguinte, abraçados, bêbados e melhores amigos. Não houve filmagens naquela tarde, a ressaca impossibilitou. Na manhã seguinte, o diretor foi surpreendido com Dennis Hopper em sua porta, cedo, querendo passar o texto. Bruno Ganz, por sua vez, apareceu minutos antes da gravação. À batida da claquete, estava pronto. Mais tarde, confessou a Wenders que O Amigo Americano salvou sua vida.

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20.8.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: WIM WENDERS

Parte I

Eu tinha 17 anos, lembro muito bem. A sessão foi num domingo, no extinto Ponto de Cinema Sesc. Num belíssimo preto-e-branco, começava com um filme dentro do filme, rodado num hotel abandonado em algum lugar da costa portuguesa. Terminava com a impactante cena do diretor alvejado num estacionamento na Califórnia, apontando sua câmera no derradeiro tiro de revide contra a indústria que assassina a arte. Deixei a sala de projeção e fui caminhando em direção à obrigatória Osvaldo Aranha. Trazia comigo uma sensação estranha, mistura de deleite e melancolia. Estava feliz e triste ao mesmo tempo, seria possível? Eu me sentia desoladoramente vivo enquanto tocava os pés nas pedras frias das ruas de Porto Alegre. Tão sozinho quanto sempre estarei, meu cérebro ebulindo em milhares de idéias. No frescor dos meus teens, eu desfrutava uma espécie de epifania, a tal da vertigem da arte. Barato total que estimula, juntos, coração e mente.

Recentemente, ou seja, 17 (!) anos depois, revi O Estado das Coisas e pude experimentar a exata sensação daquela antiga noite de domingo. A mesma vertigem causada pela obra que Wim Wenders produziu em resposta a uma situação traumática: a experiência malfadada da parceria em Hollywood com o produtor Francis Ford Coppola, em Hammet. Durante estes 17 (!, não canso de me espantar) anos, procurei conhecer a filmografia de Wim Wenders e considero alguns de seus filmes os melhores que o cinema já produziu, incluindo o epifânico O Estado das Coisas e também Paris, Texas, que chega a ser covardia: é o filme mais lindo que existe. Há ainda os pequenos e não menos belos diários filmados, como Tokyo-Ga e Nick’s Movie, poemas de amor ao cinema e seus artesãos. Obras de arte singulares e confessionais que convergem passado e futuro: dialogam com a história do cinema e desenham formas muito diferentes do modelo industrial hollywoodiano. Desde os anos 1990 a filmografia do cineasta parece ter perdido um pouco da força, mas Wenders ainda é um artista que tem muito a dizer. Espero rever seus filmes que menos gosto para reavaliá-los. Wim Wenders merece todo o meu respeito. Em sua passagem por Porto Alegre, mostrou que grandes artistas também podem ser pessoas legais.

Falar sobre fronteiras parece apropriado para um cineasta que tem na viagem o grande tema, é famoso por rodar road movies e ainda traz na bagagem produções filmadas nos cinco continentes. Eu sabia que ele não apareceria por aqui vendendo livrinho de auto-ajuda. Wenders, que no final dos anos 1960 participou, ao lado de nomes como Herzog e Fassbinder, da retomada do cinema de seu país, é um pensador das imagens em movimento. Além disso é um humanista que sofre de otimismo e sabe que tem uma grande responsabilidade enquanto artista. “Uma alma germânica romântica”, como se definiu com sua fala mansa, marcada pela inquietação com o estado das coisas no mundo e o futuro dessa arte que chamam por aí de sétima.

Carlos Gerbase, que fazia a condução do evento, anunciou o tema da fala: Cinema além das fronteiras. Wenders apareceu em suas botas de cowboy, calça baggy e casaco de malha. Uma cabeleira cinzenta tapava metade do rosto. Trazia um pequeno note book embaixo do braço. Foi aplaudidíssimo, creio que a maioria dos presentes compartilhava do meu enorme respeito a ele (exceto uns idiotas que deixaram o celular tocar durante a conferência, feio, muito feio). Estacionou com as pernas abertas (deve ser problema de coluna, disse lá pelas tantas a senhora a meu lado) e se apresentou:

“Como vocês devem saber agora, meu nome é Wim Wenders.”

O mesmo jeito de falar que eu já tinha escutado em seus documentários. Aquele devanear sincero, com a serenidade germânica por trás das frases pronunciadas pausadamente num inglês muito claro.

“Antes de tudo, sou um viajante.”

Tornou-se viajante em função daquele misto de vergonha e culpa que aflige os alemães de sua geração. Nascido em 1945, nos escombros de uma Alemanha devastada pela Segunda Guerra, Wenders teve de deixar para trás um país estigmatizado pelo erro nazista. Viajar pra se encontrar.

“Às vezes você tem que viajar muito longe para se conhecer de perto.”

Faraway, so close. Durante a tarde, eu tinha participado da coletiva concedida no hotel em que ele estava hospedado. Não fiz perguntas, me contentei com as dos colegas. Acompanhava as respostas atenciosas do entrevistado, fazendo algumas anotações (coletiva + conferência = 15 páginas, preparem-se). Era uma saleta apertada e quente, e a entrevista foi longa. Wenders foi solícito e muito bem humorado (na medida, é claro, que um alemão pode ser muito bem humorado).

“Viajar se tornou minha profissão.”

E revelou que seus últimos 21 filmes foram instigados pelo interesse em descobrir lugares. A sensação de estar num lugar é a base de seu cinema. Antes de qualquer processo intelectual, é este “sense of place” que guia seu trabalho.

“Não tenho interesse por histórias que possam ser contadas em qualquer lugar.”

Na adolescência, os filmes foram “as primeiras mensagens de um território desconhecido”. A América dos westerns de John Ford e Nicholas Ray. A América do documentário de Fernando Solanas, que viu, matando aula aos 16 anos, em Oberhausen. Ou Terra em Transe, que pôs o Brasil em seu “mapa mental”. Também lembrou dos recortes de Brasília, colecionados pelo jovem que sonhava ser arquiteto. O Brasil, para ele, era esse lugar inventado por Niemeyer no meio da selva. Um país irreal.

“Eu não estava tão errado.”

Brincou e eu tive que concordar: Brasil, não dá pra acreditar.

Para Wenders, a sensação de estar num lugar está ligada a duas forças criativas: o pertencimento e o descobrimento. Há os cineastas do primeiro tipo, como Fellini, que jamais saem de sua terra de origem. E há os viajantes, como ele, que acreditam que os lugares têm suas próprias histórias pra contar. Ainda que suportem inúmeras metáforas, lugares são reais, a memória está gravada neles, em suas pedras, e a câmera capta o que acontece em sua superfície. Eles são o principal protagonista da obra wenderiana.

“Os lugares não podem nos esquecer.”

Falou abertamente de seu processo criativo. De como surgiram muitos de seus filmes, do equivocado A Letra Escarlate ao cultuado Asas do desejo. O motor criativo de todos eles é o senso geográfico que obceca o viajante.

Wenders tem pavor de turistas. Por mais que viajem, carregam sempre sua origem consigo. Em todos esses anos, o cineasta-nômade aprendeu a respeitar e aceitar as fronteiras. Vistas geralmente sob uma ótica negativa, encerram cercas, guerras e a limitação da liberdade. Mas elas também nos ajudam a preservar nossa identidade, atributo da maior importância para o artista. Identidade que tem a ver com escolhas, opções e limites.

“Só as fronteiras podem manter nossa identidade.”

Identidade que está ligada diretamente à experiência e ao conhecimento.

“Apenas as histórias pessoais interessam.”

A platéia parecia enfeitiçada pela fala de Wim Wenders. Ao meu lado, um casal suspirava em êxtase, grudado nos fones de tradução. Desisti das anotações e fiquei apenas ouvindo e olhando o homem. Pela primeira vez em todo o ciclo de conferências meu olhar era compelido diretamente para o orador no centro do palco e não para os telões nas laterais. Por trás dos pequenos óculos de fundo de garrafa, Wenders encarava a audiência com serenidade. Tinha nas mãos um pequeno pedaço de papel que manuseava entre os dedos, único sinal de que alguma coisa pudesse perturbar sua calma germânica.
(continua)

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18.8.08


Go ape!

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13.8.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: DAVID LYNCH

A intelligentsia local estava toda lá. A cidade varrida num alvoroço desde que a organização do evento anunciara a inclusão do artista que muitos chamam de o maior cineasta da atualidade. Uma compensação pelo calote do Christo e da Jeanne-Claude, o adiamento do Daniel Libeskind e os cancelamentos do porvir, que virão, creiam-me. Calhou estar no Brasil, divulgando seu livro de meditação transcendental (!?), o homem é de fato cheio de mistérios. Acertados os detalhes (trouxe consigo uma equipe que roda um documentário sobre a turnê de divulgação do livro), e a notícia bombástica agitou a carroça:

DAVID LYNCH EM PORTO ALEGRE!

Na semana que antecedeu a conferência três pessoas me perguntaram se eu não conseguia liberá-las no evento.

Cês tão pensando que o Fronteiras é a Pulp, pô?

Eu não via um agito desses na cidade desde a passagem do João Gilberto. Encontrei muita gente da minha geração na frente do auditório. Gente criada à Twin Peaks, a maioria sem ingresso. Uma atriz conhecida me disse que tinha falado ao telefone com o grande cineasta, mesmo sem saber inglês. Ligou pro hotel, na maior cara-dura, queria entregar um portifólio. Vai que. Com a mesma (cara-dura), me perguntou:

Não me bota pra dentro?

Nisso o Marquinhos Mello chamou num canto, estava eufórico. No dia anterior tinha escrito um artigo pra Zero Hora que rendeu um convite pra almoço com o diretor, não por acaso, idolatrado pelo Marquinhos.

Almocei com ele. Disse, com um sorrisão estampado no rosto.

E eu pensei: se medita deve ser vegetariano.

O quê ele comeu?

Um pouco de salada.

Rá!

Lynch’s lunch, dava um poema surrealista. Depois o Marquinhos contou que ganhou do mestre um desenho rabiscado durante a entrevista coletiva: uma linda mandala... Meditação transcendental, salada, mandala, isso não estava me soando bem. Não bastasse ainda tinha o pocket-show do Donovan Leitch, que só fui dar conta de que era o Donovan quando um dos amigos-que-perguntaram-se-eu-não-conseguia-liberação se referiu a ele como o chato do Donovan. O Estranho Mundo de David Lynch. Por trás daqueles filmes sombrios e sórdidos, cheios de violência e perversão, havia um homem que meditava, comia salada, desenhava mandalas e era amigo do Donovan, um dos músicos mais chatos dos anos 60. Acontece que Donovan foi parceiro dos Beatles na viagem à Índia, quando os Fab Four se tornaram discípulos do guru Maharishi Yogi, pai da meditação transcendental que David Lynch exalta em seu “Em águas profundas: criatividade e meditação”. E não custa lembrar que o episódio Beatles versus Maharishi rendeu, pelo menos, mais uma linda e rancorosa letra de John Lennon:

Sexy Sadie what have you done
You made a fool of everyone

O que aconteceu no Salão de Atos da UFRGS, na noite da histórica visita de David Lynch a Porto Alegre (no futuro algum nerdzinho vai fazer um documentário sobre isso, me disse o Marquinhos), foi uma grande jogada de divulgação.

Excepcionalmente a apresentação se daria no formato entrevista, explicou o diretor de televisão Gilberto Perin, que conduziu (pessimamente, ele mesmo confirmaria se assistisse ao vt) a própria, pautada em perguntas da maior relevância, tais quais:

Qual a importância do mantra na meditação transcendental?

Confortável num folgado terno preto (gravatinha fina amarela, tres elegant) e com uma tranqüilidade que só pode ser alcançada por quem medita, David Lynch defendeu que não há paradoxo algum em fazer filmes perturbadores como Veludo Azul, Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos e acreditar que o êxtase é a nossa natureza.

“Você não precisa morrer pra filmar uma cena de morte.”

O poeta é um fingidor. Se ele finge a dor que sente ou não, aí já é outra coisa. Diferente de um Tim Burton, com sua franjona preta dark, David Lynch tem um sensacional topete cinza-prata, radiante. Ele é feliz, em oposição ao estereótipo do artista perturbado e deprimido.

“Acredito que Van Gogh e Artaud eram felizes quando criavam.”

Em meio à extensa pauta de divulgação do livro e aos elogios constantes às benesses da meditação transcendental, houve raros momentos em que Lynch revelou um pouco de seu método criativo e de suas escolhas estéticas. Contribui o interessado auditório que enviava as perguntas (vi um garoto sentado na escada preenchendo três cartões com elas).

“Eu amo as idéias. O sentido aparece se você focar nelas.”

“A intuição é a solução pros problemas, ela não é intelectual ou emocional, é ambas.”

Segundo Lynch, é através da intuição que capturamos as idéias que podem, ou não, render frutos. Como saber?

Meditando, claro!

Falou de cinema e pintura (houve inclusive uma pergunta constrangedora sobre expressionismo abstrato, feita claramente pra impressionar. Lynch respondeu de maneira polida: yes, I like Jackson Pollock, but… e já emendou em algum aspecto transformador da meditação transcendental).

“O cinema é a mais bela das linguagens: imagens e sons fluindo no tempo.”

“Há alguma coisa da pintura que se aplica no cinema. Mas há mais coisas do cinema que se aplicam na pintura.”

Lynch lamentou o fim iminente das salas de cinema, que proporcionam a verdadeira experiência cinematográfica de imagem e som.

“Teremos enormes home theaters no futuro.”

Adepto das novas tecnologias, lembrou que também há tristeza e solidão na internet. Contou que se apaixonou por uma pequena câmera digital e que tem apreciado as texturas que ela imprime, com seus pontos de escuridão onde o olho se perde em mistérios, sonhando.

“Às vezes a má qualidade é muito, muito bela.”

Falou da importância da luz que irradia na Costa Oeste dos Estados Unidos. Segundo Lynch, a indústria do cinema se fixou em Hollywood por causa dessa luz natural que permite filmagens externas. Ainda sobre a Grande Indústria dos Sonhos, revelou que não sente desconforto trabalhando nela, dentro de sua engrenagem capitalista.

“Adoro o dinheiro, mas não é a razão pela qual faço filmes.”

Alguns cinéfilos enviaram perguntas bastante específicas sobre a obra lynchiana. O cineasta falou de como surgiu a personagem Log Lady, de Twin Peaks, figura que remonta a seu primeiro longa Eraserhead, de 1977. Também contou que Cidade dos Sonhos foi pensado originalmente como seriado de tevê. Graças a um produtor que assistiu ao copião entre goles de café e chamadas telefônicas, o piloto não foi aprovado. As idéias ficaram abertas por um tempo até que, póin!, numa sessão de meditação lhe foi revelado o que fazer com as imagens captadas. Lynch também contou que detesta testes de elenco por achá-los muito humilhantes (só não entendi se pro ator ou pra ele). Escolhe seus elencos a partir de rostos que combinem com os dos personagens do roteiro.

Mais um pouquinho de meditação transcendental, uma referência à física quântica (a ciência preferida de quem medita, come salada e desenha mandala) e a conferência foi chegando ao fim. David Lynch ainda contou que, no momento, não trabalha em projetos cinematográficos, tem somente se dedicado à pintura que, segundo ele, nunca morrerá. Deixou o palco sob aplausos. Da terceira fila, um grupo de tietes mandava beijos.

Depois apareceu um sujeito que trabalha na fundação mantida por David Lynch (e que leva seu nome), cujo objetivo é, rá!, divulgar as práticas da meditação transcendental. Temi que fosse conduzir uma meditação coletiva, mas o que fez foi anunciar a próxima atração, o músico oficial da meditação transcendental: o grande Donovan! Antes do trovador entrar em cena, foi exibido um vídeo que mostrava-o ao lado de gente como os Beatles e Bob Dylan (inclusive com a antológica cena do documentário Don’t look back, em que o cáustico Dylan olha pra foto de Donovan num jornal e diz: I hate him). Usando uma camisa do tipo oriental, de largos punhos, cantou um par de canções ao violão. Imediatamente um cheiro de mofo tomou conta do ar. Fuji quando o apresentador voltou e sugeriu perguntas ao cantor. Queria saber como foi a experiência indiana com os Beatles. Chega, eu não agüentava mais todo aquele proselitismo, não podia nem ouvir a expressão meditação transcendental.

Na saída, uma fila já se formava, aguardando o cineasta, que autografaria seu livro. As tietes estavam lá, ansiosas, todas com seus livrinhos na mão. Será que virariam seguidoras do Maharishi? Mais tarde, soube que David Lynch retornou ao palco pra ensinar um mantra aos presentes, pacote completo. Sorte que escapei na hora certa. Espero que o Wim Wenders não seja adepto de nenhuma doutrina esotérica.

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5.8.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: JURANDIR FREIRE COSTA E CONTARDO CALLIGARIS

Um pouco antes de alcançar o saguão da Reitoria, recebi um panfleto de duas meninas posicionadas estrategicamente no portão de acesso. Um postal com fundo azul vibrante e formas coloridas em primeiro plano, bem parecido com um flyer de festa rave (não o tenho em mãos pra conferir, mas creio que em algum ponto daquela barafunda de formas e cores havia inclusive um arco-íris). Divulgava um curso de pós-graduação de piscanálise junguiana: “a Pós dos seus sonhos”. Travestida de flyer de festinha, a isca tinha como alvo os profissionais da psicanálise e psicodiletantes que compareceriam ao sétimo encontro da série Fronteiras do Pensamento. Ouvi dizer que a maioria dos inscritos nas conferências é de médicos. Junte o notório apreço pela psicanálise nutrido por estas plagas e mais dois psicanalistas como conferencistas e você tem um ótimo ponto de divulgação do pós dos sonhos em psicanálise junguiana. Só falta um flyer melhor.

A noite abriu com a fala de Jurandir Freire Costa, aparentemente um psicanalista acima de qualquer suspeita: membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, professor, autor de livros com temas tão diversos quanto cultura, violência e homoerotismo. Trajando terno e gravata, manuseando papéis que deixou cair e apanhou sem parar de falar, tirando e botando os óculos (não contei, mas deve ter beirado uma centena de vezes), Jurandir Freire Costa destruiu a imagem do psicanalista cool, de fala macia e gestos serenos e sedutores. Com tiques um tanto nervosos e um discurso truncado, JFC era definitivamente uncool. O tema que escolheu também não foi dos mais sedutores: A transcendência ética na modernidade e na contemporaneidade: de Graham Greene a Philip K. Dick. Um assunto restrito demais para aqueles que – como eu – freqüentavam o Fronteiras do Pensamento buscando questionamentos mais profundos. Tais quais o sentido da vida, por exemplo.

Curiosa a escolha de dois autores do segundo escalão da literatura universal (o primeiro, notório por seus romances de espionagem, o segundo, pelas histórias de ficção-científica, ambos muito adaptados pro cinema), mas pra Jurandir Freire Costa, aí é que estava o charme de toda a coisa. Conforme o professor, através de uma literatura dita de entretenimento, os autores metaforizam o dilema ético da modernidade. Nas tramas de espiões e andróides existem questionamentos profundos, sobre política, amor, a origem do mal e a existência de Deus. Também mostram visões distintas acerca da ética.

Em Greene a ética é transcendente. Os heróis são marginais desenraizados que acreditam no bem, mas tropeçam e erram. Porque o mal está sempre escondido na realidade, oculto e obsceno, manifesto em guerras e na brutalidade do Estado. Nem o amor pode ser considerado o bem porque amar não significa estar livre de causar sofrimento. Para o escritor inglês, é em Deus que se deve buscar o ponto definidor entre o bem e o mal. Um Deus que está antes, além e acima do homem.

Já na ética imanente de Philip K. Dick, Deus é plural, fragmentado em atos e objetos cotidianos que precisam da mediação do homem pra se manifestar. A vida é um eterno presente e o futuro nada mais é que as intenções de nossas ações. Para os replicantes, precogs e viciados de Dick não há diferença entre a realidade e o sonho. A lógica, marca da subjetividade consciente, é insana. O mal está na racionalidade.

Tirando e colocado os óculos mais umas doze vezes, Jurandir Freire Costa ressaltou que o dilema ético moderno tem uma herança greco-judaico-cristã. Daí fez pequenas citações em latim e uma única piada, da qual também riu, meio sem graça. Pudera, não era lá essas coisas. Sobre 1964, ano de publicação de um texto de Philip K. Dick do qual leria um trecho

“O mesmo ano em que os andróides tomaram o poder no Brasil.”

Hm. Depois da piada inócua, a citação foi o melhor fechamento pra conferência que certamente não ficaria entre as Cinco Mais. Contribuição miserável pra minha coleção de frases de efeito. Somente uma, lá no finzinho, na citação de Philip K. Dick, uma crítica à identidade coletiva tão exaltada nestes dias de fundamentalismos.

“As raças não nos definem.”
*
Sentando confortavelmente numa poltrona instalada no palco, o palestrante seguinte ouvia com atenção a fala do colega. Italiano que morou na Inglaterra e nos Estados Unidos e escolheu o Brasil pra viver, o psicanalista Contardo Galligaris é escritor e colunista de um dos jornais mais importantes do país (a Folha). Eu já tinha tido a oportunidade de entrevistá-lo e fiquei fascinado com a inteligência e o carisma de italiano buona gente com nome emprestado de personagem de filme expressionista. O sujeito é a encarnação do psicanalista cool, fala macia e gestos serenos e sedutores, autoconfiança plena dos que sabem foder. Foi uma entrevista deliciosa em que falou de seu primeiro romance, lançado recentemente, “O Conto do Amor”, uma narrativa íntima do tipo acertos de contas com o passado, construída a partir de cartas deixadas pelo pai. Perguntei sobre o que falaria no Fronteiras do Pensamento, estávamos em meados de maio. Respondeu que ainda não sabia.

À vontade diante do auditório cheio, Contardo Calligaris explicou que tinha amadurecido o tema da conferência nas inúmeras entrevistas que concedera durante a divulgação do livro, a partir da constante pergunta: por que fazer ficção? Da reflexão sobre a razão de narrar veio, enfim, o tema: A ficção como linha de conduta para inventar a vida.

As razões de narrar de Calligaris remontam a devaneios da infância. Reminiscências de marcianos que o levavam a se sentir também um alienígena, toda vez que o raio verde entrava pela janela do quarto prestes a abduzi-lo. Não sou daqui, era o sentimento do pequeno Contardo, sentimento que só iria aumentar nos anos seguintes com a escolha da vida de imigrante (confessou que viveu de bicos in London, por vários meses, tudo por causa de uma mulher, tô dizendo, o cara é do métier). Estrangeiro aqui como em toda parte, lembrei. Um sentimento que, para ele, define a subjetividade moderna.

“Não é o local de origem que nos define.”

Deve ser o quanto a gente ganha, pensei. Pro regozijo dos profissionais da área da saúde, Calligaris usou uma expressão da medicina pra classificar nossa condição de despertencimento: ectopia (no Houaiss: "posição anômala de órgão"). Por não importar de onde viemos, e por não sabermos para onde vamos, inventamos nossa origem e nosso destino criando histórias.

“Nossa ectopia nos conduz à ficção.”

E então o Dr. Calligaris (não pude evitar), lembrou que é narrando que fazemos a passagem do acontecimento à experiência.

“A narrativa é a condição de transformação dos acontecimentos em experiência.”

Isso ele sabe muito bem, afinal lá em seu gabinete (de novo) está acostumado a escutar (com a paciência de quem vai levar algum no final) as narrativas dos pacientes/clientes, ajudando a processar tudo aquilo em experiências que os ajudem a viver melhor. No emaranhado de narrativas que é a vida, os acontecimentos nada significam se não soubermos enxergar os dilemas morais que eles trazem. Evocou Kant pra defender o que chamou de identidade narrativa: para bem viver, é preciso bem contar. Ou seja: a ética é equivalente à estética.

“A vida é uma aventura que deve valer a pena ser contada e vivida.”

Concluiu. Um tanto clichê, vamos admitir. Minha coleção de frases de efeito andava meio desvalorizada. A argumentação do charmoso Dr. Calligaris não possuía o rigor teórico das colocações de seu colega de conferência com todo seu minucioso (e nervoso) estudo da ética moderna através da literatura de polpa. No entanto, o tom confessional, envolto no charme de estrangeiro bom de cama, e a paixão confessa pelas aventuras que a vida proporciona deixaram melhor impressão no auditório.

O que nos leva a uma importante conclusão em mais uma etapa dessa longa jornada rumo às fronteiras do pensamento: o importante é ter estilo.

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4.8.08



Jimmy Adja...

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