8.6.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 9 - Rock fight

Dizem que três anos é a duração-limite de muitos tipos de relacionamentos: namoros, casamentos, parcerias sexuais e comerciais, sociedades anônimas, micro-empresas, bandas de rock. Como for, estávamos entrando no terceiro ano e as coisas não iam lá muito bem. A gente continuava com um único freezer. Ou seja: não vendia MUITO, logo lucrava pouco e nunca sobrava grana pros constantes investimentos que um negócio demanda, reformas urgentes quase diárias, ainda mais numa casa velha como aquela – as mais urgentes: 1) troca do piso podre e 2) das lâmpadas queimadas; 3) remoção do entulho; 4) reparo no banheiro constantemente alagado e 5) reforma geral na parte elétrica periclitante. Quem dirá pra ampliação da pista de dança e pra pintura nova. Até o nosso cardápio andava desfalcado. Não se sabe se por preguiça (nossa) ou indiferença (dos bêbados), gradativamente as comidinhas foram desaparecendo do menu. Sem muita grana em caixa pra manter um bom estoque de bebidas servíamos só o elementar, comprado com o lucro (leia-se: alguns trocados) da noite anterior: ceva, vodca orloff, natu, conhaque dreher, refrigerante (às vezes) e água (da torneira). Além do estado deplorável do imóvel e dos bolsos vazios, a gente não tinha alvará de funcionamento e a vizinhança nos odiava. O movimento não era de todo fraco, os shows legais davam bastante público e algumas festas também, mas a maioria dos eventos era meia boca e ainda tinha os fracassos, noites falhadíssimas que só faziam deprimir ainda mais nossos espíritos combalidos.

Foi nessas circunstâncias econômicas e psicológicas que o Marcos começou a ter idéias. Um dia nos contou que estava procurando uma casa pra alugar. Pensava em abrir um outro bar:

Essa casa aqui tá velha demais, precisa de muitas reformas. Temos que abrir um outro bar, num ponto melhor. Vamos tocando os dois negócios e se um falir agente tem o outro.

A idéia me parecia absurda. Se mal conseguíamos administrar um negócio. De qualquer forma ele estava determinado. Caso a gente não aceitasse a proposta, já tinha até descolado um outro sócio pra entrar com a grana (ele entraria com o know-how, o velho golpe). Na minha opinião o Murruga abandonava o barco quando ele mais precisava de um capitão, entrava no bote salva-vidas e ia remar em outras praias no momento exato em que é preciso ordenar a virada no timão pra que o navio não bata de frente no iceberg.

Marcos Murruga era o mais velho de nós e, sob este aspecto – o da antiguidade – o mais experiente. Dotado de uma personalidade dominadora, acabava por impor sua vontade na maioria das questões que envolviam a administração do bar. Metódico e exigente, passava criando regras de conduta, escalas de trabalho, divisões de tarefas, mandamentos morais e outras aporrinhações. Uma delas, por exemplo, eu julgava completamente inapropriada.

Como não bebia muito, o Marcos se achava em desvantagem em relação a mim e ao Ricardo, que padecíamos de uma sede crônica, então estabeleceu que os sócios deveriam pagar o que consumissem ao final de cada noite de trabalho. Ora, qual a graça de ser dono de um bar se você é obrigado a pagar a própria conta? Outro agravante era o mau humor constante, o que realmente dava no saco. Discordávamos em muitos pontos e passei a achá-lo, cada vez mais, um careta. Com o passar do tempo e o completo esgotamento da minha capacidade escrotal, nossa convivência tornou-se impossível. Muito amável e conciliador, o Ricardo vivia no centro das duas forças, concordando ora com um ora com outro, apaziguando os ânimos, botando panos quentes como diria a avó da minha amiga. Nesse clima e com um provável sócio que lhe financiasse outra empreitada, não era de se espantar que o Marcos quisesse pular fora o mais rápido.

*

Uma das regras do Marcos era aceita em consenso por nós: o responsável pela compra da bebida e pela limpeza do bar nunca trabalhava na noite anterior, sacanagem ter que dormir tarde e ainda ser obrigado a acordar cedo pra fazer compras e limpeza. Outras regras consensuais eram que: 1) a casa deveria ser examinada antes do bar ser fechado; 2) se não houvesse cerveja suficiente pra próxima noite, o dinheiro da compra deveria ficar no caixa e 3) o caixa ficaria sempre num esconderijo secreto, em cima do forro do banheiro.

Foi numa manhã de sábado. Eu era o responsável pela limpeza e pela compra da bebida. Recém tinha aberto o cadeado do portão pra entrar no bar quando se aproximou pela lateral o nosso vizinho Gomes, dono do salão homônimo e que provavelmente nos odiava.

Vocês deixaram um cara trancado aí dentro essa noite.

Como assim? (incrédulo)

Eu abri o salão de manhã cedo e escutei um barulho vindo aí de cima. Fui ver o que era e tinha esse cabeludo saindo de dentro do bar. Ele veio até o portão e disse que tinha ficado preso. Tava com cara de sono. Me perguntou se tinha alguma saída e eu falei que só pulando.

E daí? (ansioso)

Ele pulou.

O Gomes ria do episódio e eu me perguntava se o Marcos, o responsável pela noite anterior (ou, como tudo indicava, irresponsável), que já cometera a cagada fundamental de esquecer um bêbado trancado no bar, tinha escondido o dinheiro conforme o combinado ou também cagara espetacularmente. Duplamente.

A porta da velha casa tinha sido arrombada de dentro pra fora. Encontrei o caixa – uma velha caixa de ferramentas – jogado em cima do balcão só com umas moedas dentro. A cagada viera acompanhada de advérbios com certeza. Corri pro orelhão da esquina e liguei pro Ricardo.

Meia hora depois ele apareceu no bar. Tinha falado com o Marcos que tinha dito que eu era um ladrão mentiroso.

Plagiador talvez e, no máximo, dissimulado. Mas ladrão mentiroso era demais.

*

O gringo do armazém nos vendeu fiado umas caixas de cerveja e pudemos abrir o bar no sábado. O Marcos já tinha trabalhado na sexta e o nosso próximo encontro seria na reunião de segunda à tarde, pro balanço da semana. Passou a noite de sábado e o domingo inteiro e ele nem apareceu pra conversar sobre a cagada. Na segunda, uma segunda chuvosa de verão, o Ricardo me surpreendeu num telefonema pouco antes do meio-dia.
O Marcos ligou, quer nos encontrar. Tá aí perto da tua casa. Tô indo pra lá, o endereço é tal.

Er uma casa que ele queria alugar pra abrir seu novo bar. Larguei o fone no gancho. No bafo úmido e quente do apartamento vestia apenas uma bermuda e ainda lembro de olhar pros coturnos atirados no canto da sala e pensar foda-se é logo ali, calçar os chinelos, colocar uma camiseta, descer as escadas do prédio, caminhar na chuva por duas quadras, entrar no tal endereço, subir as escadas (encharcado) e ver o Marcos com uma cara de cu, segurando uma pasta de couro e um guarda-chuva.

Então vieram as acusações de ladrão mentiroso e cara tu tá louco! e ladrão mentiroso e cara tu não quer admitir que vacilou e depois só me lembro do Marcos me dando uma porrada com o guarda-chuva e eu dizendo algo idiota como tu me obrigou a brigar e de empurrá-lo contra uma janela e de uma vidraça se quebrando e mais porrada de guarda-chuva e de uma mordida na mão (tive que tomar anti-tetânica), de cair no chão rolando entre socos e pontapés e levantar e chutá-lo no abdômen e do corpo dele em posição fetal, a cara contorcida, os braços protegendo a barriga dos chutes, meus pés descalços e eu pensando:

Merda que eu não calcei os coturnos.

Ao mesmo tempo eu achava aquilo tão ridículo, não tinha vontade de machucá-lo realmente, esmagar sua cabeça, arrancar os olhos, triturar os ossos. A gente se engalfinhava como num sonho, como quando não se consegue impingir força nos socos. Tentativa patética de salvar a honra por ter apanhado na cara – isso se há salvação pra dois marmanjos se digladiando encharcados entre pastas de couro, chinelos e guarda-chuvas numa manhã chuvosa de segunda-feira.

O Ricardo – sempre apaziguador – surgiu não sei de onde e separou a briga me empurrando pra saída. Lembro ainda de pegar do chão o que sobrou do guarda-chuva e jogar no Marcos. De bermuda, com a camiseta rasgada e apenas um chinelo (o outro se perdera na luta), completamente molhado da chuva que não dava trégua, entrei num táxi com o Ricardo, que a partir de então comandou as ações enquanto eu apenas me deixei levar, ainda perplexo diante daquele absurdo. Eu? Envolvido numa luta corporal?? Com o Marcos??? Meu corpo doía, principalmente o pescoço (mais de tensão que das porradas do guarda-chuva). Na mão esquerda eu via, naquela parte carnuda embaixo do polegar, a marca vermelha de oito dentinhos. O dedão do pé (sem o chinelo) direito parecia quebrado. Não sabia dizer qual tinha sido o score do combate. Mesmo tendo deixado o inimigo no chão com cara contorcida (menos de dor que de humilhação), não me sentia um vencedor. Nem derrota, nem vitória. Só desclassificação, levando em conta tamanha falta de classe.

Na seqüência foi ir até o bar, trocar cadeados e fechaduras e esperar pelo litígio. Uma cláusula esquecida lá no finzinho do contrato garantia que, em caso de rompimento não-amigável da sociedade, haveria o prazo de 6 (seis) meses pra realização do inventário da empresa, mas como o Marcos não podia esperar 6 (seis) meses acabou fazendo um acordo. Vendeu a sua parte por uma ninharia parcelada em 3 (três) vezes.

O bar seria só meu e do Ricardo. Isso significava o fim das regrinhas aporrinhantes, a caretice, o mau humor. Significava bebida liberada. Antevíamos um futuro resplandecente: cumprir a nossa sina de Whisky a Go-Go. Sem mais as amarras do tirano Mr. Murruga. Depois de assinados os novos contratos, tudo registrado e juramentado em cartório, firmas reconhecidas: a comemoração. No próprio bar, é claro, onde a gente tinha cobertura total, como diria o Hunter Thompson.

Durante a comemoração aparece o Drégus. Justamente quando comemorávamos a primeira. Nada como compartilhar com o nosso Cliente Número 1 que o Marcos tinha pulado fora e agora era tudo com a gente, gente.

...

A mudez do Drégus acompanhada de uma cara de espanto em que eu e o Ricardo podíamos ler: fudeu, é a metáfora perfeita pra expressar todo o apoio que recebemos de amigos e clientes nesse período. Realmente a gente andava em baixa naqueles dias.

Em compensação, o Marcos, não obstante a separação traumática e a mixaria que levou por três anos de trabalho, se revirou muito bem e deu a volta por cima. Montou em Porto Alegre dois bares que foram muito legais enquanto duraram, o Megazine e o Circus - nas versões Cirquinhus e Circãos. Este último, uma mega casa noturna com capacidade pra (sério) milhares de pessoas para onde o Drégus, nosso EX-Cliente Número 1, migrou como DJ, maldito traidor!

Mr. Murruga deve ter ganhado muito dinheiro a julgar por todos os clientes que deixaram de freqüentar o Garagem pra macaquear no Circus e depois voltar com o rabinho entre as pernas quando ele decidiu desmontar o picadeiro e viver em Curitiba. Levou consigo o tal do know-how e hoje é dono de três casas noturnas na cidade das paradas de ônibus mais famosas do Brasil.

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4 Comments:

Blogger Leonardo Prado said...

CLASSE.
UM BAITA COMBATE
COMBAT ROCK

4:53 PM  
Anonymous Anônimo said...

o circus era uma merda...o dregus aquele epoca botava um som muito bizarro...

1:49 PM  
Blogger renatodias said...

No Circus foi legal o show da Comunidade Nin Jitsu com o telão do filme Queimando Tudo ao fundo, mas nada demais. A atmosfera do Garagem era bem melhor. O Megazine tinha uma coisa lúdica que o Garagem não tinha. Sinceramente acho que sofri menos que vocês, pois não queria ter nada, não queria ser nada, pouco me importava dinheiro do caixa, sociedade... Apenas existir, beber, ouvir o excelente som do Garagem e observar as minas estava muito bom...

9:35 PM  
Anonymous Anônimo said...

ah, não me lembro de deixar de ir no garagem pra ir no Circus ou no Megazine. Era tudo uma coisa só, um pra ir mais cedo, outro pra ir no meio e acabar sempre no garagem, que sempre foi o epicentro de tudo, mesmo. Até no tempo do Banana, banana’s (alguém LEMBRA desse bar, afinal?)
Mas o garagem também durou tempo suficiente pra que eu várias vezes deixasse de ir por longas temporadas jurando nao mais voltar. Sempre voltando, é claro.

6:01 AM  

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