3.5.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 5 - Banda desenhada

Numa das paredes do bar tinha um desenho de um casal dançando e se beijando. A menina usava um vestidinho azul esvoaçante e o carinha, paletó, gravata e calça boca-de-sino. Eles tinham umas cabeças gigantes, desproporcionais em relação ao corpo, e de suas bocas escancaradas saíam enormes línguas vermelhas que se enroscavam num trançado vertical. Um beijo muito louco, como na música dos Mutantes. No topo da trança de línguas, onde a pontinha se bifurcava, dava pra ver, pequeninho, o Major Fatal com o seu capacete de expedicionário inglês do século XIX, uma valise numa das mãos e a outra sobre os olhos como quem procura ao longe.

O autor do desenho era um jovem e talentoso ilustrador, o Rodrigo Rosa. Além do Rodrigo, muitos outros ilustradores, chargistas e desenhistas freqüentavam o bar naqueles early days. Atraídos pelo nome Garagem Hermética – referência pros aficcionados em HQs – passaram a formar, ao lado dos músicos, groupies e estudantes, a base da pirâmide social garageira.

Criados em ambientes controlados como quartinhos a meia luz com paredes recobertas de pôsteres e desenhos, nas estantes coleções dos grandes monstros do cinema e da televisão, Frankenstein, Alien, Jason, Freddy Krueger, Choobaka, He-Man, o Gato Guerreiro, os quadrinistas são, na maioria das vezes, oriundos de famílias classe-média de mães superprotetoras ou pais desquitados. Essencialmente nerds, foram adolescentes marginalizados nas aulas de educação física, que adoravam ídolos improváveis pra meninos de doze anos, Bela Lugosi, Boris Karlof, Charles Manson, Aleister Crowley, Van Gogh. Com a chegada à vida semi-adulta (um quadrinista nunca é inteiramente adulto), os quadrinistas encontram seus semelhantes em mostras de filmes tipo cult, sebos e bares malucos com nome de história em quadrinhos, por exemplo. És o que consomes, já dizia o filósofo.

Uma vez no Garagem (e bastante à vontade, diga-se) os quadrinistas passaram a promover uma série de eventos e, principalmente, a interferir na paisagem interior da casa, antes uma vastidão de paredes brancas com magros majores fatais pincelados aqui e ali.

A primeira interferência aconteceu durante uma festa-happening. Foi num domingo em clima de matinê, ainda no primeiro ano do bar. Artistas faziam suas interferências nas paredes enquanto bandas tocavam no palco e a gente vendia cerveja, tudo-ao-mesmo-tempo-agora, pessoas entrando e circulando e bebendo ceva e assistindo aos shows e de repente surrupiando um pincel ou spray e fazendo suas próprias interferências nas paredes e saindo com alguns sprays pra rua e interferindo nos prédios e carros e calçadas, de modo que pegou muito mal (péssimo, diria) com a vizinhança. No final da festa, dissipada a névoa da tinta spray que tinha deixado chapada a nossa tripulação, pudemos ver o resultado final da pintura, um lixão visual em que todo mundo – desenhistas, clientes, músicos, garçonetes, bêbados, passantes – tinha interferido. Em meio aos rabiscos da massa, desenhos obscenos, símbolos do anarquismo, folhas de maconha, declarações de amor, caralhos voadores e outras pérolas do imaginário pichador coletivo, distinguiam-se, numa ou noutra parede, os trabalhos dos artistas.

Foi nesse happening de música e tinta que o Rodrigo Rosa desenhou o casal do beijo muito louco. O Fábio Zimbres também pintou no evento e fez vários cachorros surrealistas que pareciam uns cavaletes com focinhos. O Silvinho Ayala desenhou um guri cagando num capacete de policial. O Alex Ramires fez um porco capitalista com o Palácio do Planalto ao fundo. O Carlos Ferreira desenhou um menino gigante com cara de psicopata. O Guillermo pintou, num compensado que vedava uma das janelas da pista, uma máscara negra sadô-masô com a frase “Kinky sex at 3:00 AM” rabiscada embaixo. O Drégus, que também era da turma dos quadrinistas, atuando principalmente como roteirista de umas histórias estilo noir, fez alguma coisa também. Eu próprio cometi um desenho numa parede pequena.

Mesmo com algumas obras-primas, como o beijo muito louco do Rodrigo e o kinky sex at 3:00 AM do Guillermo, num todo, a coisa tinha ficado bem mais ou menos. Essa do povo pegar os sprays e cair matando na pichação não estava nos nossos planos, já nos bastava a poluição visual do nosso banheiro adolescente. Um tempo depois, quando rolou a primeira reforma, aproveitamos pra repintar tudo. A grande parede da pista de dança, infestada por pichações anônimas e sem qualquer atributo estético, virou suporte de grandes trabalhos: primeiro um desenho lindo e burroughsiano da dupla Jack e Pax: um bar em profundidade ultra-realista freqüentado por insetos, um louva-deus gigante sorvendo drinks com canudinho no balcão, dois moscões batendo um papinho numa mesa, a Formiga Atômica voando num canto; depois o Haesbaert, um pintor da maior categoria, fez uma paisagem espacial, bem minimalista: dois planetas brancos e uma estrela cadente que parecia realmente cair com o piscar da luz estroboscópica; por último, o Adriano Rojas pintou um imenso Sonho de Valsa com um casal punk pogueando ao invés da tradicional dupla em trajes de gala que baila provavelmente o Danúbio Azul. Me acompanha nesta contradança?

Uma das facções de quadrinistas que mais agitava festas no Garagem era a turma do Drégus, que incluía as feras Jack/Pax, Rodrigo, o Rosa, e o Carlos Ferreira. Eles editavam, entre outros, o zine Peek-A-Boo e a revista Made in Brasil, e promoviam uns eventos malucos. Lembro de uma exposição com uns desenhos de inspiração jazzística, feitos pelo Carlos, e uma obra de minha própria autoria. O vaso sanitário tinha ido pras cucuias e tivemos que fazer uma reforminha, aproveitei pra passar uma tinta nas paredes porque a poluição visual de banheiro adolescente já tava enchendo o saco até dos adolescentes. Comprei uma tinta verde na promoção e mãos à obra. A inauguração do novo banheiro coincidiu com a exposição, e um dos guris afixou numa das paredes uma plaquinha semelhante a que identificava os desenhos do Carlos como “Jazz, nanquim sobre papelão”. Dizia assim: “Banheiro verde, tinta acrílica sobre banheiro”, o meu nome escrito embaixo.

No final de 93, Drégus e seus asseclas armaram um festival de bandas, o Loolapaloozinha, versão miniaturizada e com sotaque tri porto-alegrense do mega-festival promovido lá na Califórnia pelo Perry Farrel . Uma incipiente MTV Brasil fez uma matéria sobre o evento e assim nossa existência começou a ser notada na grande metrópole São Paulo S/A – os músicos da ceninha under fazendo cara de blasé durante a entrevista pra disfarçar o pânico provinciano diante da câmera da televisão estrangeira.
O mundo dos quadrinhos trouxe também pro Garagem essa figura emblemática da noite porto-alegrense, o Otto Guerra, a quem deveria ser concedida uma medalha por serviços prestados à boemia e a fubangagem nacionais. Dino do cinema de animação brasileiro, gentil protetor de jovens solteiras e bon vivant avant la letre (?), o Otto é o sujeito que sabe levar uma vida de vícios, pecados e outras delícias terrenas, cagando e andando pra todo o resto: má fama, mau hálito, impotência, juros bancários, calvície, caspa e outras piorréias. Trata-se, caros, de um especialista. O Otto pintou no Garagem acompanhado de sua gangue, feras envolvidas em publicações importantes como o fanzine Kamikase e as revistas Animal e Dumdum: Alemão Guazelli, Pedro Alice, Zimbres, Adão Iturrusgarai (outro catedrático da chinelagem) e o mascote Allan Sieber.

Além de produzir as revistas e os zines, os quadrinistas também queriam entrar pro maravilhoso mundo do roquenrol. E quem iria impedi-los?

O Carlos Ferreira montou a banda Os Carlos e o Drégus, a Cowabunga.

O Allan (nessa época um metaleiro com look Jesus Cristo gótico) armou uma banda pra tocar no lançamento do zine Glória, Glória, Aleluia!. A decoração desse show consistia numa galinha preta pendurada no teto, balançando entre o guitarrista e o baixista. O som era alguma merda alta e barulhenta. (Nessa época, não sei se por dureza, pão-durice ou retardamento mental, a gente mesmo fazia a limpeza do bar. Na noite seguinte à da festa do Glória, Glória, cheguei pra trabalhar e vi um amontoado de copos, latas e bitucas que o Marcos tinha deixado pra eu juntar. Filha-da-puta, fez o serviço incompleto. Sobrou pra mim, pensei, e peguei a vassoura e a pá. De repente descubro o galinhão preto e duro, despistado dentro da montanha de sujeira. Triste fim. Até mesmo pruma galinha. Melhor seria terminar bêbada em oferenda, deitada numa bandeja prateada de papelão.)

O Adão Iturrusgarai e o FZ (não confundir com Frank Zappa) formaram a Dumdum Boys, inspirada em Pixies e Iggy Pop. Foi a festa de lançamento do terceiro (e último) número da polêmica revista Dumdum, evento superbadalado. Mais uma equipe da MTV apareceu. Entrevistando umas pessoas no corredor, o repórter se depara com o Otto e pergunta que cê acha desse bar?

Isso aqui é um underground infantil. Diz o Otto.

Quando eu vi a matéria na televisão fiquei puto da cara.

Sacana, nos tirando pra guri.

Passei a implicar com o Otto e sempre me fazia de surdo quando alguém pedia pra liberar a entrada dele. Mais tarde ele foi morar no Rio. De volta à cidade, depois de um longo tempo, nos encontramos num desses bares da vida, como diria o Milton.

Quanto tempo?

Muito.

Como foi?

Médio.

Prefere aqui?

Yeah.

Sentiu saudade?

Até de ti.

Não sabia se ficava lisonjeado ou ofendido. Aí ele começou um papo sobre a gente nunca ter ido muito com a cara um do outro e porque eu nunca liberava a entrada dele no Garagem e porque só o Ricardo deixava ele beber fiado (como assim, beber fiado?).

Demorei alguns instantes antes de responder:

Porque tu disse uma vez que a gente era underground infantil.

E o Otto sorriu em silêncio da minha cara de velha criança estúpida ao finalmente me dar conta que era mesmo.

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4 Comments:

Blogger mutantix said...

impressão minha ou tu reescreveu o capítulo da semana passada, com mais detalhes e tal?

8:07 PM  
Blogger Maurício Santos said...

cara, esse negócio tá muito bom; estou até com saudades dos 90, uma década quase perdida, não fosse o garagem.

5:10 PM  
Blogger Karoline Denardin said...

Matarei a saudade das histórias por aqui ;)
Saudaaades do povo!

11:30 PM  
Anonymous Anônimo said...

brilhante conclusão!

12:05 AM  

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