28.3.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 2 - A casa assassinada
Parte II

Já estávamos desesperados. Mais de três meses procurando casa pra alugar e só porta na cara. Enquanto isso, o dinheiro da rescisão sendo gasto aos poucos. O Marcos tinha sido o primeiro a largar o emprego e conseqüentemente a grana dele ia acabando antes. A situação do Ricardo ainda era mais complicada. A firma de óleo de soja estava sacaneando com ele e não queria fazer acordo nenhum. Se ele quisesse dar o fora que pedisse a demissão, o que reduziria sua grana em quase 50%.

O desespero era tanto que chegamos a cogitar planos absurdos pra colocar nosso projeto em prática. Um deles foi o de abrir o bar nos fundos de um outro bar. O Marcos tinha um cunhado que recém abrira um barzinho. Se chamava Violeta (o barzinho, o cunhado eu não me lembro) e ficava lá pelos lados da 24 de Outubro, mesas e cadeiras de madeira e palhinha, paredes coloridas, música ambiente tipo muzak e uns vasinhos de violeta espalhados por todos os cantos, coisinha assim bem meiga. Era uma casa grande de um piso com garagem pra três carros no fundo, onde poderíamos montar o nosso bar. O problema era que, além da excessiva meiguice (o nome Garagem Hermética viria logo depois porque, como bons fanáticos por Iggy Pop, eu e o Ricardo pensávamos em chamar o nosso inferninho de Funhouse, título do legendário segundo LP dos Stooges, bastante apropriado ao conceito que tínhamos de um bar, mas um tanto destoante do meigo Violeta.
Violeta/Funhouse, que tal? Perguntava o Ricardo.

Não sei, alguma coisa me soa estranha...),a localização era péssima e as condições de trabalho propostas pelo cunhado do Marcos, insustentáveis, algo como ter que dar 20% do nosso lucro, ainda pagar todas as despesas e ter dias e horário de funcionamento regulados. Podíamos ser jovens, mas não éramos burros. Nosso negócio não vingou e o próprio Violeta durou pouco. Poucos meses após abrirmos o Garagem, o cunhado do Marcos tinha um bar falido, pilhas de contas a pagar e um monte de vasinhos de violeta em casa.

Graças também à situação desesperadora, já estávamos tentando alugar qualquer casa que encontrássemos à disposição. Alguns desses imóveis não apresentavam as mínimas condições, mas, por pura falta de opção, somada à inexperiência e à ânsia de abrir logo o bar, a gente achava que poderiam servir de todo o jeito. Fazíamos planos e projetos, desenhando mentalmente o palco, o balcão e a pista de dança conforme a casa que estivesse pra alugar. Casas imperfeitas, mas prováveis, diante da nossa miopia ansiosa. Por sorte, as imobiliárias que suspeitavam de nossas intenções e aparência nos impediam de alugá-las. Hoje, depois de todo o know-how (ou qualquer outra expressão que signifique agüentar por oito longos anos a encheção de saco que é ter um bar e, mais importante, não ir à falência nem ser preso, processado ou exposto à humilhação pública e, ainda!, faturar alguma grana depois de tudo isso vendendo o bar pra um incauto – sim, a expressão correta é mesmo know-how), percebo que aquelas casas enquanto bares eram mesmo imperfeitas, improváveis, impensáveis e impossíveis: ou pequenas demais ou caindo de velhas ou – e o principal em se tratando de bares – em vizinhanças-família. Vizinhanças-família são o Inimigo Número 1 dos bares. Nelas, não há bar que resista. Pensando bem, a agente imobiliária gorda e loira em cuja mesa eu havia escarrado fizera um favor em não nos alugar o imóvel. Não duraríamos seis meses naquela casa da Ramiro quase Independência, casinha pequena, velha e colada a um prédio superfamília.

*

Foi o Marcos quem descobriu o casarão da Barros Cassal.

Encontrei a casa. Disse enquanto comíamos um à la minuta no Centro (alguns hábitos a gente custa a abandonar). Terminado o almoço passamos na imobiliária, pegamos a chave e fomos olhar a casa. Depois de tantas decepções eu já andava incrédulo.

Abrimos o antigo portão de ferro trabalhado e subimos, o Marcos e eu, os degraus da escada lateral que levava à porta. Lá dentro, janelas cerradas, eletricidade cortada, tudo era muito escuro, um breu, mas chamou a atenção a altura do pé direito. Naquele negrume que cheirava a mofo e poeira, mas no qual eu distinguia contornos de paredes, portas e corredor, o teto parecia um céu distante e sem estrelas olhando do alto os invasores do antigo sobrado. O Marcos, que já conhecia a casa, abriu os janelões e deixou a luz entrar. Caminhamos pelos aposentos fazendo o habitual desenho mental do bar e percebi que tínhamos de fato encontrado o lugar certo. Corri pela casa dizendo u-hu achamos achamos e, de repente, meu pé afundou no assoalho podre.

Mas vamos ter que trocar o piso, tá todo comido de cupim. Advertiu o Marcos, já fazendo os cálculos mentais de quanto gastaríamos na reforma.

Vai dar. Completou.

A casa era podre de velha. Em compensação, o aluguel, uma barbada, e o proprietário, o enigmático Dr. Kraemer, estava disposto a qualquer negócio para faturar mais algum naquele sobrado do início do século passado, caindo aos pedaços, que ele já alugava pra dois locatários. Uma lavanderia ocupava a parte térrea principal e um barbeiro, umas das salas da frente (o tradicional Salão Gomes, fazendo barba, cabelo e bigode de respeitosos cidadãos portalegrenses desde mil oitocentos e antigamente. Pobre Gomes!). O piso superior já tinha sido, dentre outras atividades, puteiro e pensão de moças, não necessariamente nessa ordem, ferragem e casa de massagem, não necessariamente nessa ordem. Iniciava por um hall que levava a uma saleta com janela, à esquerda, e, mais adiante, a um grande salão com sacada pra rua e corredor na outra extremidade. Pelo corredor chegava-se a duas peças interligadas por uma porta dupla, à cozinha e a um terceiro aposento, mais amplo, com três grandes janelas e um banheiro. Pra chegar à última peça, uma salinha com janelas pequenas, era preciso atravessar este banheiro. Para tanto, uma parede tinha sido construída dentro dele, dividindo-o em toda a sua extensão e formando um novo corredor, como uma miniatura do primeiro. Esse corredor em miniatura, alienígena à arquitetura original da casa, levava, à direita, à entrada do banheiro e, ao fundo, à salinha, de onde uma porta se abria ao pátio com duas árvores (uma delas um limoeiro) brotadas não sei se da terra cinzenta ou do próprio concreto daquele jardim underground suspenso. Uma escadinha de cimento colada ao paredão que limitava o terreno e corria em paralelo à casa por todo seu lado direito dava no pátio do primeiro piso e, a seguir, no portão de entrada, fechando o ciclo labiríntico do casarão.

Os vizinhos diziam que a casa era amaldiçoada. Tirando o centenário Gomes – ele mesmo quase um fantasma – nenhum negócio dava certo naquele ponto. Durante a existência do bar, alguns clientes com inclinações esotéricas chegaram a dizer que sentiam a presença de espíritos por ali. Espíritos atraídos por antigos vícios de álcool e fumo, povoando a casa junto aos vivos. Eu mesmo, que dificilmente poderia ser classificado de religioso ou místico, sempre que ficava sozinho na casa ouvia sussurros e passos misteriosos que me faziam crer que havia mais alguém ali. Numa ocasião tive também uma espécie de visão fantasmagórica. Durante uma das muitas e tediosas esperas pela entrega da bebida, atividade – se é que podemos chamar algo tão maçante de atividade – que me marcaria como das coisas mais chatas de toda a história do Garagem, uma imagem, algo sobrenatural, algo maconheira, misto de espiritismo e do filme Rebecca, a Mulher Inesquecível, me viria, pálida e perturbadora, envolta em brumas como num filme de terror: depois de ouvir os usuais passos e sussurros, caminhava no corredor em direção à peça das três janelas, quando tive a visão de uma bela mulher. Usava um longo vestido branco (igual àquele que a Joan Fontaine usa na cena do baile, causando um ataque no marido, o Lawrence Olivier) e estava de pé, ao lado de uma grande cama. Cortinas brancas esvoaçantes pendiam das três janelas. Como num sonho em que sabemos as coisas a priori, eu sabia que ela tinha sido a dona da casa e que aquele era o seu quarto. A visão durou apenas um segundo, a duração de um passo no corredor. Quando entrei na peça, só vi o de sempre: mesas e cadeiras, engradados de cerveja, copos plásticos amassados, baganas de cigarro e a sujeira da noite anterior. Rebecca já tinha desaparecido.

Mas naquele primeiro dia na casa, na primavera de 92, com o pé encravado na madeira podre do assoalho, os fantasmas não me preocupavam. As únicas questões que ocupavam meus pensamentos eram estritamente materiais e muito mais me afligiam. A casa era velha, necessitaria de muitas reformas, algumas imediatas. Mas a casa era grande, maldita, misteriosa, cheia de portas e possibilidades, quase um labirinto. Próxima a uma avenida movimentada, numa via de acesso à rodoviária, ao rio, às putas, num bairro nada família: nas ruas de baixo, cabarés e puteiros dividiam o espaço na ronda noturna com os butecos de pinga dos sobrados e prédios antigos; na esquina da frente, uma tradicional choperia servia filés e bebida gelada a notívagos mais abastados e, na avenida acima, uma lancheria fuleira vendia pastel, xis e cerveja barata.

Tirando os gastos imprevistos com as reformas, o resto era perfeito. Agora dependíamos apenas do interesse do proprietário. Pelo que o Marcos já tinha averiguado estava tudo certo, mas eu tinha meus receios, quase trauma, quando havia imobiliárias na jogada. No dia em que fomos entregar os documentos pra fechar o negócio, me preparei desde a rua, acumulando saliva e catarro na boca, caso ouvíssemos um não do agente imobiliário. Estava preparado pra cusparada terrorista quando o cara diz:

Tudo certo, amanhã vocês podem pegar a chave.

Tive que engolir tudo. Faceiro.

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7 Comments:

Blogger mutantix said...

bah, leo, da pra publicar TODOS os dias?

5:55 PM  
Blogger Unknown said...

Era o chão mais podre do mundo mesmo, tão podre que em noite cheia ficava até limpo com a quantidade de cervejas e suor derramado. Sujo, feio mas guentou cada pé pesado e cuturno fedido.

4:10 PM  
Blogger Unknown said...

Bahhhhhhh, muito dancei nesse chão podre, eu e a minha amiga Lê pulávamos e gritávamos: VAMOS QUEBRAR O GARAGEM? E pulávamos feito loucas, querendo despencar buteco a baixo! hahaha
Santa cerveja!!!!!! hahahaha
Beijo ai Leozinho... INA

7:24 PM  
Blogger flavia giroflai said...

...chão podre...
...mas não esqueço quando eu e a virgínia estavamos pintando um cenário lá no garagem e tu quase nos matou porque derramamos tinta no lindo piso de madeira de lei...
lembras?
estressinhos garagísticos!
bjux

10:09 PM  
Blogger flavia giroflai said...

espero as próximas emoções!!!!!

10:10 PM  
Blogger Unknown said...

Cenas dos próximos capítulos, urgenteemmmm!Com essa prosa rápida tô deglutindo (ou regurgitando) cada momento vivido naquele bar, com cheiro, textura e sem verniz!
Tem que publicar. Como literatura, memória, história cultural, simples porraloquice, tanto faz!!

12:53 AM  
Blogger Águas said...

e pensar que o 2013 é o futuro

2:59 AM  

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