2.7.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 12 - Noite Vazia

Não foi uma, foram várias. Nada de glamour. Bar-fantasma sem alma penada. A noite custando décadas pra passar e a gente torcendo pra que desse ao menos algum pro táxi. Sacanagem ainda ter que ir pra casa a pé depois de uma noite inteira trabalhando. Se bem que trabalhando seria mais um modo de dizer porque o que se fazia numa noite dessas era basicamente beber, fumar e cheirar pra passar o tempo. O tédio é o pior inimigo do homem. As noites vazias que estou falando aqui não são, por exemplo, aquelas que seguem fracas até às três da manhã quando, de repente, o povo começa a aparecer e eis que a festa vira um sucesso, tardio porém sucesso. Não. Noite vazia aqui é noite vazia mesmo. Deprê total. As horas rastejando intermináveis e inúteis enquanto você torce que dê ao menos algum pro porteiro (qualquer chance de ir pra casa de táxi já foi pro brejo).

No auge do verão eu chegava a levar televisão e vídeo-cassete pro bar e ficava lá assistindo a favoritos como o recém lançado Pulp Fiction; o clássico do humor negro Doutor Fantástico ou um pouco de putaria psicodélica como Garganta Profunda, isso quando eu não tinha que trabalhar na portaria, porque no auge do verão a gente dispensava até o porteiro, melhor garantir o táxi. Nessas noites, eu e o Ricardo dividíamos a pouca grana do caixa (tipo uns cinco pila pra cada um) e acabávamos voltando na pernada pra casa, melhor garantir o almoço do dia seguinte. O fato é que as noites vazias sempre acompanharam a nossa existência. Como um herpes. Causas variadas: evento mal divulgado, chuva, sábado de Carnaval, promotores desacreditados, repé da noite anterior, melhor opção na concorrência, fim de mês, banda chata e, principalmente, durante todas as vezes em que estivemos à beira da falência (e não foram poucas) quando o público parecia sentir o cheio do fracasso e suavemente, como aves estúpidas, migrava pro bar da frente, pro Ocidente, pro bar do Marcos ou pra qualquer bar bem longe, sem nem passar por perto, minto, passando na frente, perguntando pro porteiro: tem gente? e ouvindo um tem (bons porteiros nunca revelam a eventual condição de noite falhada do bar onde trabalham, está no código de ética da profissão) e pedindo: posso entrar pra dar um confere? (Faca de dois gumes: deixando ou não o cara vai embora.) E esse senso de perigo, falência, fracasso, a iminência de uma catástrofe que paira no ar deixando um clima de caos permanente, é que dava o suporte pra gente se reerguer do vazio, Fênix que surge das cinzas do baseado: púnhamos os velhos cérebros combalidos pra trabalhar e vinha alguma idéia mirabolante (tipo sushi bar, pode?), prontamente acompanhada – of course – de uma pinturinha interna à qual chamávamos de reforma, que nos tirava da merda e fazia com que voltássemos a ser sucesso sem que nenhuma grande mudança tivesse, de fato, ocorrido. Sou obrigado a confessar que a gente tinha mesmo a manha.

Duas noites vazias permanecem registradas no inventário apagado da memória. Mais por um senso de desperdício que qualquer outro motivo:

1) Certa vez as Little Sisters produziram uma festa à fantasia inspirada em personagens do cinema. Então a Flavinha foi de Cesare, o zumbi expressionista de O Cabinete do Dr. Galigari, olheiras fundas, corte de cabelo anos 1920 e aquele jeito de caminhar se esgueirando abraçado na parede. A Virgínia se fantasiou de Olívia Palito e uma amiga, a Cris, foi com a mesma fantasia. Duas Olívias e nenhum Brutus ou Popeye, total quebra de paradigma. Eu andava numa fase Al Pacino e resolvi ir de Serpico, o policial hippie do filme do Sidney Lumet. Deixei a barba crescer (não tinha muita, confesso), vesti umas pantalonas e uma camisa de gola e punhos gigantescos, desencavei de um baú na casa da minha mãe uma peruca do tempo do Serpico, enfiei na cabeça um chapéu esportivo (tipo aqueles dos Stone Roses) cheio de buttons e calcei uns sapatões de salto, me achando o máximo. Mas creio que o Serpico era um personagem por demais, digamos, hermético. Logo na entrada do bar, um cliente me olhou e disse: Roberto Carlos! Descartei o chapéu e assumi o novo personagem. Todo mundo achou a fantasia de Rei ótima, ainda bem que eu tinha pouca barba naquela época. O Ricardo entrou numas e disse que não ia se fantasiar, imagina que mico, mas na hora ficou com cara de criança emburrada que se arrepende de não ter entrado na brincadeira. A festa foi um sucesso e, pensando numa segunda edição, as Little Sisters agendaram pra alguns meses adiante um Baile de Máscaras. Durante aqueles meses elas se puxaram muito: confeccionaram centenas de máscaras de papel machê incríveis, tipo Carnaval de Veneza psicodélico. No dia da festa decoraram o bar com panos e velas, iluminação vermelha, deixando tudo envolto num clima misterioso, erótico. A festa prometia. Mas a promessa não se cumpriu. As horas passavam e eu assistia às velas derretendo em cima das mesas, os panos solitários pendurados no corredor, os olhares decepcionados das meninas, a tristeza amarga do fracasso. Até hoje não sei porque ninguém aparceu. Nem o que elas fizeram com todas aquelas máscaras.

2) A outra vez tem motivo. Um temporal que alagou a cidade. Daquelas chuvas medonhas que começam no cair da tarde e seguem noite adentro sem dar a mínima trégua. Só louco pra sair numa noite dessas. Então apareceu o Otto Guerra e acho que o sujeito deve ter um ímã de ninfetas porque logo depois pintou uma menininha que andava frequentando o bar nas últimas semanas. O Otto, a ninfeta e eu fomos os únicos espectadores de um dos shows mais incríveis que já houve no Garagem. Era o pessoal da Molly Guppy, um coletivo de freaks que trabalhava com música, artes gráficas e reciclagem - dentre os quais o Edu e a Mari, que seriam os fundadores da Space Rave, verdadeiro baluarte do noise sulista. Quem entrava na festa (no caso, só o Otto e a ninfeta) ganhava um fanzine criado pelo Itapa, o guitarrista da Molly Guppy, e umas bijouterias malucas feitas de botinhas do Falcon, cavalinhos de plástico, bracinhos de boneca e outros objetos improváveis. O mundo desabava lá fora, na lateral da pista de dança uma goteira em forma de queda d'água escorria pela parede. O show começou. Sobre uma tela afixada na frente do palco, umas projeções em slide mostravam a história em quadrinhos Squeak the Mouse, do Massimo Mattioli. Por trás da tela, a banda provindenciava a trilha sonora usando instrumentos construídos por eles próprios, um contra-baixo tosco de toco de pau, pedais caseiros, bateria enjambrada de latas e caixotes. Umas silhuetas embalando com ruídos estranhos a barbárie de gatinhos e ratinhos fofos em orgias de sexo e assassinato. Reparei que a ninfetinha corou quando o gato fez uma suruba com três gatinhas. Quando o ratinho morto-vivo chacinou todos os outros bichinhos com uma motoserra ela já estava no papo (ainda que vazia, toda noite é noite). De repente faltou luz. Blecaute geral, donde fui obrigado a me dedicar às tarefas de administração do moquifo (achar umas velas por exemplo). Então o Otto foi mais rápido e arrastou a ninfeta prum canto escuro (qualquer um àquelas alturas) e aplicou o papinho. O sujeito é expert, vale lembrar. Levou e eu fiquei a ver, não sei se navios mas pelo menos a Arca de Noé, tamanha chuva. Nem todas a gente ganha, afinal.

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3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Fiquei sabendo que este livro sai este ano ainda, é sério??? Please!!!

3:30 PM  
Anonymous Anônimo said...

ha horas to querendo imprimir tudo pra ler, mas se o livro ja ta saindo vou esperar!

11:43 AM  
Blogger Leonardo Prado said...

eitcha, mas tá bom de ler eszsas paradas fumando um baseadinho do boooooooomm
abraço e publica tudo pá nóis lê de grátis....
tá mais e vem gigi rock aí esse mês!!!!! roooooooock

2:23 PM  

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