30.6.09

Então, era isso...
A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 27 - A última noite

Uma longa fila se formava na rua, saindo do portão, no meio da quadra, em direção à Independência. Depois dobrava a esquina e seguia mais alguns metros pela calçada. Contei, por cima, umas 150 pessoas, a maioria com a maior pinta de quem nunca dantes frequentara aquela espelunca, inquietas como crianças na fila da montanha russa, os figurinos nada a ver, mauricinhas e patricinhos (ou vice-versa), prontos pra desfrutar a última noite do Velho Garagem. De alguma maneira, o antro se tornara inofensivo. Amanhã há de ser outro dia, livre desses depravados que já vão tarde, uma espiadinha lá dentro pra ver como era até que vem bem, se a gente for em bando fica mais seguro.

Ninguém morreu.

Eu pensava enquanto descia a rua desde o táxi em direção ao casarão, olhando o povo enfileirado. Foi mesmo muita sorte. Nem mesmo um pequeno incendiozinho, como prenunciavam falsamente os mais terríveis pesadelos do Ricardo. Escapamos ilesos, como diria a Space Rave, uma das atrações daquele Bailão Apocalíptico, ao lado da banda da casa (leia-se, dos donos). Se bem que ainda havia a última noite. Mas aí já seria um azar despropositado dar uma merda terrível tipo desabamento. Não. Os anjos estavam com a gente, só podiam estar. E lembrei da vez em que um jovem desembargador de carreia promissora se mudou pras redondezas e decidiu moralizar o bairro. Nada de inferninhos na região. Ficamos apreensivos, graças à forte influência política do jovem paladino. Contudo o rapaz teve sua promissora carreira subitamente interrompida. Em férias pelo Chile, morreu num acidente envolvendo um vulcão – até então inativo. Nosso anjo da guarda devia ser o Damien.

Cheguei em frente ao portão, alguns amigos ostentando um olhar apavorado de “meu deus, não vou conseguir entrar” se aproximaram pedindo a infalível liberação. Eu era todo amor aquela noite. Dentro da casa, senti o aconchego dos vários rostos conhecidos, sorrindo, e do calorzinho tradicional que fez com que o Tronho Crocco nos apelidasse de Bar Garrafa Térmica. Aquilo parecia até final de novela com todo o elenco confraternizando. Eu via garageiros dos mais diversos tipos: amigos da Velha Guarda, novos universitários, ex-groupies, junkies em recuperação, todo o pessoal das bandas, ex-jovens, cineastas experimentais, quadrinistas mal vestidos, donos de bares da Grande Porto Alegre, traficantes em liberdade condicional, médicos fora do plantão, estilistas anônimos, ébrios convictos, abstêmios em crise, gays, lésbicas & suspeitos, malas sem alça, enxadristas em férias, punks old school, skatistas hardcore, gostosonas, mucras, policiais disfarçados, mestrandos em Comunicação, artistas visuais, poetinhas, vendedores de incenso. A vida em toda sua diversidade. A música era alta e as pessoas pareciam querer se divertir como se não houvesse amanhã. Havia?

Mas um repuxo de negatividade flutuava em meio à onda eufórica da comemoração. Alguns amigos nos olhavam com cara de enterro, outros com nítido rancor e ainda tinha aqueles que verbalizavam todo seu apavoramento, a expressão máxima daquele sem chão em que suas vidas se apoiariam:

Filhas da puta.

Não me importava, estava convicto de que a venda do bar tinha sido um acontecimento tão importante quanto sua fundação. A cerveja, assim como toda e qualquer bebida disponível, acabou bem cedo naquela que foi a noite mais cheia na história da casa. A Space Rave fez um show longuíssimo, inapropriado pro clima de festa/enterro da noite. Em oposição, os Minimaus tocaram pouquíssimo, não lembro de uma nota só. Jamais fomos tão aplaudidos.

Acertamos a bilheteria com os COLunistas, que, creio, nunca tinham visto tanto dinheiro antes. Pagamos os funcionários, entregamos as chaves da casa pro porteiro, pegamos nossos discos e namoradas e fugimos com um maço de notas no bolso. Cinematográfico. Em nome dos velhos tempos, seguimos por 48 horas acordados. A droga da despedida. Não presenciamos o que aconteceu depois, mas os relatos que chegaram através do porteiro Jorge dão conta de que, numa catarse destrutiva, os clientes tentaram levar “um pedaço do bar pra casa”, conforme alguém tinha sugerido no release de divulgação da festa. Creio que alguns COLunistas portavam inclusive martelos de demolição. O balcão foi invadido e pilhado (só tinha garrafa vazia), os objetos de decoração, assim como algumas partes do estuque das paredes, foram removidos a unhadas e até as pás dos ventiladores e os fios de eletricidade foram arrancados.

O sol de domingo ia alto quando os últimos clientes saíram, entres eles o Zanella e o Diego Medina, abraçados, cambaleantes, rindo e chorando, papinho eu te considero. Enquanto o Seu Jorge trancava o portão, o Diego ajudou o Zanella a subir pela parede (?) e tirar a placa do bar, que ficava pendurada num espeto embaixo da janela, uma peça de ferro formada por duas mesas soldadas, pintada pelo Kbeça em meados dos anos 90, memorabilia de toda uma geração. Numa acrobacia bêbada, o Zanella conseguiu retirar a placa. Caiu de joelhos no chão e empunhou contra o céu azul a peça de colecionador que até hoje ele guarda em casa, a foto da façanha pra comprovar. O fim de uma era congelado num clique: Zanella, a placa e Seu Jorge, ainda segurando as chaves da casa depois da última noite.
Epílogo

Entretanto, como muitos fatos relacionados ao Garagem possuem uma natureza dúbia e enganadora, houve mais uma noite.

Recebi um telefonema no domingo, a festa ainda acontecendo lá em casa. Era uma mina da faculdade que havia marcado seu aniversário algumas semanas antes da venda do bar. Eu tinha esquecido completamente do evento e àquelas alturas já não me importava com nada. Dei o número do Seu Jorge e disse que, se ela quisesse, poderia pegar as chaves com ele, mas teria que comprar as bebidas porque não havia mais uma latinha de cerveja nos freezers.

Ah, e tem que limpar porque a faxineira só vai na segunda.

Pro meu espanto, ela topou. Mais tarde me contou que sua festa de aniversário foi “mágica”. Reuniu os amigos e ficaram tocando violão num Garagem à luz de velas e só deles. No repertório, as clássicas da ripongagem nacional. Curioso fim pra um bar que já foi chamado de punk.


24.6.09


O intrépido TRIO FRICTURA (Lio, Dregus & Rafahell) e seu fielescudeiro Yog Mars retornam ao Cabaret do Beco (Independência, 590) pra mais um combate sonoro turbinado com muito pop, punk, funk, rap, disco, eletrônica eetnobeats. Sexta-feira, 26/06, a partir das 23h. Ingressos no local aR$20. Ou a R$12 pela lista amiga (informe-se).

15.6.09


Strictly disco night:
Sábado, Casa ao Lado, 22h

11.6.09

A FANTÁSTICA FÁBRICA
Capítulo 26 - Last days

O resumo dos últimos capítulos:

Eu era um bancário infeliz com uma bela coleção de discos e o cabelo comprido emplastado de gel e penteado pra trás. Mas naquele primeiro dia na casa, na primavera de 92, com o pé encravado na madeira podre do assoalho, os fantasmas não me preocupavam. Coloquei uma coletânea dos Sex Pistols, aquela que tem um cocô na contracapa. Saímos do bar e sentamos na frente do casarão, bem na porta da lavanderia. Um baseado importante na minha vida. O primeiro show aconteceu exatamente uma semana depois da inauguração: Graforréia Xilarmônica. Numa das paredes do bar tinha um desenho de um casal dançando e se beijando, de suas bocas escancaradas saíam enormes línguas vermelhas que se enroscavam num trançado vertical. Um beijo muito louco, como na música dos Mutantes. Tudo aconteceu muito rápido. Ficamos olhando o cara lá de cima, corpo estirado, a cara grudada no chão, nenhum sinal de vida. Não apenas anjos vinham nos fazer visita. Exus, cavalos, pombajiras e outros encostos também apareciam por lá seguidamente. Além do stress com os bandidos, tinha o stress com a polícia. Uma cláusula esquecida lá no finzinho do contrato garantia que, em caso de rompimento não-amigável da sociedade, haveria o prazo de 6 (seis) meses pra realização do inventário da empresa. A falta do alvará, esse era na verdade o problema. O estúdio do Garagem era feio, fedorento e com equipamentos meia-boca. O trabalho era um pé-no-saco. No auge do verão eu chegava a levar televisão e vídeocassete pro bar e ficava assistindo a favoritos como o recém lançado Pulp Fiction; o clássico do humor negro Doutor Fantástico ou um pouco de putaria psicodélica como Garganta Profunda, isso quando eu não tinha que trabalhar na portaria, porque no auge do verão a gente dispensava até o porteiro. Cocaína é uma merda. O Edu K perneta era um notório mala da noite roqueira. O apelido adivinha do duplo fato da figura ser um perneta que se auto-proclamava o Edu K. Faltava uma semana pra inauguração do Garagem Hermética Sushi Bar, em itálico, pra reforçar a piada. Tempos de prosperidade aqueles. Breves, mais ainda assim tempos. Os after se prolongavam até uma, duas da tarde. O sol assando a rua enquanto a gente seguia trancado lá dentro numa atmosfera controlada de fumaça de cigarro e cheiro de ceva azeda. O Júpiter era o centro solar daquela galáxia de loucos. Os punkids sentavam na calçada em frente ao bar bebendo vinho de garrafão, não entravam até que o show começasse e caíam fora logo que acabava. Vomitavam antes de sair. Tomei fôlego e rumei pra dentro do bar, não sem antes cumprimentar vinte pessoas, dar pegas em três baseados e recusar pelo menos uma oferta de pó. Era uma noite agitada, mais uma edição da Full Moon Party, a festa de música eletrônica mais badalada do Garagem. O Cinemeando no Garagem acontecia uma vez por mês no pátio da velha casa, simultaneamente à ferveção da festa, com música alta, bebedeira, pegação e o de sempre. Um gordinho bêbado tinha despencado da janela do bar até o chão do pátio: ploft! Um episódio histórico do Brasil Imperial empresta seu nome pro evento-chave na decisão de vender a PORRA DESSE BAR de uma vez por todas. E a gente se habitou a ver aquela figura circulando pelo pátio da casa de pijama e pantufas. Os porteiros se acham as pessoas mais importantes num bar, mas isso eu não acho, eu tenho certeza. Grande festa.

*

A gente adentrava os oito anos de gente da noite profissional – com carteira assinada isso daria um quinto de aposentadoria – e o saco prestes a explodir. Não tinha sobrado um pingo de glamour e ficava cada vez mais difícil se divertir naquela repetição enfadonha de sex, drugs and etc. Pra ser sincero, o sex nunca cansava mas as drugs e o etc já não eram mais as prioridades como outrora, nos idos de 1992, quando a gente tinha inventado aquela maluquice do bar e as pessoas mais velhas & sensatas diziam, agourentas, vai se dar mal. Estariam elas certas no fim das contas? Eu estava me dando mal pra caralho. Me sentia acorrentado naquele barco à deriva, prestes a afundar. Depois de quase uma década de negócio, não tinha guardado um centavo sequer, vivia no vermelho, meu único patrimônio era o nome do bar, que, aliás, era um plágio. Meu círculo de amigos se restringia a bêbados chatos, músicos fracassados, drogados compulsivos, minas histéricas e malas de todo o tipo. As conversas de boteco, ano após ano, iam me deixando cada vez mais burro, incapaz de articular o pensamento em argumentos racionais que não caíssem na dialética gaga dos muito loucos, os papinhos alusivos e abstratos, tipo sei lá, entende? Não suportava mais as ceninhas e brigas e bebedeiras de noite após noite, das bandas chatas que se multiplicavam em proporção geométrica, do eterno perrengue financeiro. Dava uma canseira ter que pensar numa nova maneira de sair do buraco, como pagar as contas que se acumulavam nas gavetas do escritório, nas constantes reformas que a casa velha demandava a todo momento. Definitivamente a carreira de empresário da noite não era o que eu queria para mim. Ao mesmo tempo não podia desprezar o trabalho que tinha feito até então, o know how, a contribuição pra cena, a rede de contatos e blablablá. O underground era o meu habitat, por lá eu circulava rastejando com destreza. Não poderia almejar sair voando de uma hora pra outra, asinhas de fora, flutuando nas nuvens do mainstream. Vender o bar era muito difícil, não só porque a gente suspeitava que quase ninguém quisesse comprar, mas também porque não podíamos vender pra qualquer um, a coisa tinha que ser certeira. Também sabíamos que a venda não podia ser anunciada de qualquer jeito, tinha que haver uma estratégia, uma ação meio secreta porque no momento em que o público soubesse que o bar estava à venda seria o nosso fim. A gente precisava manter a casa por cima pra não melar a venda, não acelerar a morte mal anunciada. Colocamos um anúncio no jornal, era um antianúncio que só poderia dar numa não-venda. Um exemplo em Publicidade e Propaganda de como não se faz. A gente não revelava o nome do estabelecimento nem o endereço. As informações nunca iam direto ao ponto, eram sempre vagas, tipo “casa estabelecida na cena roqueira, arredores da Independência”, quase uma charadinha. Quando alguém ligava, a gente continuava sem dizer o nome e o endereço do bar, buscando informações sobre o comprador, sobre sua idoneidade under, até que a pessoa acabava desistindo da arenga. A gente queria mas não queria.

Enquanto isso, a peteca não podia cair e tínhamos que seguir inventando eventos e festas que agitassem a cena, haja saco. Quando uma turminha de universitários nos procurou querendo fazer a festa do fanzine que produziam, topamos na hora. Esse era o público perfeito, os novos jovens. Os Bailões do Cardoso acabaram se tornando um dos eventos de maior sucesso nos últimos anos do bar. Particularmente, eu não compartilhava muito do humor daquela turma e não gostava dos sons que eles curtiam. Mas via neles uma nova geração tentando agitar a pasmaceira da cidade, criar novos caminhos, Porto Alegre parecia não ser a mesma província de uma década atrás. Era uma província diferente. No fundo, eu ficava orgulhoso que aqueles meninos tivessem escolhido o bar pra fazer suas festas. Da turma do COL, conhecia a Clarah desde os tempos em que ela era uma groupie peituda (devia ter uns treze anos) e já simpatizava com a porralouquice da menina. O Mojo também era garageiro confirmado, daqueles que iam curtir o bar nas noites vazias de inverno e em shows de metal, o Mojo é metaleiro que eu sei. Estava ligado nele há tempos, já tínhamos conversado sobre Oscar Wilde na salinha dos fundos uma vez. A primeira data que oferecemos pra fazerem a festa foi uma segunda-feira. Acertei todos detalhes com o Pilla, um cara com quem simpatizei na hora, e quando cheguei pra abrir o bar, às onze da noite, ele já esperava no portão com uns livros que sorteariam durante a festa. O freezer estava desligado desde a manhã de domingo e naquela noite de segunda a cerveja foi vendida, com otimismo, fria. Ironicamente, graças ao padrão aleatório do nosso rodízio de trabalho, só fui a mais um Bailão do Cardoso (mesmo assim acabei pagando o pato pela desconfiança dos COLunistas de que eram lesados na bilheteria, quando, um pouco depois da venda do bar, fui agredido pelo Hermano, um dos mais robustos e menos talentosos do grupo, cúmulo da ironia!, no próprio Garagem – o fim de uma era, de fato). Logo depois acabei ingressando no curso de Jornalismo (eu queria voltar a estudar ma non troppo) e virei bixo de muitos daqueles guris. Daquele núcleo de amigos criativos e talentosos sairiam alguns nomes destacados da literatura brasileira contemporânea, como Daniel “Mojo” Pelizzari, Clarah Averbuck e o Fernando Sabino da geração 00, Daniel Galera. E, claro, o André “Cardoso” Czarnobai, um ruivo figuraça e boa gente cuja profissão atual, li esses dias, é de “consultor criativo”, não parece o emprego perfeito?

Então o Ricardo começou a trabalhar novamente com tecnologia e publicidade, um trampo que ele tinha abandonado quando abrimos o bar, e aí passamos a ter outras atividades além daquelas relacionados ao mundinho estreito da noite. Só nos encontrávamos nas reuniões de segunda e até paramos de ensaiar com a banda. Novos ares. Na faculdade, passei a conviver com pessoas cinco, seis, sete anos mais novas que eu, um povo ávido por descobertas e discussões, pessoas que acabariam se tornando meus melhores amigos. Essa turminha passou a freqüentar o bar e foi como um último lampejo. Certamente desfrutaram bons momentos no velho casarão.

Eu era uma toupeira tecnológica mas o Ricardo estava superinserido no mundo digital que começava a revolucionar o mundo. Ele desenvolveu um site pro bar e inventou a festa Mp3 Delícia, com a parceria do Diego Medina, nosso amigo hypado do período. A dupla de ruivos, mais a Polla e o Jaspion discotecavam num PC instalado no palco, algo realmente muito novo pra Porto Alegre de 1999, pauta pra capa de Segundo Caderno. Também sempre rolava uns showzinhos da banda Os Massa, mais um projeto do Diego, que parecia ter o toque de Midas, tudo que ele tocava virava cult.

E assim a gente mantinha umas festas legais no calendário pra compensar as noites vazias de dia de semana, os shows falhados e o tédio geral. Duas ou três noites por mês em que tudo ficava divertido de novo e eu podia sair do bar de manhã cedo, bêbado e feliz, com o dinheiro do aluguel salvo. Quando se tem pouco, qualquer coisa já é alguma coisa. A presença dos amigos também era sempre reconfortante, quando apareciam pruma visitinha no nosso isolamento no escritório (chegou um ponto em que não saíamos mais do escritório, a loucura da noite transcorrendo sem que fôssemos até o banheiro, o xixi a gente fazia numas garrafas de cerveja vazias, paranóia pura de encontrar algum chato que nos pedisse uma liberação, bebida fiada, desconto, quem não é visto, não é lembrado), daí o amigo batia, noc, noc, e geralmente contava o que estava acontecendo lá fora, alguns ofereciam algum mimo, outros vinham pedir carinho, assim é a vida. Mas os melhores amigos eram aqueles que apareciam naquelas noites falhadíssimas, em bando, e sentavam nas mesinhas dos fundos e baixavam ceva atrás de ceva, pouco importando se não houvesse ninguém além deles mesmos, curtindo o papo, o fumo e o som. Lembro do Diego Medina nos salvando de vários fracassos, garantido o salário do Seu Jorge em noitadas que duravam até o sol nascer, regadas a cereveja e conversa fiada.

Mas no fundo havia essa desesperança, tipo loser, soy un perdedor/so why don’t you kill me. O Beck tinha sintetizado poeticamente o espírito dos anos 90. A gente se sentia meio uns trastes sem perspectivas, sem desejo de nada, se nos matassem não faria diferença. Nos definíamos pelo que a gente não era, pelo que a gente não queria, mas parecíamos incapazes de propor alternativas ao grande NÃO que a gente vivia dizendo. Pra nós sempre tinha bastado viver naquele mundo paralelo, lentos numa nuvem de baseado ou acelerados numa trilha de cocaína, tanto faz, a inércia sempre nos acompanhava. Vencer a inércia era o desafio. Eu já considerava um mérito ter conseguido voltar a estudar (ainda que fosse Comunicação) depois de anos só me emburrecendo com as conversas de boteco. Talvez fosse um começo. Mas ainda era pouco.

No início de 2000 a Tequila Baby (que havia feito seus primeiros shows no Garagem ainda quando era uma banda new wave tipo Blitz, isso lá por 93), agendou uma temporada no bar. Quatro shows em um mês. Aquilo iria nos ajudar a sair um pouquinho da lama, mas, logo na primeira noite, a paulada na cabeça, não ia ser fácil. Uma equipe de fiscalização da Secretaria do Meio Ambiente fez uma visita naquela noite e interditou nossa aparelhagem de som. Aparentemente tinha sido feita uma medição sonora em função de reclamações de vizinhos e nossa condição era irregular.

Interdita, disse o fiscal.

Mas o que ele não sabia é que o PA de shows não era o mesmo que o do som mecânico. Como só um dos equipamentos foi interditado (o do som mecânico) o show da Tequila Baby aconteceu conforme planejado, com discotecagem do incansável Dj Shufle, instalado na beirada do palco, acompanhado de seu cd player carrossel e cinco boas coletâneas. A noite transcorreu com aquela apreensão no ar, o cagaço de que a qualquer momento os fiscais pudessem voltar e nos desmascarar. Ou pior: multar.

No dia seguinte, sol causticante de verão, eu dentro de um ônibus apinhado, voltando da reunião com os funcionários da SMAM que tinham me informado que o bar seria interditado definitivamente se eu não cumpríssemos as determinações que a Secretaria impunha. Basicamente teríamos que fazer uma nova vedação acústica e o uso do pátio, que já era vetado mas a gente descumpria na maior cara dura, passava a ser terminantemente vetado. Se voltássemos a usá-lo, correríamos o risco de ter nosso alvará confiscado. As perspectivas eram tenebrosas. Como levantar o dinheiro pras reformas se não podíamos usar o pátio externo, o maior atrativo do bar nas calorentas noites de verão? O bar sem o pátio perderia todo seu charme. Além disso, já não tínhamos mais disposição alguma pra queimar neurônios tentando lançar uma nova picaretagem-salvadora-de-última-hora (por exemplo: o Garagem Hermética Trattoria) que nos erguesse novamente do fundo do poço. Sem falar nas contas atrasadas que se acumulavam na gaveta da mesa do escritório, remotas chances de quitação. Aquele parecia ser o fim. The end. Finito. Kaput. Eu me sentia miserável, a bordo do ônibus lotado, voltando da reunião naquela tarde infernal. Entrando da vida adulta como universitário tardio sem um tostão no bolso (e cheio de dívidas), proprietário de um bar decadente prestes a falir. Se ali mesmo dentro do ônibus alguém me oferece uns trocados que quitassem minhas dívidas eu passaria o bar adiante, não importando a idoneidade under do comprador. Eu delirava com qualquer possibilidade fantasiosa de sair da merda, a miragem do desespero.

Foi nessa época que o Ricardo jogou a toalha e eu fiquei cuidando do bar sozinho. O trabalho com publicidade começa a lhe render uma grana e tomar muito tempo, o Garagem era um estorvo pra ele. Como ainda precisava desesperadamente do pouco dinheiro que rendia o boteco, aguentei no osso. Combinamos que ele trabalharia de dia, em algumas funções administrativas, e eu me encarregaria do funcionamento da casa, à noite, alguém tem que fazer o trabalho sujo. Me virava entre a vida de empresário da noite falido e as aulas na faculdade, que eram, a maioria, à tarde. Curtindo meus novos amigos que descobriam o Garagem com um entusiasmo que eu já tinha perdido.

*

Em agosto, dois meses antes de completar oito anos de serviços prestados ao roquenrol, o Bar Garagem Hermética foi vendido. O primeiro interessado idôneo foi o Toninho, que já havia comprado o Elo Perdido do Renatão. O Toninho chegou a levar um arquiteto pra orçar as reformas que teria que fazer na casa. Ficou de dar uma resposta na semana seguinte e nesse meio tempo recebi o telefonema do Fernando, um cara que tinha duas lojas de discos na Galeria Chaves. Nos reunimos prum café e o Fernando discorreu por horas sobre todas suas ótimas intenções em relação ao Garagem, um patrimônio cultural porto-alegrense, segundo ele. O cara parecia completamente idôneo, apesar da falastrice. Tinha como parceiro de negócio o Pio, dono do tradicionalíssimo Zelig (idoneidade pouca é bobagem) e, pelo jeito, dinheiro pra investir. O valor que pedimos pelo ponto e o nome do bar foi irrisório. A gente sabia que o novo proprietário teria ainda que gastar muito em reformas na velha casa.

Vinte pila e é teu.

*

Depois de uma reforma que durou meses, o Garagem reabriu sob nova direção. Como quem quer esquecer um passado negro, o Ricardo não apareceu na reinauguração. Minha curiosidade falou mais alto e não pude evitar um enorme estranhamento ao entrar na velha casa, cujas paredes haviam sido todas postas abaixo. O antigo e podre banheiro virara um limpo corredor e, na salinha dos fundos, dois banheiros novinhos tinham sido construídos. O acesso ao pátio estava vetado. Curioso é que o ambiente interno parecia menor.

Com o passar do tempo se tornou clichê relembrar do Velho Garagem e de como as coisas eram melhores, antes. Saudosismo é uma merda. Mas não dá pra negar que o bar perdeu muito do espírito que o moveu por quase uma década. Eram outros tempos afinal, outras circunstâncias, outras pessoas. O tipo de coisa que só acontece uma vez. E que um dia tem que terminar. E a gente já tinha aprendido com todos os mortos célebres do ronquenrol que não dava pra viver o tempo inteiro dos excessos, impossível seguir sempre na base da inconseqüência, da irresponsabilidade e da embriaguez, a vida não comportava. 24 horas por dia, durante quase dez anos, tínhamos vivido intensamente o sex, drugs and etc. O teenage spirit que exalava dos nossos tênis e coturnos surrados era autêntico.

A questã é que o chulé do sapato do novo dono era outro. E nada mais será como antes.

Marcadores:

8.6.09



I've got you under my skin

Marcadores: