1.3.07

Diálogo

(Crônica do Talk Radio de 02/03)

– Sinceramente eu acredito que a função da arte é enganar a morte. Mas aí será que música pop pode ser considerada arte? Poucas coisas me tocam tanto quanto a música pop. Pensa bem, uns versinhos muitas vezes bobos, cantados muitas vezes em inglês (eu li em algum lugar que é mais fácil compor música pop em inglês porque a maioria das palavras é oxítona, então isso dá uma possibilidade de fazer rimas sem rimas, entende? mas então). Você tá ali ouvindo a música e, de repente, num estalo, esses versos fazem todo sentido, parecem dizer verdades tão óbvias que ninguém jamais pensou em dizê-las e quando elas são ditas desse jeito, com uma melodia perfeita como todas as boas melodias são, é um golpe direto em algum lugar entre o cérebro e o coração. Música pop pode ser arte sim. Pensa no Cole Porter. É um bom exemplo. Com aquelas canções de amor incríveis ele se tornou imortal. Esse lance mágico que faz com que eu, um carinha que vive numa cidade provinciana ao sul da América do Sul seja profundamente tocado por algo que o cara fez há sei lá, setenta e tantos anos. E isso me toca profundamente. E é um lance que não é só com a música, mas também com a literatura, o cinema. O lance da experiência artística, aquela vertigem que faz com que tudo gire numa velocidade estática enquanto a gente fica fixo num ponto geométrico. Curtir a obra plenamente. Sacar tudo. Annie Hall, do Woody Allen, o Diana Caçadora, da Márcia Denser, o Hunky Dory, do Bowie. Filmes, livros e discos que são talvez as melhores coisas que já aconteceram na minha vida. E enquanto não houver um cataclisma qualquer que leve essas obras ao esquecimento elas vão continuar tocando as pessoas, provocando a vertigem. E o Woody Allen, a Márcia Denser, o Bowie, o Cole Porter vão ser revividos toda vez que isso acontecer, toda vez que alguém sacar tudo naquele instante. Eles conseguiram, conseguiram enganar a velha caveira carregando a foice.

– Putz, cara, tu acabou de matar o Woody Allen, a Márica Denser e o Bowie tentando argumentar que eles são imortais! Pelas minhas contas isso dá um homício triplo.

Soltei junto com a gargalhada um jato da cerveja que eu tinha bebido logo depois da pausa no meu discurso artístico-existencial-filosoficamente-furado. Uma parte da cerveja espirrou na cara do meu interlocutor e a outra escorreu pelo meu peito enquanto eu admitia que ele tinha razão mais uma vez. O amigo perfeito, embora muitas vezes um pé no saco com seu sarcasmo prêt-à-porter. Me chamou de filha-da-puta e secou o rosto na manga da jaqueta cheia de bottons de bandas do momento. Botton com o mesmo, cu em inglês. Porque button é muito pretensioso.

– Leonardo, tu é mesmo muito superficial – me disse ele – tendo epifania artística com disco do David Bowie? Putamerda vai ler filosofia, meu filho, Hegel, Kant. Ouvir Bach, Mozart, Maller! Ou um pouco de literatura de verdade: Maupassant, Flaubert, Proust, os russos fodões, o vellho Machadão. Isso aí tu não leu, aposto. Tu só tem literatura beat e novela policial na estante que eu sei. E quem sabe tu deixa de aplaudir esses filmecos do neurótico do Woody Allen e vai direto na fonte: Bergman, tu já viu algum filme do Bergman, por acaso?

Era mesmo muito engraçado ver aquela figura magra, cabelos despenteados, óculos de aro grosso, botton dos Arctic Monkeys pregado na jaqueta, pontificar sobre a Grande Arte. Principalmente porque o cretino se tratava de um notório apreciador de filmes de terror e pornografia barata. Dificilmente teria lido qualquer um dos autores que tinha acabado de citar.

Chamei o garçom e pedi mais uma. A noite ia ser curta pra tanto assunto.

Marcadores: