6.8.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 16 - Ceva uruguaia

Oito da noite, fim de um cansativo turno de trabalho, o do dia: compras, abastecimento, limpeza, passagem de som. Eu saía levando um pack de long necks, ou melhor long nets, como se diz. Fechando o portão e saindo com meu pack de long nets quando o Gomes, barbeiro no salão homônimo, comenta:

E essa cervejinha?

Pois é, Gomes, levando um pouco de trabalho pra casa.

Em outra ocasião um taxista tentou me convencer que dono de bar não podia beber. O mesmo que eu dissesse que ele não podia andar de táxi: papo furado. A cerveja está pro dono de bar assim como o táxi está pro taxista, é sua razão de existir.

No início - onde seria a primeira parte do livro - tinha tanta inflação que o preço da bebida subia diariamente. A gente alterava o cardápio todo final de semana. Aí veio o plano real com um dead-line pra trocar todo aquele dinheiro por um monte de moedas. Nessa época era mais barato comprar cerveja no supermercado do que encomendar das distribuidoras. Então a gente passava carregando engradados de cerveja de um lado pro outro, trabalho de estivador. Como a minha compleição física nunca foi adequada pra esse tipo de atividade, eu achava aquilo tudo um suplício. Não raro deixava uns engradados num canto escuro da salinha da frente pra não ter que carregar até os fundos. Um dia um cliente chegou dizendo:

Dois caras saíram carregando um engradado de cerveja, vocês tão fazendo alguma promoção?

Nem todo canto escuro é perfeito. Corri pra rua a tempo de ver um carro zunindo pela Barros Cassal. Mais um engradado na minha conta. Ia passar batido.

Promoção foi a vez que eu comprei várias caixas de Malt 90 no supermercado. Super promoção. Ou seja: o supermercado quase me pagou pra levá-las, afinal aquela era a pior cerveja do mundo. Na hora eu pensei: vou colocar lá no fundo do freezer, deixar pra vender no final de noite, sem opção, o povo vai beber tudinho. Me dei mal. Os clientes quase se amotinaram. Achei que iam depredar o bar, arrancar minha cabeça e deixá-la cravada num espeto. Tive que oferecer uma rodada pra todos. Saborearam felizes. De graça bebiam tudo, até uns drinks bagaceiros que a gente inventava, como o Jack Rabit's, uma mistureba à base de uísque vagabundo, xarope de qualquer coisa, cachaça e gelo.

Depois a gente começou a comprar de distribuidoras, até o dia em que o banco parou de cobrir nossos cheques. Eis que apareceu um uruguaio chamado Julio oferecendo Norteña a um preço imbatível. Caímos de boca (literalmente, contando a quantidade de cerveja que a gente bebia). De onde tinha surgido aquele moreno piadista e com pinta de picareta ninguém sabia. Mas ele era útil e isso era o que importava. Um oportunista oportuno.

Toda a semana, uma caminhonete fuleira costurava um espaço entre o mundaréu de carros que entupiam a Barros Cassal caótica de fim-de-tarde e descarregava à frente do velho portão do número 386 dezenas de caixas de cerveja. O motorista fazia o serviço enquanto Julio coordenava a operação, falava compulsivamente e acertava os detalhes ($) da compra. Os prazos eram bons. Ele também nos conseguiu umas mesas e um freezer enferrujado que fedia a peixe, com os quais (a mesa e o freezer, não os peixes) montamos um bar na salinha dos fundos, pro conforto dos bebuns que gostavam de ficar no pátio.

Completamente fora-da-lei (já que nosso alvará não otorizava) o pátio era um dos pontos mais legais do bar. Ficar por ali, curtindo um arzinho noturno no verão era o que havia de melhor no menu garageiro. Outra utilidade importantíssima era a função de refúgio em show de bandas chatas, além, é claro, de ser o local mais agradável pra se queimar uma gorda ponta. Sem falar nas paqueras, fodas e boquetes à luz da Lua, puro romantismo punk. O pátio era o must. O difícil era chegar lá em noites muito cheias. A gente tinha que passar se espremendo no estreito corredor do banheiro, um povo na fila, outro vindo do lado oposto, um monte de mão alisando a bunda da gente, uma esfregação do inferno. Que perigo.

De vez em quando a fiscalização aparecia pra ver se nossas atividades estavam em conformidade com o alvará. Nossa sorte é que os fiscais iam muito cedo, lá pela meia-noite, com o bar recém aberto. Aí era apagar a luz do pátio e eles nem suspeitavam que aquilo ali iria bombar algumas horas adiante.

Uma vez a gente quase se fudeu. Eu bebia uma cerveja com uns amigos, recostado tranqüilo numa cadeira perto do muro. No meio do papo, num lance assim completamente olhos de águia virei a cabeça em direção à entrada e, lá longe, na frestinha que eu conseguia enxergar do portão, vi dois sujeitos descendo de um carro branco estacionado na frente do bar, um deles carregava uma pasta embaixo dos braços. Saquei tudo. Olhei pros amigos e disse:

Vamos tomar uma ceva lá dentro?

Ah, não!

Aqui tá tão bom.

É, vamos ficar aqui.

Eu pago, insisti. Mas tem que ser lá dentro.

CERVEJA DE GRAÇA.

A frase ficou ecoando no ar como num solo do flautista de Hamelin e a rataiada veio toda atrás. O tempo de chegar no balcão que o porteiro apareceu correndo:

Sujou, fiscalização.

Os fiscais surgiram logo depois. Um baixinho com cara de mal humorado e um grisalho simpático. Mostrei a documentação. O grisalho parecia satisfeito e pronto pra ir embora quando o baixinho soltou:

E o pátio?

Às ordens, eu disse no maior sangue frio.

Levei os fiscais até lá. Mesas e cadeiras dispostas por tudo. Algumas garrafas vazias e copos de plástico com restos de cerveja. Olhei pro baixinho através de uma máscara rígida de cinismo, sorriso forçadamente natural entalhado no meio da cara de pau:

Fizemos uma pequena confraternização com os funcionários antes de abrir o bar.

Ele sabia que eu sabia que ele sabia que eu mentia. Mas não podia fazer nada.

Te pego da próxima vez, espertinho.

Deve ter pensando enquanto colocava a pasta embaixo do braço e o rabo entre as pernas.

Tempos de prosperidade aqueles. Breves, mais ainda assim tempos. O suficiente pra esticar o pescocinho e tirar um pouco a cabeça da merda. A Norteña era um sucesso de vendas.

Bárbaro, cerveza uruguaja!

Todos bebiam felizes. Menos eu. A Norteña não me descia. Tinha alguma coisa errada com aquela cerveja. Não fazia espuma, era turva, meio fedida. Dava dor de barriga, gases, enxaquecas medonhas. Eu fora. Passei a comprar minha cerveja no bar da esquina. Todo mundo bebendo Nortenã e eu na Brahma, comprada no Bambu's. That's Garagem.

Os clientes também começaram a perceber que alguma coisa estava errada com aquela cerveja. Começamos a ter um número enorme de devoluções, noite após noite.

Essa cerveja tá choca.

Como? Eu dizia me fazendo de surdo enquanto bebericava minha Brahma. Aí olhava o copo do sujeito com aquele caldo gelado e turvo, cor de ovo podre, e abria outra cerveja pra ele. Torcendo pra que não estivesse bichada também.

Chegou um ponto em que não deu mais pra vender a Norteña. Todos os clientes reclamando de dores de barriga, ressacas devastadoras, mau hálito. Noite após noite, caixas de cerveja devolvidas. Por fim, o Julio acabou depositando uns cheques pré-datados antes da data e aí nossa parceria comercial com aquele uruguaio picareta terminou pra sempre.

Graças à momentânea prosperidade nossos cheques voltaram a valer na praça. Aproveitamos o bom momento pra saldar as dívidas com nossos credores e a cerveja nacional voltou ao cardápio. Pra alegria geral da nação garageira. Made in Brazil-zil-zil! Ganhamos um freezer vertical novo em folha, daqueles de vidro pra gelar long net, e prometemos exclusividade pro nosso antigo fornecedor.

Um dia, durante uma dessas "reformas" entre aspas que a gente fazia de vez em quando, mexendo numa pilha de engradados esquecida no pátio, ao relento, encontramos meia dúzia de caixas de Nortenã. O prazo de validade já tinha expirado há dois anos. Minúcias. Enchemos um freezer inteiro de ceva uruguaia e o povo bebeu feliz. Brasileiro tem memória curta.

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3 Comments:

Blogger mutantix said...

po, nem lembrava disso...
taqui tua foto, tá ligado?

abs!

5:35 PM  
Anonymous Anônimo said...

Bem, é melhor Norteña vencida do que a Sol que vendem hoje em dia.

10:42 PM  
Anonymous Anônimo said...

que bandidagem!!!ahahaha!

7:26 PM  

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