18.5.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
2ª Parte: Hard Times
Capítulo 7 - Pega ladrão!

Agora começa a parte deprê. O primeiro degrau que nos levou pra baixo numa longa descida – se pro inferno, só confirmarei depois da morte. Inevitável a alusão aos filmes e às histórias de terror: sempre houve um quê de casa mal-assombrada no velho casarão da Barros Cassal, principalmente durante o mau tempo, nas fases negras, nuvens carregadas pairando por cima que nem a mansão da Família Adams, trovões estalando sobre o telhado, raios quase caindo na nossa cabeça, sentença de morte de algum anjo exterminador – mas o anjo tinha má pontaria ou talvez estivesse só dando recados, nosso anjo da guarda quem sabe:

Vamos se ligar, galera! Desse jeito não vai dar pé.

De nossa parte, só indiferença quanto aos avisos celestes. Acaso tínhamos o corpo fechado? Porque aquilo era gozar com a cara do Grande Barbudo lá em cima, brincar com o perigo, surfar no repuxo das ondas do destino, desafiar as mais elementares leis da natureza e, sobretudo, as do bom senso (casa velha de madeira e estuque, parte elétrica periclitante, centenas de fumantes atirando baganas no chão e simplesmente nunca foi visto sequer um extintor de incêndio por lá, só pra citar um exemplo de desafio a leis elementares). Ignorávamos o sentido de expressões como Prevenção de Incêndio ou Segurança do Patrimônio, e uma vez nosso anjo, nos guardando por vias tortas ou tentando exterminar sem muita pontaria, pulou o portão da frente (muy facilmente, confesso, até eu que não tenho asas pulava quando esquecia a chave) e tentou atear fogo na casa, derramando gasolina por baixo da porta e queimando por fora. Foi num domingo. Mas só descobrimos na segunda, chegando no bar pro fechamento da semana. A porta da frente estava chamuscada e vários fósforos queimados haviam sido deixados no patamar da escada. Uma garrafa plástica com um restinho de gasolina também tinha sido esquecida, prova irrevogável do crime. Levando em consideração os sentimentos da vizinhança em relação à gente, julgamos se tratar de algum vizinho pró-ativo querendo assustar. Mal desconfiávamos ser obra do anjo. Anjo-barômetro da pressão altíssima que lentamente nos apertava, o tempo fechando e envolvendo a casa em trevas. Anjo-arauto das calamidades do porvir, assoprando sua trombeta e cantando nossa longa descida pro fundo do poço.

*

Não apenas anjos vinham nos fazer visita. Exus, cavalos, pombas-gira e outros encostos também apareciam por lá seguidamente. Tinha um par de exus em particular, dois bandidinhos aspirantes a Scarface, que se tornaram assíduos. Nossa política em relação à venda e ao consumo de drogas sempre foi muito clara: tudo liberado desde que mantidos o decorro e as aparências, nada de cheirar em cima das mesas por exemplo (uma vez peguei um cara cheirando numa mesa – eu devia estar fora mim, cheirado provavelmente – falei:

Banheiro existe pra quê, meu amigo.

E assoprei o pó do cara, jogando tudo pros ares. Ele ficou possesso, não se assopra a cocaína dos outros assim impunemente, levantou da cadeira e veio em minha direção aos socos. Por sorte era um baixinho. Estiquei o braço e segurei sua testa com a mão espalmada, os braços mais curtos que os meus giravam como as pás de um moinho em alta rotação, os socos passando a centímetros do meu queixo sem atingi-lo. Mantive-o afastado até que alguém chegasse e o tirasse pra fora – abaixo de pau). A verdade é que não éramos hipócritas nem ingênuos: pessoas vêm a bares para, dentre outros, cheirar cocaína, então se houvesse cocaína, pessoas viriam ao bar. Conquanto soubéssemos quem eram os traficantes e que eles não passassem dos limites do decorro, podiam trabalhar tranqüilos.

Mas os dois exuzinhos não eram assim. Malvados e briguentos, não tinham limites. O primeiro era um branco classe média baixa que não escondia o ar de filhinho da mamãe e nem sinalizava tanto perigo, encosto inofensivo, a menos que aliado ao outro, um mulato com nome de jogador de futebol e uns olhões arregalados de assassino de Lombroso, que parecia nunca ter tido mãe, o filho-sem-mãe. Com um jeito persuasivo, muita malícia e a medida exata de violência, foram tomando conta do ambiente e quando nos demos conta tinham mais autoridade que nós. Imbuídos de poderes autoproclamados, reinavam. E a gente agindo como se nada acontecesse, com uma complacência covarde pra evitar qualquer reação violenta, perdendo o controle a cada noite, domador subjugado que não esboça medo pra não ser atacado pelas feras.

Até o dia em que trancamos os bichos do lado de fora. Foi depois de um fim-de-semana em que superaram todos os limites do barbarismo. Primeiro, quase mataram um dos nossos clientes mais pacatos, um ruivo comprido e cabeludo, totalmente nerd, cujo único defeito era importunar as pessoas com piadinhas idiotas (talvez tivesse merecido a surra afinal). Foi um ato cruel e covarde, pegaram o cara desprevenido com uma voadora nas costas, mal ele caiu, já saíram chutando. Nem se estivesse prevenido teria chance. Depois a dupla foi pega vendendo cocaína na fila do banheiro. O problema não era exatamente a venda do produto, mas como ela era feita. Com um saco de supermercado cheio de pó entre as mãos, ofereciam a cocaína de colherinha pra qualquer um que aparecesse: uma por 10, duas por 20, quatro por 30 e assim por diante. Só faltava anunciar no grito. Decorro zero. Alguma atitude precisava ser tomada. Mandamos expulsá-los do bar, acho que não gostaram muito, saíram dando coices e cabeçadas.

No final de semana seguinte, alertamos na entrada (nessa época a gente já tinha porteiro) que eles estavam barrados. Quando chegaram e tiveram seu barato cortado, armaram a maior confusão, chutaram o portão, xingaram a mãe do porteiro, juraram-no de morte. Depois ficaram horas esperando na entrada até que um dos donos aparecesse. Adivinha quem foi? Primeiro fizeram carinha de santo, perguntando por que a gente não pode entrar?, depois quase imploraram por uma segunda chance e só então partiram pras ameaças:

Tem certeza que tu não vai deixar a gente entrar?

Tenho.

Vai te arrepender.

E o par de olhões de assassino de Lombroso brilhou numa chama vingativa enquanto Exuzinho apontava o dedo na minha cara, chutava o portão com violência, três, quatro vezes e ia embora. Mama’s Boy também deu uns chutes repetindo o gesto do dedo em riste mas não obteve o mesmo efeito dramático.

Não me arrependi. Apenas sei que pagamos o preço pra nos livrar dos exus. Custou caro: boa parte da nossa aparelhagem de som, incluindo um belo prato Gradiente vintage, e uns 200 cds, a maioria do Drégus. Cumprindo as ameaças de vingança, eles arrombaram o bar e fizeram todo esse estrago (além de quebrar algumas coisas, enxugar as bebidas e rapar os trocados do caixa). O golpe foi duro. Dureza também foi dizer pro Drégus que todos os cds que ele tinha nos emprestado tinham ido pro saco. Quem empresta sempre se fode, já dizia a minha irmã.

Mas alguém poderia perguntar:

Como cês tinham certeza que foram eles?

Por uma simples e objetiva razão: encontramos uma carteira de identidade jogada no pátio dos fundos, bem embaixo da janela pela qual os ladrões tinham entrado. O Marcos a recolheu do chão e vimos a foto de um mulato com uns olhões arregalados de assassino de Lombroso, ao lado, a assinatura preenchida com letra de semi-analfabeto, um nome de jogador de futebol. O cretino tinha esquecido a própria identidade na cena do crime. Isso é que eu chamo de amadorismo. Não, chamo de burrice mesmo.

Nós também fomos amadores (burros?). Ao invés de contratar um advogado ou até uns bandidos pra tentar recuperar nossas coisas, lá fomos nós, numas de detetive, tentando solucionar o caso. Demos queixa na delegacia do bairro, onde Exuzinho já era fichado. Descolamos o endereço de Mama’s Boy e na companhia de dois policiais (por uma gorjeta pra cerveja e pro churrasco) fizemos uma visita. A mãe atendeu e acobertou o filho, disse que o menino (sic) não estava. Também se recusou a abrir a porta a pedido dos policiais. Talvez devêssemos ter oferecido uma gorjeta maior, teriam sido mais enfáticos. No dia seguinte os meninos se apresentaram na delegacia. Mamãe veio a tiracolo com um advogado e a justificativa:

Eles foram assaltados no final de semana.

Justamente na noite do arrombamento, ora que coincidência, e tinham consigo uma ocorrência policial registrando o roubo da identidade encontrada em nosso pátio, lavrada numa delegacia do Bom Fim, pouco depois da nossa visita a Mama’s Boy. Depois de tanto amadorismo (burrice) estávamos lidando enfim com um profissional, nada como um bom e sujo advogado pra fazer um bom trabalho sujo. Pra dar fim ao caso, a esposa do Ricardo, que tinha uns contatos meio obscuros, sugeriu que a gente pagasse alguém pra cagar os dois a pau. Bem que mereciam, mas acabamos arregando, se sobrevivessem poderiam se voltar contra a gente muy malvadamente. Também desistimos de qualquer ação legal. Nada seria pior do que metê-los na cadeia. Primeiro porque virariam profissionais. Segundo pelo ódio vingativo que alimentariam pelos anos de reclusão: soltos, com pena reduzida por um bom comportamento friamente dissimulado, iriam direto aterrorizar nossas famílias com requintes de crueldade. Já vi esse filme.

Não digo que os exus sumiram da minha vida totalmente porque vira-e-mexe encontrava-os em algum boteco menos qualificado que eu costumava frequentar. Eu procurava ficar cool, agir como se não existissem, mas era impossível ignorar as ondas de hostilidade vibrando no ar. Eu de um lado, retesado como um gato em aflição, e eles do outro, rangendo dentes, grunhindo injúrias, espumando ameaças, olhões arregalados disparando torpedos de mau-olhado sobre mim, dá-me sal grosso!

Eventualmente os cretinos também aproveitavam as mudanças de porteiro pra entrar no bar. Era só ter algum novato na porta, alguém por fora da nossa lista negra, que eles faziam a aparição. Chegavam na hora mais movimentada e ficavam em algum canto escuro (eram muitos), curtindo a festa na penumbra e fazendo uma graninha de leve. Mas aí vinha algum amigo mais chegado, alguém dos Velhos Tempos, e:

Pó, vocês liberaram aqueles dois que meteram o bar aquela vez?

Como assim?

Acabei de pegar um pó deles ali no cantinho ao lado do palco.

Então eu chamava o novato, levava até o local e apontava o dedo:

Inaugura a lista negra. Números 1 e 2.

Acho que no fundo, bem no fundo, devem ter se arrependido do que fizeram. O preço que pagamos foi pequeno se comparado ao que deve ter custado pra eles deixar de freqüentar o Garagem. Ficaram de fora das melhores festas da década basicamente. Sem contar que não devem ter feito muita grana em cima do nosso equipamento e dos cds. Tudo convertido em alguns gramas de pó cheirados em mais uma noitada, entre tantas. O crime que não compensou.

Dentro do castelo a coroa voltou pra cabeça de quem realmente reinava.

Um reino falido. Pilhado por hordas de bárbaros, castigado pelo mau tempo, amaldiçoado pelos deuses. Haveria de haver força e determinação pra reerguê-lo, promover a alegria da plebe, dar-lhe razão de viver.

Começamos com um cd player e um mixer parcelados a perder de vista. Trouxe mais alguns cds de casa pra quebrar o galho, conseguimos outros emprestados e fomos repondo a discoteca pouco a pouco, garimpando em promoção. O Drégus fez uma lista dos discos que tinha perdido e avaliamos todos a um preço médio de dez dólares, cada, já que a maioria era de importados. Ele ficou com um crédito enorme na casa. Pouco tempo e muitas cervejas depois, saldamos nossa dívida.

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1 Comments:

Blogger renatodias said...

essa questao do decoro e um problema cultural. As pessoas confundem alternativo, underground com ser vileiro.

12:20 AM  

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