22.6.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 11 - Caixa acústica

Nessa parte da história entra o Bode.

Além de cocainômano pertinaz, o Bode era guitarrista e tinha um estúdio de ensaios e gravações. Por motivos desconhecidos mas facilmente imagináveis, o Bode foi despejado da casa onde ficava o estúdio. Sem local pra tocar suas atividades, só lhe restavam duas opções: ou reabria urgentemente o estúdio numa outra casa ou cheirava todo o equipamento de uma vez.

Foi aí que entramos na história.

Propusemos ao Bode que ele montasse o estúdio na salinha dos fundos, agora totalmente reformada. A gente pensava nisso fazia tempo: como levantar algum troco com a casa durante o dia. Eu sempre achava bufet a quilo meio despropositado, então essa pareceu a melhor solução, simples e barata: o Bode entrava com o equipamento e a gente com a casa. A grana e o trabalho (que consistia basicamente em esperar enquanto as bandas ensaiavam) seriam divididos.

Compramos pedaços de espuma, colchões velhos e chapas de compensado e lacramos as janelas da salinha. Revestimos as paredes internas com caixas de ovos que arrecadamos em supermercados e armazéns (relembrei bons momentos da adolescência dando umas cheiradas na lata de cola durante o trabalho). O Bode trouxe o equipamento e pronto: o estúdio estava pronto. No ensaio da primeira banda me dei conta de um problema: tanto o forro quanto o piso que a gente tinha colocado na salinha dos fundos eram feitos com umas madeirinhas das mais vagabundas, duas camadas finas de tábuas compradas em saldo de estoque na madeireira. De modo que nada adiantou nossa vedação: o estúdio era uma caixa acústica reverberando música mal tocada por todo o bairro.

O estúdio do Garagem era feio, fedorento e com equipamentos meia-boca. O trabalho era um pé-no-saco. Duas vezes por semana eu era obrigado a passar a tarde no bar, ouvindo a música de bandas que eu não queria ouvir, esperando até o final do ensaio pra pegar a grana - isso quando não penduravam, o que dava no saco mais ainda. O remédio era fechar a porta acústica que ficava no corredor e ouvir (bem alto) boa música na sala da frente. Eu tentava aproveitar aquelas tardes perdidas pra fazer pequenos reparos na casa: cobrir com cimento os buracos que se abriam nas velhas paredes de estuque, trocar as lâmpadas queimadas, limpar a calha entupida que em noites chuvosas provocava uma pequena cachoeira ao lado da pista de dança. Também me dedicava à leitura dos clássicos da literatura junkie: Flashbacks, O teste do ácido do refresco elétrico, A erva do Diabo, Confissões de um comedor de ópio, Junky, Fear and lothing in Las Vegas. Mas na grande maioria das tardes eu fazia porra nenhuma. Só fumando maconha e bebendo cerveja. Tardes eternas, perpetuadas num tédio espesso composto de fumaça, cheiro de cerveja velha e mofo (o cheiro típico dos bares), além de acordes toscos e vozes desafinadas berrando rimas estúpidas que invariavelmente terminavam em verbos no infinitivo.

Um caso de polícia

Conhaque descendo fácil, baseados acesos. Ensaio da Space. O Edu e a Mari (que estão pro Thurston Moore e pra Kim Deal assim como Porto Alegre está pra Nova York) detonando os velhos amplis no máximo numa zoeira sônica. De repente entra o Bode, travadão como sempre, mordendo os lábios, espuminhas brancas grudadas no canto da boca torta, piscando ininterruptamente e esfregando as mãos uma na outra – todos os cacoetes que um cheirador pode ter, todos ao mesmo tempo.

Dizer que o Bode falou alguma coisa naquele momento seria uma figura de linguagem, o Bode grunhiu qualquer coisa gesticulando e apontando pra fora. Parecia mais perturbado que o habitual. O Edu deu mais um pega e foi ver o que era. Saiu da salinha, cruzou o bar e quando chegou na rua viu um gurizão e o barbeiro Gomes acompanhados de um policial. Quase enfartou diante da cena. Recuperado do susto quis saber o que se passava. Nisso toda a banda já tinha saído do estúdio e espiava pra fora tentando saber o que acontecia. Então o gurizão pediu pra ver a nota fiscal do contrabaixo que uma menina (a Mari) entrara carregando.

Como assim? Perguntou o Edu.

Esse baixo é meu. Disse o gurizão.

Nada a ver, a gente comprou esse baixo.

Prova.

Não havia jeito. O baixo tinha sido comprado de segunda mão numa loja cujo dono não dera nota fiscal. E mesmo se tivesse dado ela já teria sido perdida no meio da bagunça de discos, livros, fanzines, cartazes de shows, instrumentos musicais e outras porcarias que atulhavam o quarto do Edu e da Mari. O policial interveio, disse que o único jeito era levar todo mundo pra delegacia pra resolver a pendenga. O Edu quase enfartou de novo.

O dono da loja foi chamado e livrou a cara deles. Alegou ter comprado o baixo de um desconhecido, provavelmente quem tinha roubado o instrumento. Tiveram que devolvê-lo ao gurizão (que tinha nota fiscal). O dono da loja garantiu que restituiria a grana pro Edu e pra Mari e tudo terminou bem.

Bem, o caralho. Diria o Edu mais tarde. A gente nunca viu a cor dessa grana.

O cara de chambre e chinelo

Um dia apareceu um cara de chambre e chinelo e pediu pra falar com o dono. Era um pouco antes do meio-dia e alguma banda barulhenta ensaiava na caixa acústica. O cara não parecia velho mas tinha uma aparência péssima, gordo, barba por fazer de vários dias, olheiras, um punhado de cabelo que nascia só nas laterais da cabeça e dois ou três fios compridos que cruzavam de um lado pro outro pelo meio da careca.

Qual o problema?

Enfiou o dedo na minha cara:

Música alta às três da madrugada eu já me acostumei, mas na hora do almoço eu não vou admitir!

Disse que a mãe tinha acabado de voltar do hospital. A velha se submetera a uma cirurgia e precisava de repouso, canja de galinha e silêncio, sobretudo.

Se ela morrer, eu te mato.

Positivamente ele não estava brincando. Através dos olhinhos raivosos radiações de ódio minaram meu corpo como um jato de raio-X, atravessando pele, gordura e músculos e contaminando meus órgãos internos com a mais nociva das bad vibes. O ódio que os vizinhos nutriam por nós era um sentimento genuíno.

*

Pro bem da mãe do cara de chambre e chinelo (ou pro meu próprio) a caixa acústica não durou muito. Desde o começo o negócio nunca tinha dado muita grana, principalmente em função do pindura. Porém, o que nos levou mesmo a por um fim no estúdio foi o Bode. Não sei se por ingenuidade ou muita fé no espírito humano, a gente confiava no cara. Sempre fungando, braços furados, pele péssima, todo espinhas e pústulas. Drogado-porém-honesto, pensávamos, e, de fato, mesmo com toda a detonação, ele nunca tinha pisado na bola com a gente.

Até o dia em que o Ricardo apareceu no bar e encontrou o Bode e mais três figuras suspeitíssimas no estúdio. Ninguém tinha instrumentos e os amplificadores não estavam ligados. No ar pairava uma fumaça estranha, um cheiro metálico bem diferente da fumaça adocicada do beque.

E aí, Bode, qualé? Perguntou o Ricardo.

Nada não, a gente já tá de saída. E foi dando o fora com as figuras, uns tipinhos de boné e cara de assaltante.

Depois o Ricardo achou as latas amassadas. O Bode trazia seus amigos craqueiros pra fumar pedra no bar. Sujeira total. Decidimos dar um fim no estúdio. Ingenuidade demais confiar num drogadito como o Bode. Por mais honesto que fosse, cedo ou tarde acabaria nos ferrando. Afinal, era o destino de todo junkie: trair os amigos, vender a mãe, a própria alma, qualquer coisa que valha alguma coisa.

A caixa acústica teve suas atividades reverberatórias encerradas. O Bode recolheu o equipamento e ficamos sem notícias dele por alguns meses. Até a noite em que apareceu no bar, pele escamosa, tremedeiras, tiques e manias sacudindo o corpo magricelo. Ofereci uma ceva.

Pra molhar o bico, tirar essa baba seca do canto da boca. Disse pro Bode.

É, tô precisando. E mordeu o lábio e enrolou a língua três vezes.

Enchi um copo de cerveja e enquanto ele bebia perguntei que fim tinha dado no equipamento.

Quem sabe a gente podia fazer negócio num daqueles amplificadores?

Depois de secar a ceva num só gole e limpar a boca com a manga da jaqueta, O Bode deu um pequeno arroto e disse:

Cheirei tudinho, não sobrou um cabo.

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