21.3.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 2 - A casa assassinada

Parte I

A família não recebeu muito bem a notícia. Mas como o pai morava longe e não lhe cabia o direito de opinar, família mesmo era só o vô e a mãe – que choramingava, reclamava, advertia, mas, no fim, influía pouco nas decisões:

Mas como tu vai largar o emprego no banco pra... pra... pra abrir um bar?

Emprego tá tão difícil hoje em dia.

O que o teu vô vai pensar?

Vendo que suas admoestações não levariam a lugar nenhum, ela achou melhor dizer pro vô que eu tinha sido demitido do banco. Minha mãe sempre foi uma mentirosa compulsiva e era uma merda porque ela passava todo o tempo na iminência de ser desmascarada. Quando aplicou a lorota no velho, ele ficou indignado e cogitou ligar pro seu Gonçalves, um gerente do banco que ele conhecia, pra saber porque tinham demitido o seu neto querido. Meu vô fazia um tipo Don Corleone, um careca temperamental, muito bem humorado num extremo e altamente severo no outro, de uma rigidez de caráter exemplar, mas muitas vezes cabeça-dura, reacionário e impiedoso e, quando contrariado, dado a rompantes de fúria em que esculhambava, pra usar uma expressão muito sua, quem quer que ousasse contestar suas determinações. Nunca aprovou a idéia do bar, sempre detestou o Ricardo, mas foi figura fundamental na história do Garagem: anos mais tarde, eu iria recorrer a ele prum empréstimo (nunca pago, forçoso lembrar) que seria empregado na primeira grande reforma feita na velha casa do número 386 da Barros Cassal e que nos salvaria da primeira das muitas crises que enfrentaríamos.

No banco, a recepção também não foi das mais positivas.

Não vai durar seis meses. Dizia o Bernoto, um colono pelego que chefiava o setor de cobrança, pra Ester, secretária do diretor regional, uma morena peituda que dava pra chefia inteira.

Desiste disso, meu filho, já vi tanta gente largar emprego pra abrir locadora, farmácia, padaria, restaurante. Sempre se arrependem. O seu Itamar, um negão manhoso e malandro, sub-diretor geral, que tinha as gavetas da escrivaninha cheias de revistinhas pornô e, nos intervalos e horas do almoço, comia as meninas da limpeza na salinha do ar condicionado que ficava no quarto andar, ao lado do almoxarifado.

Mas nada poderia me impedir. Fiz um acordo com o banco, que me demitiria sem justa causa, estando eu comprometido a não entrar na justiça trabalhista pelas inúmeras horas extras não remuneradas e série de outras irregularidades a que me submetera nos últimos três anos. Lembro do dia em que fui no sindicato assinar a rescisão do contrato, tive uma diarréia horrível. Seria cagaço ou uma imagem metafórica da minha posição em relação aos conselhos dos meus colegas de banco e ao banco propriamente dito? Eu cagava e andava pra aquela porra de instituição, mesmo assim iria cumprir a minha parte do acordo, afinal, por mais filhas-da-puta que fossem os diretores, chefes, sub-chefes, secretárias e todo o ambiente de trabalho em geral, eu era um cara de palavra.

A grana viria em três parcelas. Fundo de garantia, salário desemprego e não-sei-mais-o-quê. Daria pra aplicar no bar e ainda segurar a onda por um tempinho até que o negócio engrenasse. O mais importante no momento era achar uma casa pra dar início ao trabalho, mas justamente aí estava a maior das dificuldades: nenhuma imobiliária queria alugar uma casa pra gente. Em geral imobiliárias vêem com desconfiança locatários que almejam abrir bares noturnos em seus imóveis. Alguns anúncios já vinham com instruções precisas quanto a este tipo de locação. “Menos para saunas e bares noturnos”. O problema se agravava quando os locatários eram três jovens entre 18 e 24 anos de idade com aspecto de roqueiros. Intenções e aparência nada confiáveis segundo os preceitos do setor imobiliário. Era um saco. Muitas vezes, a negativa vinha de cara.

O imóvel já foi locado. Dizia a moça no guichê de informações.

Em outras, quando pensávamos que teríamos a casa pra nós – toda a papelada na mão, assinaturas dos fiadores, contrato social da empresa, documentos do locatário – a negativa vinha sorrateira, lá no finalzinho, no último minuto, faltando a última rubrica.

O proprietário não está mais interessado.

Numa dessas ocasiões não pude conter a fúria impulsiva-hormonal própria da idade, diante da cara de pau da mulher ao dizer que a casa na Ramiro quase Independência que a gente paquerava havia 15 dias e que finalmente iríamos alugar (eu, nervoso, com o cabelo emplastado de gel como nos dias do banco, bleiser de lã, segurando uma pasta cheia de cópias autenticadas, certidões, segundas vias, firmas reconhecidas e todas essas pequenas coisas que só fazem atordoar o espírito das pessoas sensíveis, suando frio, taquicardia, louco pra sair dali correndo e fumar um, mas pensando é agora, é agora, é agora...) não estava mais à disposição pois o proprietário tinha decidido alugá-la a um parente próximo, primo (!), creio. Minha única reação foi fungar como quem engole seco, mas, ao invés de engolir seco, cuspir molhado todo o catarro na mesa da tal da mulher, uma agente imobiliária gorda e loira, de idade indefinível pra mim (qualquer um acima dos trinta me parecia infinitamente velho). O frango veio acompanhado de um monte de palavrões, algo como gorda escrota vai dá cu sua vadia mal comida de merda, e ela nem teve tempo de reagir enquanto eu voava da sala pronto pra jogar tudo pro espaço e pensando em que merda eu tinha me metido mas lembrando da mãe e dos Bernotos e sub-Bernotos e gerentes e chefes e secretárias e até as meninas da limpeza:

Não vai dar certo.

Então tinha que dar. E eu segurei a onda e a papelada junto ao peito e fui correndo fumar um pensando tem que dar.

(continua)

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3 Comments:

Blogger mutantix said...

cara, tu tem que terminar esse livro!

3:55 PM  
Blogger Unknown said...

isso vai dar é um filme...

10:27 AM  
Blogger Fer said...

Putz Leozinho!!!
Muito bom. O Rick me mandou o link e é viciante. Tô louca pra ler o resto...

Beijo, Amado!

6:01 PM  

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