5.8.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: JURANDIR FREIRE COSTA E CONTARDO CALLIGARIS

Um pouco antes de alcançar o saguão da Reitoria, recebi um panfleto de duas meninas posicionadas estrategicamente no portão de acesso. Um postal com fundo azul vibrante e formas coloridas em primeiro plano, bem parecido com um flyer de festa rave (não o tenho em mãos pra conferir, mas creio que em algum ponto daquela barafunda de formas e cores havia inclusive um arco-íris). Divulgava um curso de pós-graduação de piscanálise junguiana: “a Pós dos seus sonhos”. Travestida de flyer de festinha, a isca tinha como alvo os profissionais da psicanálise e psicodiletantes que compareceriam ao sétimo encontro da série Fronteiras do Pensamento. Ouvi dizer que a maioria dos inscritos nas conferências é de médicos. Junte o notório apreço pela psicanálise nutrido por estas plagas e mais dois psicanalistas como conferencistas e você tem um ótimo ponto de divulgação do pós dos sonhos em psicanálise junguiana. Só falta um flyer melhor.

A noite abriu com a fala de Jurandir Freire Costa, aparentemente um psicanalista acima de qualquer suspeita: membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, professor, autor de livros com temas tão diversos quanto cultura, violência e homoerotismo. Trajando terno e gravata, manuseando papéis que deixou cair e apanhou sem parar de falar, tirando e botando os óculos (não contei, mas deve ter beirado uma centena de vezes), Jurandir Freire Costa destruiu a imagem do psicanalista cool, de fala macia e gestos serenos e sedutores. Com tiques um tanto nervosos e um discurso truncado, JFC era definitivamente uncool. O tema que escolheu também não foi dos mais sedutores: A transcendência ética na modernidade e na contemporaneidade: de Graham Greene a Philip K. Dick. Um assunto restrito demais para aqueles que – como eu – freqüentavam o Fronteiras do Pensamento buscando questionamentos mais profundos. Tais quais o sentido da vida, por exemplo.

Curiosa a escolha de dois autores do segundo escalão da literatura universal (o primeiro, notório por seus romances de espionagem, o segundo, pelas histórias de ficção-científica, ambos muito adaptados pro cinema), mas pra Jurandir Freire Costa, aí é que estava o charme de toda a coisa. Conforme o professor, através de uma literatura dita de entretenimento, os autores metaforizam o dilema ético da modernidade. Nas tramas de espiões e andróides existem questionamentos profundos, sobre política, amor, a origem do mal e a existência de Deus. Também mostram visões distintas acerca da ética.

Em Greene a ética é transcendente. Os heróis são marginais desenraizados que acreditam no bem, mas tropeçam e erram. Porque o mal está sempre escondido na realidade, oculto e obsceno, manifesto em guerras e na brutalidade do Estado. Nem o amor pode ser considerado o bem porque amar não significa estar livre de causar sofrimento. Para o escritor inglês, é em Deus que se deve buscar o ponto definidor entre o bem e o mal. Um Deus que está antes, além e acima do homem.

Já na ética imanente de Philip K. Dick, Deus é plural, fragmentado em atos e objetos cotidianos que precisam da mediação do homem pra se manifestar. A vida é um eterno presente e o futuro nada mais é que as intenções de nossas ações. Para os replicantes, precogs e viciados de Dick não há diferença entre a realidade e o sonho. A lógica, marca da subjetividade consciente, é insana. O mal está na racionalidade.

Tirando e colocado os óculos mais umas doze vezes, Jurandir Freire Costa ressaltou que o dilema ético moderno tem uma herança greco-judaico-cristã. Daí fez pequenas citações em latim e uma única piada, da qual também riu, meio sem graça. Pudera, não era lá essas coisas. Sobre 1964, ano de publicação de um texto de Philip K. Dick do qual leria um trecho

“O mesmo ano em que os andróides tomaram o poder no Brasil.”

Hm. Depois da piada inócua, a citação foi o melhor fechamento pra conferência que certamente não ficaria entre as Cinco Mais. Contribuição miserável pra minha coleção de frases de efeito. Somente uma, lá no finzinho, na citação de Philip K. Dick, uma crítica à identidade coletiva tão exaltada nestes dias de fundamentalismos.

“As raças não nos definem.”
*
Sentando confortavelmente numa poltrona instalada no palco, o palestrante seguinte ouvia com atenção a fala do colega. Italiano que morou na Inglaterra e nos Estados Unidos e escolheu o Brasil pra viver, o psicanalista Contardo Galligaris é escritor e colunista de um dos jornais mais importantes do país (a Folha). Eu já tinha tido a oportunidade de entrevistá-lo e fiquei fascinado com a inteligência e o carisma de italiano buona gente com nome emprestado de personagem de filme expressionista. O sujeito é a encarnação do psicanalista cool, fala macia e gestos serenos e sedutores, autoconfiança plena dos que sabem foder. Foi uma entrevista deliciosa em que falou de seu primeiro romance, lançado recentemente, “O Conto do Amor”, uma narrativa íntima do tipo acertos de contas com o passado, construída a partir de cartas deixadas pelo pai. Perguntei sobre o que falaria no Fronteiras do Pensamento, estávamos em meados de maio. Respondeu que ainda não sabia.

À vontade diante do auditório cheio, Contardo Calligaris explicou que tinha amadurecido o tema da conferência nas inúmeras entrevistas que concedera durante a divulgação do livro, a partir da constante pergunta: por que fazer ficção? Da reflexão sobre a razão de narrar veio, enfim, o tema: A ficção como linha de conduta para inventar a vida.

As razões de narrar de Calligaris remontam a devaneios da infância. Reminiscências de marcianos que o levavam a se sentir também um alienígena, toda vez que o raio verde entrava pela janela do quarto prestes a abduzi-lo. Não sou daqui, era o sentimento do pequeno Contardo, sentimento que só iria aumentar nos anos seguintes com a escolha da vida de imigrante (confessou que viveu de bicos in London, por vários meses, tudo por causa de uma mulher, tô dizendo, o cara é do métier). Estrangeiro aqui como em toda parte, lembrei. Um sentimento que, para ele, define a subjetividade moderna.

“Não é o local de origem que nos define.”

Deve ser o quanto a gente ganha, pensei. Pro regozijo dos profissionais da área da saúde, Calligaris usou uma expressão da medicina pra classificar nossa condição de despertencimento: ectopia (no Houaiss: "posição anômala de órgão"). Por não importar de onde viemos, e por não sabermos para onde vamos, inventamos nossa origem e nosso destino criando histórias.

“Nossa ectopia nos conduz à ficção.”

E então o Dr. Calligaris (não pude evitar), lembrou que é narrando que fazemos a passagem do acontecimento à experiência.

“A narrativa é a condição de transformação dos acontecimentos em experiência.”

Isso ele sabe muito bem, afinal lá em seu gabinete (de novo) está acostumado a escutar (com a paciência de quem vai levar algum no final) as narrativas dos pacientes/clientes, ajudando a processar tudo aquilo em experiências que os ajudem a viver melhor. No emaranhado de narrativas que é a vida, os acontecimentos nada significam se não soubermos enxergar os dilemas morais que eles trazem. Evocou Kant pra defender o que chamou de identidade narrativa: para bem viver, é preciso bem contar. Ou seja: a ética é equivalente à estética.

“A vida é uma aventura que deve valer a pena ser contada e vivida.”

Concluiu. Um tanto clichê, vamos admitir. Minha coleção de frases de efeito andava meio desvalorizada. A argumentação do charmoso Dr. Calligaris não possuía o rigor teórico das colocações de seu colega de conferência com todo seu minucioso (e nervoso) estudo da ética moderna através da literatura de polpa. No entanto, o tom confessional, envolto no charme de estrangeiro bom de cama, e a paixão confessa pelas aventuras que a vida proporciona deixaram melhor impressão no auditório.

O que nos leva a uma importante conclusão em mais uma etapa dessa longa jornada rumo às fronteiras do pensamento: o importante é ter estilo.

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1 Comments:

Blogger Alexandre Carvalho said...

Belo texto, bela análise. Entre consonâncias e dissonâncias, a ironia fina no exato tom.

Prolfaças, pois, caro amigo! 8)*

3:39 AM  

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