16.7.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE


Capítulo 13 - Cocaína dez real ou Não basta descer até o fundo do poço, tem que cavocar

Parte II


Nessa época rolou um estranho fenômeno: todo mundo estava virando traficante, conseqüência da situação econômica hostil. Dali a pouco você encontrava um amigo que não via há um tempo, cidadão honesto e batalhador, figura acima de qualquer suspeita. Então desenvolvia uma breve conversa com o cara e, do nada, ele enfiava a mão dentro da calça, tirava da cueca um pedaço de papel higiênico amassado e abria a maçaroca. Disfarçadas na brancura do papel, apareciam as buchas:

Tafim? Tô fazendo uma mãozinha pra levantar um troco.

Também coincidiu que o cara que me descolava maconha um dia apareceu com pó. Tinha pegado de não sei quem, a um preço super bom. Um troço muito melhor que a porcaria que rolava no bar, aquele sal de fruta brabo. Comecei pegando um pouco de vez em quando. Em seguida já estava na função quase diariamente.

Coisinha de nada, mixaria. Eu pensava, patinho inconseqüente nadando em águas perigosas.

Passei a frequentar apartamentos de traficantes, uns lugares suspeitos, com latas de cerveja e cinzeiros sujos pelo chão. Tráfico de drogas é uma das piores profissões que pode existir. Além dos óbvios riscos com a lei – viver na contravenção et al – tem o lance de lidar com os drogados, o que é um grandessíssimo pé no saco. Ô, gente mais impregnante: 1) porque não têm simancol, batem no seu apartamento a qualquer hora (tipo cinco da manhã), gritam no interfone se não rola uma cocaína. Se você não estiver em casa, periga tocarem no vizinho pra perguntar, 2) por causa das manias.

Todo drogado tem uma relação muito peculiar com a droga que consome. Têm aqueles, por exemplo, que só cheiram com uma das narinas. Outros, revezam. Uns não cheiram em dinheiro porque pode passar doença. Outros, colonizados, só tecam em nota de dólar. Manias das mais variadas. Por exemplo, tinha esse cara que sempre pegava pó no bar. Cheirava todo dia, mas se alguém mencionasse a palavra vício perto dele tinha acessos ilusórios e moralistas sobre o seu auto-controle e eu paro quando eu quiser e blablablá.

O cara pintava, cedo da noite, e pegava uma buchinha. O traficante perguntava:

Não quer três? Te faço pelo preço de duas, superpromoção.

Não, eu só vou cheirar essa.

Tem certeza?

Tenho.

E então ele voltava dali a meia hora pra buscar mais uma e de meia em meia hora até as seis da manhã.

Pior são as manias nojentas dos drogados, como aqueles que peidam quando sentem o cheiro da cocaína. Eu tinha um amigo que, de tão cocainômano, só de ouvir a palavra cocaína ele já peidava.

Vamos pegar um pó? Alguém perguntava e as peristalses tinham início no interior do meu amigo. Eu tenho um canal do bom.

E ele quase se cagava.

Outra mania repulsiva dos junkies é lamber o plástico da bucha depois de cheirar o pó. Abrem a buchinha, esticam o plástico e passam a língua ou esfregam nas gengivas os resquícios do produto. Uma coisa muito nojenta. Uma vez presenciei um conhecido músico da cena local que, não satisfeito em ter quase dissolvido o plástico de tanto lambê-lo, lambeu também a própria nota com a qual cheirara o produto. Desenrolou a cédula e, em movimentos precisos e ritmados (me lembrou uma máquina de costura fazendo a bainha num tecido) percorreu meticulosamente com a língua lépida a nota de um real, das mais manuseadas na praça.

Também têm as manias dos cheiradores e as manias dos tomadores. Uma noite bateram na porta do escritório. O bar cheio de gente do lado de fora e eu entocado lá dentro. Abri uma frestinha e dei uma espiada, um vago conhecido (VC) acompanhado de um completo estranho (CE).

Tafim dum teco? Me perguntou o VC.

Os caras entraram, o VC pegou um cd e esticou duas carreiras, o CE pediu pra usar a pia (nessa época o escritório/casinha do DJ/cheiródromo ficava na cozinha). Achei que fosse lavar as mãos. Me abaixei pra dar o teco, o CE foi até a pia e voltou com a manga da camisa dobrada, uma seringa na mão, tudo muito rápido, perguntou:

Tudo bem?

Não seja hipócrita, pensei.

Vai firme.

Fiquei olhando o cara tomar o pico com curiosidade científica. Tirou do bolso um pedaço de barbante e amarrou no braço, fazendo o torniquete. Fincou a agulha na veia, afrouxou o barbante e empurrou o êmbolo com firmeza. Um fio de sangue escorreu do buraco depois que ele retirou a agulha. Pôs de lado a seringa e só então me veio a repulsa: quando limpou o sangue com a própria bucha vazia, ainda contendo uns restinhos de cocaína. Nem sei o que fez com ela depois, não pude mais olhar. Talvez a tenha engolido, junkies são capazes de qualquer nojeira.

*

Um dia recebi um telefonema. A namorada do cara que descolava o pó:

Sujou.

Fiquei completamente paranóico, eu tinha frequentado aquele apartamente demais nos últimos tempos. Comecei a achar que estava sendo perseguido, que a polícia ia invadir o bar a qualquer momento, que meu mundo, assim como o da Maysa, ia cair. Passei uma semana trancado em casa. Só na tele-pizza, sem tirar o nariz pra fora. Desliguei o telefone.

Alguns dias e pizzas depois, caiu a ficha:

Mas que merda eu ando fazendo?

Queimando o filme, botando tudo a perder.

Virando um viciado ainda por cima.

Se as previsões do Tim Maia estiverem certas eu acabo dando o rabo rapidinho.

Na primeira noite depois do meu auto-exílio, completamente limpo, observei estarrecido as cenas que transcorriam no bar.

O fundo do poço era terraço perto daquilo. Nossa clientela havia se transformado num bando de cocainômanos desesperados, gente suspeitíssima cheirando pelos cantos, a maioria homens usando bonés. Brigas explodiam a todo momento, ajustes de contas entre trafis, surras em consumidores inadimplentes, barbarismo.

Porra, por onde eu andei esse tempo todo? Perguntei pro Ricardo que assistia a tudo com o mesmo assombro.

Ele não respondeu à minha pergunta retórica furada. Assim como ele, eu sabia muito bem aonde a gente tinha estado nos últimos seis meses: trancados no escritório, cheirando todas, dançando a mesma valsa dos vampiros de boné, a casa inteira sob uma maldição como num conto de terror. Mas bastava interromper o consumo do veneno pra que o feitiço se desfizesse.

Putz, a gente tem que tomar alguma providência.

Urgente.

Vai sujar.

Feio.

Precisávamos de um plano para nos desvencilhar daquela teia de cocaína na qual estávamos enredados, uma estratégia de ação pra expulsar a escória e trazer de volta nossa clientelinha querida, drogaditos inocentes de classe média, gente que não trazia perigo nenhum.

Demos uma de Carlito Brigante. Chegamos em todo mundo que estava traficando no bar e falamos:

Ó, a partir de agora o lance vai ser diferente, chega de ficar traficando como se isso daqui fosse a Rocinha. Se nego for pego metendo pó aqui dentro vai expulso e não volta mais.

Depois que a chinelagem fosse expulsa a gente pensaria em como trazer os bons clientes de volta e encher os bolsos de dinheiro honesto, até porque com o desonesto eu só enchia o nariz e ainda estava perigando ir em cana ou perder o bar ou matar alguém de overdose ou me matar de overdose ou acabar dando o rabo conforme as previsões do Tim Maia.

Da noite pro dia as regras mudaram na casa, nada mais de cheirar nas mesas, traficar no banheiro ou gritar cocaína dez real na pista impunemente. Repressão total, neguinho escancarou usando drogas no bar: rua.

Mas foi só um tequinho no banheiro?

Não interessa: rua.

Um pega numa pontinha?

Foda-se: rua.

Em nossa cruzada moralizante logramos expulsar muitos traficantes e queimadores de filme, nunca sem antes ouvir juras de morte, ameaças de vingança, pragas mortais, que iam nos pegar na saída, nos matar, matar nossos filhos, esposas, mães, gatos, cachorros, periquitos. Mas a gente não estava nem aí, via o sujeito vendendo cocaína, chamava o porteiro e apontava na cara:

É esse, pode levar: rua.

Graças ao Bom Senhor ninguém jamais cumpriu as ameaças. Mas uma vez cheguei a pensar que tinha chegado, enfim, meu fim. Caminhava à noite pela Osvaldo quando um vulto se aproximou por trás, sorrateiro. Só o percebi quando já estava muito próximo, quase colado. Sussurrou no meu ouvido:

Se eu quisesse te dava uma facada.

Ufa, ainda bem que não queria. Era uma dessas figuras que eu tinha enxotado do bar, um negrinho com dentes (poucos) enormes e cara esfomeada.

Decidi evitar a Osvaldo à noite por uns tempos. A vida vale mais que uma cerveja na Lancheria do Parque.

Marcadores: