15.6.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 10 - Mafaldita

Um dos nossos maiores pesadelos era o tal do alvará, bicho malvado e agourento, pássaro preto assombrando a vida dos pobres donos de bar.

Alvarááá! Pega, mata e come!

Para o nosso tipo de empreendimento, precisávamos de um muito específico: um alvará de funcionamento pra “bar-restaurante 24 horas” com permissão pra música ao vivo. E nada mais.

Mas não pensem que era fácil. Já tinham sido quase mil dias de tramitação – tramitação, essa é a palavra – em escritórios e gabinetes dependendo da rubrica do Secretário interino (o Secretário mesmo nunca está disponível) conforme a demanda do processo arquivado sob o número 44473768-b, em anexo documentação obrigatória, incluso relatório da série de vistorias in loco agendadas aleatoriamente e sem aviso prévio, realizadas por auxiliares técnicos admitidos através de concurso público com remuneração mensal de 800 a 1.300 reais, fora hora-extra, insalubridade, adicional noturno e outras mutretas, e ainda parecer final passível de contestação (caso desfavorável) via processo administrativo registrado no protocolo central da prefeitura em dias úteis das 10 às 17 horas, sem fechar pro almoço, e ENTÃO diante da conformidade do número de registro e da documentação obrigatória, da comprovação da idoneidade moral e financeira do requerente, estando este em dia com todos seus deveres fiscais e no anseio de buscar com presteza a melhor solução para ambas as partes mas sempre prevalecendo os justos interesses desta municipalidade: mais um prazo de 15 dias era concedido pra que o bar permanecesse aberto enquanto o processo tramitava – tramitava, essa era a palavra. E assim se passaram três anos.

A falta do alvará, esse era na verdade o problema.

Lembro da primeira vez em que fui à Secretaria solicitá-lo. O homenzinho no guichê não quis aceitar o pedido:
Manda teu patrão vir aqui da próxima vez, não aceitamos pedidos de estafetas. Disse o filha-da-puta.

Precisou da cópia do contrato social da empresa e o meu documento de identidade pra que ele acreditasse que aquele gurizão com cara de office-boy (eu) era o patrão himself, myself no caso.

Essa primeira visita à Secretaria já deu o tom de todas as subseqüentes. Um martírio, como ir pra uma sessão de tortura, os soldados da burocracia entrincheirados na repartição prontos pra se atirar sobre nós, fios elétricos em nossas têmporas, agulhas enfiadas sob as unhas, alicate apertando a cabeça do pau. Um lance kafkiano, surrealista, que superava qualquer ficção: nada como o absurdo da realidade pra nos deixar perplexos. Urgia uma força sobrenatural pra combater o maquinário da lei e da tributação, gigante feito de arquivos de metal, escrivaninhas, impressoras, grampeadores, carimbos inapeláveis e máquinas de fax, Transformer com cabeça de monitor e coração de CPU brandindo de um lado a bandeira do partido e do outro a guia de arrecadação. A busca do alvará era uma cruzada insana e interminável, perseguição desse objeto mitológico, Santo Graal dos donos de bar. De quinze em quinze dias e durante três anos fizemos a via-crúcis submetendo-nos ao sadismo de funcionários que sempre apontavam incorreções, pequenos erros no preenchimento das segundas ou infinitas vias, a falta da cópia de um documento importantíssimo ou do pagamento da taxa do CREA, amargando por longas horas em filas tão estáticas quanto muros, ouvindo as desventuras de nossos companheiros de batalha, outros comerciantes desesperados que também sonhavam com ele, sublime alvará.

Nosso processo circulou por todos os setores possíveis da burocracia municipal até que enfim aterrissou naquele onde estaria o seu juiz supremo, o setor Ruído da Secretaria do Meio Ambiente. Lá, mediante a averiguação do nível de poluição sonora provocada pelo bar, seria decidido o nosso destino. A liberação do alvará dependia do visto do chefe deste setor, ou melhor, da chefa, mulher temida por todos os donos de bar da cidade, a implacável Mafalda, conhecida em certos círculos como Mafaldita, La Impiedosa.

Malfalda designou uma dupla de técnicos pra ir na casa de um dos (vários) vizinhos que tinham reclamado do barulho. Primeiro os técnicos mediram o ruído ambiente, numa noite em que o bar estava fechado. Depois fariam a mesma mediação numa noite em que a casa estivesse aberta: a música executada em volume máximo, o som de garrafas quebradas, gritos, gargalhadas, choro e muito provavelmente os brados retumbantes de Aêêê do Karl, um punk alemão com voz de barítono que vendia salmão defumado e sempre gritava Aêêê quando estava bêbado e via seus amigos (o que era um saco, porque ele conhecida praticamente todo mundo e estava sempre bêbado). Se o nível de ruído no dia da segunda medição ultrapassasse em cinco decibéis o da medição anterior, estávamos fodidos.

*

Passados os estertores de euforia após a saída do Marcos, Rick and I caímos na real: tínhamos nas mãos um bar falido numa casa caindo aos pedaços com um público fiel composto por um bando de pés-rapados. E sem alvará de funcionamento pra completar.

Só um milagre nos salvaria. Ou quem sabe um empréstimo. Então recorri ao meu avô, o bom & velho Seu Raul que não era santo mas tinha grana. Mesmo odiando o bar e o Ricardo, nos emprestou algum pra que a gente investisse no negócio.

E veio a grande reforma: trocamos todo o piso apodrecido, removemos o entulho do pátio (em três caçambas abarrotadas), reformamos a salinha dos fundos, mudamos o bar e a casinha de DJ de lugar pra ganhar mais espaço, demos uma geral na elétrica periclitante e promovemos uma repaginação geral nas paredes internas com novas intervenções e desenhos. Também pintamos a casa por fora, do cor de rosa mais feio que poderia existir – o que deve ter quase matado de desgosto o pobre Gomes, imaginem um tradicional e respeitável salão de barba, cabelo e bigode numa casa cor de rosa unha-de-puta. Mas a principal mudança aconteceu no banheiro, onde reparamos a infiltração que sempre deixava o piso constantemente com uns dois dedos de aguinha suja: retiramos a banheira-mictório nojenta, construímos uma parede dividindo-o em duas partes, compramos um outro vaso e o que era um banheiro sujo viraram dois! (nosso pedreiro era um gênio primitivo da engenharia e fazia milagres com um saco de cimento, alguns tijolos, madeira e pregos. Chegou a trabalhar em duas reformas conosco. Na segunda vez, durante uma pausa do trabalho comendo pão com margarida e tomando coca-cola, comentou que a esposa tinha contraído o HIV. Perguntamos se ele tinha feito o teste e se usava camisinha e ele respondeu que não.)

Mandamos instalar duas portas acústicas que tínhamos comprado do estúdio do Fabriano, um músico genial que estava prestes a abandonar o roquenrol. As portas foram colocadas, uma logo após o pequeno hall de entrada e a outra ao final do corredor. Serviriam para amenizar o barulho. A nossa última esperança de passar na medição da Secretaria. Também decidimos que não venderíamos bebida pro Karl durante o período.

*

Não sei quais eram as conjunções astrológicas que regiam nosso destino mas acho que elas deviam ser muito favoráveis. Sei que, no dia em que os técnicos foram realizar a segunda e fatal mediação (agendada aleatoriamente e sem aviso prévio), o Karl não apareceu e se apresentou no bar uma banda paulista tipo cult, uma mina e um carinha tocando um som muito introspectivo, suaves bases executadas num tecladinho de brinquedo, vozes femininas sussurradas, uma tímida guitarrinha desenhando leves texturas e o zum-zum de um televisor passando filmes antigos ao fundo. Abafado pelas portas acústicas fechadas, o nível de ruído naquela noite deve ter sido mais baixo que o da medição anterior.

Na semana seguinte ao show da banda cult paulistana, fomos à Secretaria pedir mais um prazo de 15 dias e recebemos a feliz notícia de que nosso alvará tinha saído. “Bar restaurante 24 horas com permissão pra música ao vivo”, exatamente como queríamos. Dizem que nesse mesmo dia, esperando a sua vez na sessão de tortura, o dono de um bar concorrente teve uma síncope na fila da repartição:

Como esses chinelões conseguem um alvará e eu não? Bradava o sujeito.

Eu e o Ricardo saímos dando pulinhos do prédio. Chegando no bar pra comemorar, fomos olhar na agenda pra saber qual tinha sido o show no dia da vistoria: a banda cult paulistana. Baita pé-quente. Durante o trago comemorativo de meio de tarde, pensamos em mandar flores pra Mafalda. Logo deixamos de lado a idéia. Ela poderia suspeitar que por trás da gentileza houvesse alguma sórdida ironia e mandar fazer de novo a medição. Uma banda cult paulistana não cai duas vezes no mesmo lugar.

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4 Comments:

Blogger renatodias said...

Isso é sensibilidade de quem fuma maconha. Mas na verdade o mercado é assim, burocrático. Muitos acham que vão se livrar montando o próprio negócio. Engano. Nei Lisboa já dizia: Não há saídas/ só delírios de outro Midas.

9:43 PM  
Blogger mutantix said...

raul é nome de gente boa, já dizia o meu pai (eu sou jr. de batismo...).

4:48 PM  
Blogger Leonardo Prado said...

maazzzzzzááááá´´a
gaaaalo
da horas os relatos, e que se fuck a mafalda!
abração

2:16 PM  
Blogger Unknown said...

tá muito bom isso...

5:50 PM  

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