24.8.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 17 - My own private Summer of Love ou As sobrinhas do Juca

Parte I

Lá por 89/90 eu trabalhava num banco, morava com a mãe e gastava quase todo o salário em discos (o quase por conta do resto de salário que eu gastava em drogas). Dia do pagamento, final do expediente, batia o cartão ponto, saía zunindo pela Rua da Praia até a Galeria Chaves e me atirava dentro da extinta Pop Som. Numa dessas incursões saí com o primeiro do Stone Roses, recém lançado no Brasil, e outro álbum de estréia: The Piper at The Gates of Dawn. Eu conhecia o Pink Floyd através de uma prima hippie do meu pai que eu achava o máximo e teve bastante influência no meu gosto musical adolescente. Ela e o namorado eram ligados em rock progressivo: Yes, Renascense, Focus, Jethro Tull e, é claro, Pink Floyd. Eles também eram adoradores do Blow by Blow, do Jeff Beck, do infalível The Dark Side of The Moon, e do Physical Grafitti, do Led Zeppelin - aliás, a prima do meu pai era muito parecida com o Robert Plant, o namorado dela também, só que careca. Eram fãs de Roger Waters e David Gilmor mas nunca haviam mencionado Syd Barret. Quando escutei pela primeira vez o The Piper fiquei com a grave impressão que a prima hippie do meu pai e seu namorado tinham me enganado em algum momento, me ocultado alguma informação muito importante. O Stone Roses foi o próximo no toca-discos. A música que saía dos alto-falantes soou aos meus ouvidos completamente de acordo com a do disco anterior, lançado trinta anos antes. Como se os 90 fossem os 60. If 9 was 6, ou vice-versa. Fiquei fissurado por aquela década mitológica do século XX. O advento do cd possiblitou acesso a muitas daquelas gravações legendárias que eu conhecia apenas através de resenhas na revista Bizz. O universo conspirava a favor e uma mostra psicodélica entrava em cartaz no Ponto de Cinema, uns filmes dirigidos pelo Roger Corman com gangues de motoqueiros, boates em Sunset Strip e o Peter Fonda no elenco. Simultaneamente vinha toda uma literatura dando embasamento pra loucura: os beats (especialmente Burroughs, Burroughs, sempre Burroughs); O teste do ácido do suco elétrico, do Tom Wolf , livro-reportagem que narra as peripécias de Ken Kesey e seus Merry Pranksters a bordo de um ônibus carregado de drogas na América de 1965; e o Novo Testamento do ácido: Flashbacks, biografia do guru do LSD Timothy Leary. O proselitismo lisérgico do Doutor Leary e a prosa alienígena de Bill Lee me pegaram pelo cu. Fuderam minha vida pra sempre, como diria o Johnny Depp. Caí matando nas drogas. Na busca dos tais estados alterados da consciência, valia tudo, até borra de café. Eu acreditava que tomando todas aquelas drogas poderia voltar no tempo e viver os incríveis anos 1960 como o Timothy Leary, o Ken Kesey ou o Peter Fonda. Perambulava apertado nuns terninhos de brechó da João Pessoa dois números menor, achava os Byrds a melhor banda do mundo e deixava de almoçar pra completar a grana de um disco que eu queria muito. Uma coletânea Peebles, por exemplo. Pensando bem, por um disco desses eu nem jantava.

*

Sempre que eu falava nos anos 1960. O Júpiter me interrompia dizendo:

Anos 2000, o lance é anos 2000.

O sujeito é uma lenda deste rock que além de gaúcho é brasileiro. Na província de Porto Alegre, nos idos 1980's fundou duas das bandas mais adoradas por estas plagas: TNT e Cascavelletes. Clássicos de um gênero, esses grupos contrapondunham a sonoridade de Beatles & Stones a letras juvenis apelativas de qualidade duvidosa. Só nos 1990's, depois da passagem por um estrelato meteórico que incluiu música-tema de novela, apresentação no programa da Angélica, pelada no sítio do Chico Buarque (me disse uma vez que o Old Blue Eyes tupiniquim não joga um ovo, sina de dono do campinho) e o auto-exílio num quarto-e-sala qualquer no centro da cidade, com sorte com vista pro rio (que é lago), foi que o roqueiro Flávio Basso se reinventou numa persona psicodélica que enfim pode revelar toda sua potencialidade como compositor.

Senhoras e senhores: Mister Júpiter Maçã!

A chegada dessa estranha e sedutora figura nos assoprou novos ares. Vapores estupefacientes? Bafo de biter? Não saberia dizer. Novos ares, mais chapados com certeza. Vendaval de sensações. Beber, falar, tomar LSD, Syd Barret e os Beatles e, principalmente, o refrão com as pessoas loucas e superchapadas. Quando ouvi aquela música, saquei tudo. Aquele lugar do caralho que ele cantava era um lugar muito parecido com o Garagem (se bem que a Joy sempre dizia que lugar do caralho é a cueca). Aquelas músicas falavam de coisas que estavam acontecendo naquele momento, com referências que me eram caríssimas, de forma poética e bem humorada. Deliciosas canções pop que sintetizavam esteticamente muito do que a gente acreditava, cantadas por aquele arauto do Aqui e Agora, o espírito do tempo estava em suas mãos. Deve ter sido arrastado até nós pelas melodias que escapavam das frestas da velha casa, pelo chamado da loucura, uivando em frequência inaudível aos ouvidos sensatos, pelo faro do cio das meninas de cabelo curto e grudado na testa.

A primeira vez em que vi o Júpiter em ação ele ainda era Flávio Basso. Tinha 14 aninhos, nem fumava maconha direito. Fui com uns amigos da escola num evento com o auto-explicativo título de Fenajovem, em Esteio. Lojinhas de tênis, gurizada andando de skate, vinho barato em garrafas plásticas escondidas na mochila, ninfetinhas bronzeadas. Um pé no saco: eu não tinha dinheiro pra comprar tênis, não sabia andar de skate, o vinho tinha terminado e as minas sequer notavam a minha existência. Mas a idéia era ficar até o show das bandas e pegar o dernier metrô (como diria o Truffaut) pra voltar pra civilização. Não lembro das outras duas bandas que devem ter tocado antes do show dos Cascavelletes. Lembro daquele cara com uma mancha marrom no pescoço, coberto de pó facial, dançando como o Mick Jaegger. Também lembro do rodie que toda hora entrava em cena e desenrolava o fio do microfone do pescoço do vocalista. Lembro de um cowboy de mullets tocando guitarra e do magrão de óculos de mosca no baixo. A música era aquele roquinho grudento que meus amigos da escola ouviam em fitas cassetes gravadas de programas de rádio. Caminhei até a frente do palco e, de perto, fiquei curtindo aquele o show de rock que tinha me salvado o dia.

A segunda vez foi na Boca do Disco, a clássica loja do Professor Getúlio, o ponto mais quente pra se adquirir discos venenosos na cidade. Eu vivia lá. Meus turnos prediletos eram os finais de tarde e sábados sem ressaca. Torrava meu salário de bancário em cds, fazendo mil escambos com o Professor que me via entrar na loja com a sacolinha de cds usados e disparava:

Cuidado com a Polícia Federal.

Era o método que ele usava nas trocas: desvalorizar o produto alheio já de cara. Daí o Getúlio me deixava esperando por horas com a minha sacolinha de drogas. Ele atendia todos os clientes, falando sem parar com aquele monte de expressões que ele inventava ("pai deles" pra qualquer banda influente e pioneira; "venenos" pros discos essenciais como Forever Changes, A Love Supreme, Hunky Dory ou qualquer outro que desse "cãibra no cerébro"; "Peidones" era como o Getúlio chamava os Stones, os Mutantes eram "Peidantes" e assim por diante; o Axl Rose ele chamava de "Pato"; uma sacola como a minha, cheia de discos pra trocar, podia dar cana por "porte de drogas"). Em jejum, ficava olhando fixamente praquela coletânea Peebles esperando o Getúlio me atender. Nas horas perdidas na loja, com todos aqueles discos à espera de uma audição, tirando uma casquinha de um e outro, pescando dicas de colecionadores, caindo na conversa escolada do Professor, eu ia aprendendo. A alcunha é por mérito, o sujeito sabe o que faz.

No que estava lá eu na Boca do Disco aprendendo com o Professor. A loja nessa época era um corredor escuro cheio de caixas de discos pelo chão, capas de vinis raros pelas paredes e pilhas de cds em cima de uma escrivaninha ao fundo. Foi quando, na contraluz de raios solares que vinham da rua, o vi entrar. Uma mudança havia se operado nele: desempertigado, um jeitão de cantor folk andarilho, só faltava o violão nas paletas e a harmônica no pescoço. Bingo! Entrou e foi direto na caixa com a plaquinha da letra B, de Bob, e hoje penso que o que eu vi naquela tarde de sábado, iluminado na treva da loja do Getúlio, foi um homem em processo de transformação. Um homem se transformando num planeta. A construção de uma persona artística erigida à base de muito Dylan, o Bob, o mito.

A tarde já caía e a loja era iluminada apenas por uma lampadinha fraca pendendo de um fio no forro. Não havia mais contraluz quando vi o planeta em transformação saindo com o Planet Waves embaixo do braço. Tive um impulso de sugerir pra trocar pelo Blood on The Tracks mas fiquei frio. Inútil tentar interferir no curso dos astros.

(continua)

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9 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Eu sempre achei o Getúlio um sujeito escrotão, arrogante e picareta. Certa vez procurando um cd por lá ele queria R$80,00... na verdade com o advento da mp3 certamente deve ter caído do cavalo, como muitos caras que inflacionavam as coisas na política do "ou você paga ou dane-se". Talvez se ele fosse um pouco mais humilde seria um grande comerciante.

2:00 PM  
Blogger mutantix said...

léo, como eu sou mais velho (bem mais, acho) do que tu, lembro bem quando eu vi o tnt pela primeira vez. foi na abertura de um show dos replicantes (que eu perseguia) na reitoria. eu conhecia o charles e o fleavio "da noite" do bom fim, mas não tinha a menos idéia que eles tocavam e (surpresa!) era muito bom. quando entraram no palco, eu olhei o charles, mirradinho, e disse prum amigo: "ah, tá, agora vou ter que aguentar aquele piá cagalhão do anne frank tocando merda!". tive que engolir palavra por palavra. o show foi matador.
abs
raul
(recebeu o presente?)

8:50 PM  
Blogger "Palavras de Adolfo..." said...

Interessante! Escreves de forma cativante, prendendo-me ao texto, ao contexto. E com esse ambiente como pano de fundo, torna-se mais interessante ler e continar lendo.

12:41 AM  
Blogger mutantix said...

cara, acho que não pensei nisso quando cliquei a foto. mas sempre tento, em retratos, ambientar o retratado o máximo possível. foi intencional mas nem tanto, portanto. ui, que rima...
quanto ao livro do burroughs, ele não é meu, peguei emprestado. mas vou tentar pegá-lo de volta e te empresto. só que tem que devolver mesmo. fui super cobrado porque demorewi a ler e devolver (é em inglês).
vê se edita esse livro logo. no ultimo capítulo tem uns errinhos, algumas palavras escritas com grafia diferente. lembro só de estupefacientes, que tu escreveu de outro jeito... enfim, ainda vai ter revisão, por certo. mas o texto é muito bacana, meu, tem uma fluência meio gonzo, como se tu tivesse falando.
manda bala!
raul.

11:53 AM  
Blogger mutantix said...

ah, quanto ao mr. helmut newton e sua fundação: PRECISO ir lá. as fotos do lachapelle eu vi em nova iorque. acho que podem ser as mesmas - guerra, apocalipse e tal.
abs

12:02 PM  
Anonymous Anônimo said...

onde anda o verão e as primas do juca no meio disso tudo?

5:12 PM  
Blogger Cris said...

...não tinha tido tempo de ler este outro trecho,ando(com o trocadilho inserido no andar)passando rápido pelo computador nos ultimos dias...mas os textos estão chapantes...quero mais!
vai pra quintão um fim de semana!

11:19 PM  
Blogger MAZMORRA said...

Lembro de uma vez o João Gordo discutindo com o Getulio sobre uns discos nazy que ele tinha achado por ali... depois na Van, o Gordo falou: Esse velhão não sabe de nada, todo hipão vendendo discos de Nazy !!!

7:57 PM  
Anonymous Marcos said...

Flavio Basso é parceiro, amigo, talentosíssimo, o único defeito dele é que gosta de puxar um fumo.

7:10 AM  

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