13.8.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: DAVID LYNCH

A intelligentsia local estava toda lá. A cidade varrida num alvoroço desde que a organização do evento anunciara a inclusão do artista que muitos chamam de o maior cineasta da atualidade. Uma compensação pelo calote do Christo e da Jeanne-Claude, o adiamento do Daniel Libeskind e os cancelamentos do porvir, que virão, creiam-me. Calhou estar no Brasil, divulgando seu livro de meditação transcendental (!?), o homem é de fato cheio de mistérios. Acertados os detalhes (trouxe consigo uma equipe que roda um documentário sobre a turnê de divulgação do livro), e a notícia bombástica agitou a carroça:

DAVID LYNCH EM PORTO ALEGRE!

Na semana que antecedeu a conferência três pessoas me perguntaram se eu não conseguia liberá-las no evento.

Cês tão pensando que o Fronteiras é a Pulp, pô?

Eu não via um agito desses na cidade desde a passagem do João Gilberto. Encontrei muita gente da minha geração na frente do auditório. Gente criada à Twin Peaks, a maioria sem ingresso. Uma atriz conhecida me disse que tinha falado ao telefone com o grande cineasta, mesmo sem saber inglês. Ligou pro hotel, na maior cara-dura, queria entregar um portifólio. Vai que. Com a mesma (cara-dura), me perguntou:

Não me bota pra dentro?

Nisso o Marquinhos Mello chamou num canto, estava eufórico. No dia anterior tinha escrito um artigo pra Zero Hora que rendeu um convite pra almoço com o diretor, não por acaso, idolatrado pelo Marquinhos.

Almocei com ele. Disse, com um sorrisão estampado no rosto.

E eu pensei: se medita deve ser vegetariano.

O quê ele comeu?

Um pouco de salada.

Rá!

Lynch’s lunch, dava um poema surrealista. Depois o Marquinhos contou que ganhou do mestre um desenho rabiscado durante a entrevista coletiva: uma linda mandala... Meditação transcendental, salada, mandala, isso não estava me soando bem. Não bastasse ainda tinha o pocket-show do Donovan Leitch, que só fui dar conta de que era o Donovan quando um dos amigos-que-perguntaram-se-eu-não-conseguia-liberação se referiu a ele como o chato do Donovan. O Estranho Mundo de David Lynch. Por trás daqueles filmes sombrios e sórdidos, cheios de violência e perversão, havia um homem que meditava, comia salada, desenhava mandalas e era amigo do Donovan, um dos músicos mais chatos dos anos 60. Acontece que Donovan foi parceiro dos Beatles na viagem à Índia, quando os Fab Four se tornaram discípulos do guru Maharishi Yogi, pai da meditação transcendental que David Lynch exalta em seu “Em águas profundas: criatividade e meditação”. E não custa lembrar que o episódio Beatles versus Maharishi rendeu, pelo menos, mais uma linda e rancorosa letra de John Lennon:

Sexy Sadie what have you done
You made a fool of everyone

O que aconteceu no Salão de Atos da UFRGS, na noite da histórica visita de David Lynch a Porto Alegre (no futuro algum nerdzinho vai fazer um documentário sobre isso, me disse o Marquinhos), foi uma grande jogada de divulgação.

Excepcionalmente a apresentação se daria no formato entrevista, explicou o diretor de televisão Gilberto Perin, que conduziu (pessimamente, ele mesmo confirmaria se assistisse ao vt) a própria, pautada em perguntas da maior relevância, tais quais:

Qual a importância do mantra na meditação transcendental?

Confortável num folgado terno preto (gravatinha fina amarela, tres elegant) e com uma tranqüilidade que só pode ser alcançada por quem medita, David Lynch defendeu que não há paradoxo algum em fazer filmes perturbadores como Veludo Azul, Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos e acreditar que o êxtase é a nossa natureza.

“Você não precisa morrer pra filmar uma cena de morte.”

O poeta é um fingidor. Se ele finge a dor que sente ou não, aí já é outra coisa. Diferente de um Tim Burton, com sua franjona preta dark, David Lynch tem um sensacional topete cinza-prata, radiante. Ele é feliz, em oposição ao estereótipo do artista perturbado e deprimido.

“Acredito que Van Gogh e Artaud eram felizes quando criavam.”

Em meio à extensa pauta de divulgação do livro e aos elogios constantes às benesses da meditação transcendental, houve raros momentos em que Lynch revelou um pouco de seu método criativo e de suas escolhas estéticas. Contribui o interessado auditório que enviava as perguntas (vi um garoto sentado na escada preenchendo três cartões com elas).

“Eu amo as idéias. O sentido aparece se você focar nelas.”

“A intuição é a solução pros problemas, ela não é intelectual ou emocional, é ambas.”

Segundo Lynch, é através da intuição que capturamos as idéias que podem, ou não, render frutos. Como saber?

Meditando, claro!

Falou de cinema e pintura (houve inclusive uma pergunta constrangedora sobre expressionismo abstrato, feita claramente pra impressionar. Lynch respondeu de maneira polida: yes, I like Jackson Pollock, but… e já emendou em algum aspecto transformador da meditação transcendental).

“O cinema é a mais bela das linguagens: imagens e sons fluindo no tempo.”

“Há alguma coisa da pintura que se aplica no cinema. Mas há mais coisas do cinema que se aplicam na pintura.”

Lynch lamentou o fim iminente das salas de cinema, que proporcionam a verdadeira experiência cinematográfica de imagem e som.

“Teremos enormes home theaters no futuro.”

Adepto das novas tecnologias, lembrou que também há tristeza e solidão na internet. Contou que se apaixonou por uma pequena câmera digital e que tem apreciado as texturas que ela imprime, com seus pontos de escuridão onde o olho se perde em mistérios, sonhando.

“Às vezes a má qualidade é muito, muito bela.”

Falou da importância da luz que irradia na Costa Oeste dos Estados Unidos. Segundo Lynch, a indústria do cinema se fixou em Hollywood por causa dessa luz natural que permite filmagens externas. Ainda sobre a Grande Indústria dos Sonhos, revelou que não sente desconforto trabalhando nela, dentro de sua engrenagem capitalista.

“Adoro o dinheiro, mas não é a razão pela qual faço filmes.”

Alguns cinéfilos enviaram perguntas bastante específicas sobre a obra lynchiana. O cineasta falou de como surgiu a personagem Log Lady, de Twin Peaks, figura que remonta a seu primeiro longa Eraserhead, de 1977. Também contou que Cidade dos Sonhos foi pensado originalmente como seriado de tevê. Graças a um produtor que assistiu ao copião entre goles de café e chamadas telefônicas, o piloto não foi aprovado. As idéias ficaram abertas por um tempo até que, póin!, numa sessão de meditação lhe foi revelado o que fazer com as imagens captadas. Lynch também contou que detesta testes de elenco por achá-los muito humilhantes (só não entendi se pro ator ou pra ele). Escolhe seus elencos a partir de rostos que combinem com os dos personagens do roteiro.

Mais um pouquinho de meditação transcendental, uma referência à física quântica (a ciência preferida de quem medita, come salada e desenha mandala) e a conferência foi chegando ao fim. David Lynch ainda contou que, no momento, não trabalha em projetos cinematográficos, tem somente se dedicado à pintura que, segundo ele, nunca morrerá. Deixou o palco sob aplausos. Da terceira fila, um grupo de tietes mandava beijos.

Depois apareceu um sujeito que trabalha na fundação mantida por David Lynch (e que leva seu nome), cujo objetivo é, rá!, divulgar as práticas da meditação transcendental. Temi que fosse conduzir uma meditação coletiva, mas o que fez foi anunciar a próxima atração, o músico oficial da meditação transcendental: o grande Donovan! Antes do trovador entrar em cena, foi exibido um vídeo que mostrava-o ao lado de gente como os Beatles e Bob Dylan (inclusive com a antológica cena do documentário Don’t look back, em que o cáustico Dylan olha pra foto de Donovan num jornal e diz: I hate him). Usando uma camisa do tipo oriental, de largos punhos, cantou um par de canções ao violão. Imediatamente um cheiro de mofo tomou conta do ar. Fuji quando o apresentador voltou e sugeriu perguntas ao cantor. Queria saber como foi a experiência indiana com os Beatles. Chega, eu não agüentava mais todo aquele proselitismo, não podia nem ouvir a expressão meditação transcendental.

Na saída, uma fila já se formava, aguardando o cineasta, que autografaria seu livro. As tietes estavam lá, ansiosas, todas com seus livrinhos na mão. Será que virariam seguidoras do Maharishi? Mais tarde, soube que David Lynch retornou ao palco pra ensinar um mantra aos presentes, pacote completo. Sorte que escapei na hora certa. Espero que o Wim Wenders não seja adepto de nenhuma doutrina esotérica.

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5 Comments:

Blogger Gustavo Mini said...

E aí meu! Valeu o relato complementar, vou recomendar no Conector...

A noite do Lynch me lembro, guardadas as devidas proporções e estéticas, a noite do George Clinton...

Abração!

2:13 PM  
Anonymous Anônimo said...

Como tu escreve bem!

bj Cida

4:03 PM  
Anonymous Anônimo said...

também achei que, com tanta ripice, ele fosse vegetariano, mas parece que o almoço foi salada em função do resto do pessoal da comitiva dele, donovan incluído. ele era o único que comia carne - e comeu domingo na janta, depois do lance, no peppo. carneia e fuma crivo, me disseram. menas mal.

uála!

9:38 PM  
Anonymous Anônimo said...

seu texto é delicioso.

6:51 PM  
Blogger Maurício Santos said...

Cara, nem tudo que não cabe na tua gaveta deve ser arremessado na lixeira. Acho que isso tu podes aprender com o doido do DL.

6:37 PM  

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