31.8.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 17 - My own private Summer of Love ou As sobrinhas do Juca

Parte II

O Juca era um amigo do Ricardo que tinha uma fabriqueta de comida pra cachorro. Ele comprava tudo que o ser humano não consome num animal: pulmão de vaca, unha de galinha, cu de porco, triturava e embalava toda a caca e vendia pra criadores de cães das mais diversas raças. O detalhe sórdido da profissão do Juca é que um dos seus maiores clientes era o dono de um rodízio de pizzas na Cristóvão, onde toda semana ele descarregava de sua kombi fedorenta quilos da gororoba. Segundo o Juca, o dono da pizzaria tinha também um enorme canil. Via das dúvidas, ele desaconselhava as pizzas do rodízio, especialmente a sabor bolognesa.

Além da fabriqueta de comida pra cachorro o Juca tinha duas sobrinhas. Dicotómicas, faziam uma combinação explosiva. A mais nova era uma loirinha de olhos verdes e peitos grandes do tipo tímida. A outra, moreninha bunduda, fazia o tipo safada. Estavam sempre pelo bar, impregnando o ambiente de uma enorme tensão sexual. Uma noite apareceram com uma cartela de ácidos. Uma folha de cartolina colorida dividida em quadradinhos pontilhados que, juntos, formavam o desenho de um personagem de história em quadrinhos. O amigo dum primo de não sei quem tinha trazido de não sei onde e sabe-se lá por que tudo aquilo caíra nas mãozinhas das sobrinhas do Juca. Fiquei com uma parte com a desculpa de vender pros amigos, mas como não nasci pra ser traficante, acabei tomando tudo. Tudo não, minto. Vendi um, superfaturado pra cobrir os custos.

De repente, aquela droga até então-tão díficil de descolar estava na boca do povo. Todo mundo tomando ácido, if 6 was 9, ou vice-versa. Além das sobrinhas do Juca tinha o Reno. O Reno era um nerd fã de Funkadelic e fissurado em LSD. Ele trabalhava numa produtora de áudio, morava no Rio e duas vezes por ano aparecia na cidade. Sempre com os melhores ácidos da temporada, uns petardos que faziam com que as figurinhas com personagens de história em quadrinhos das sobrinhas do Juca parecessem desenho da Mônica. O cara lidava com coisa de gente grande: o Dragão Chinês, o Sol Asteca, o Ganeshi.

O lance é puxar a viagem, dizia o Reno.

E lá ia a gente pro Play Center em histeria conjunta, testando a paciência dos funcionários do parque de diversões (eu podia viver disso), girando de ponta-cabeça em geringonças piscantes, rindo convulsivamente, sacando tudo em telepatia. Minha grande parceira nessa longa viagem pelos limites da consciência, portas da percepção adentro, foi a mulher mais linda e louca que já pisou naquele bar. Síntese de divas italianas, Sophia Cicciolina: minissaia sem calcinha gritando na montanha russa, trêbada às nove da manhã segurando balões de gás coloridos parando o trânsito da Barros Cassal, correndo nua em orgias ao meio dia, estroboscópica ligada, corpos isolados da luz externa, a batida do ácido no ápice, trilha sonora: Sly and the Family Stone, trepando em colchões sujos atirados na pista de dança cheia de copos plásticos com restos de cerveja choca de ontem agora há pouco.

*

A pista de dança fervia ao som dos djs Black Moses e Rick Red Neck, pseudônimos inventados pra gente usar nos relises. Nas tardes de sábado eu e o Ricardo pintávamos na Sound & Vision, uma locadora de cds que mantinha a cena informada das novidades do distante mundo fonográfico. A Sound & Vision era gerenciada pelo Dudu, um cara gente finíssima que cantava (mal, por sinal) na Crushers, banda em que o Ricardo tocava baixo. A gente ficava na Sound & Vision ouvindo uns cds da Matador. O Diego "Doiseumindoiseuma" Medina estava sempre por lá com uma turminha que viria a ser a banda Os Massa. O Drégus vendeu seu passe de dj pro Circus mas a gente importou o Malásia pra auxiliar nos embalos de sábado à noite com a categoria de quem tem a cor. A Urro, tocando um samba atravessado from outter space, exorcizava o ambiente em sessões de descarrego sonoro. Júpiter Maçã, Graforréia Xilarmônica, Space Rave, Ultramen e Walverdes eram as pratas da casa. O Ricardo juntou forças com o Plato Divorak e eles produziram o Monterrey Popstock Festival, o evento reuniu uma pequena mostra do cenário alternativo nacional. O Tavares seguia fazendo seus tributos: o Dia dos Namorados Psicodélico, em que acompanhava, na guitarra, casais cantando em duetos; os Spiders, a banda glam que tocava Bowie, Iggy Pop e Lou Reed; ou a homenagem aos 30 anos do Sgt. Peppers. O show teve participação de Argonautas, La Infâmia, Júpiter Maçã e Moses, a banda em que eu cantava (mal, of course, sina de dono de campinho). A Grazi fez bonito cantando "Lucy in the sky with diamonds" com os Argonautas, combo de surf music instrumental liderada pelo Moreira, um cara que iria abandonar o roquenrol pela religião, deus me livre! O Ricardo e o Tavares mandaram muito bem na La Infâmia, tocando umas músicas casca grossa de executar como "She's leaving home". Eu, por minha vez, tomei uma figurinha das sobrinhas do Juca e destruí "A day in the life", Lennon se revirando no túmulo etc. O Júpiter não tocou "It's getting better" conforme o combinado, mas transformou "Mr. Kite" em dez minutos de pura psicodelia sônica, digna dos melhores power trios. Em 98 foi a vez do Álbum Branco.

Os afters se prolongavam até uma, duas da tarde. O sol assando a rua enquanto a gente seguia trancado lá dentro numa atmosfera controlada de fumaça de cigarro e cheiro de ceva azeda. O Júpiter era o centro solar daquela galáxia de loucos. Todo mundo gravitando em torno dele. Bebendo cachaça no Bar João por 18 horas consecutivas, amanhecendo na grama da Redenção com as roupas cobertas de folhas, falando inglês cockney fake, trepando em banheiros sujos, rodando em busca de cocaína no Simca Chambord laranja sem freio do Xurumelas. Era sempre tarde (ou cedo, dependendo do ponto de vista) quando trôpego ele entrava no bar, paramentado de Sargento Pimenta, mãos dadas com a louríssima Magra de mini-vestido vermelho e sem sapatos, os joelhos escalavrados de cair no chão e seguir arrastada pelo outro. Disparava pelo corredor puxando a boneca de pano de vestido vermelho e ia atormentando um por um até conseguir quantas doses de qualquer coisa pudesse extrair de qualquer um disposto a cair no papo infalível. Ou seja: todo mundo. Quase não ingeria sólidos. Quando o sushi-bar ainda existia (resistia?) a gente dava uns sushis pra ele comer no final da noite. Engolia dois sushizinhos e já perguntava se não tinha sakê. Nossas conversas giravam basicamente sobre dois temas: ele ou eu. Sendo que ele era geralmente o assunto mais comentado, seu egoncentrismo sobrepujava o meu. Ah, e música, é claro. Música, sempre:

Os anos 1960, eu dizia.

No que ele cortava:

Anos 2000, o lance é anos 2000.

Quando A Sétima Efervescência saiu, fazíamos audições consecutivas do disco, superchapados, descobrindo todos seus nuances. O adolescente cujo dilema existencial era a menstruação da namorada tinha crescido e se tornara um artista capaz de criar cenas de uma beleza cinematográfica (como a da ex dividindo o guarda-chuva pelas ruas de uma Porto Alegre de cenário da Nouvelle Vague). Ao violão, ele nos mostrava as músicas novas, umas bossinhas pra inglês ver tipo Um convidado trapalhão. E os shows que sempre começavam muito tarde, depois de horas apreensivas em que a gente nunca sabia se ele iria aparecer, o bar lotado. Até que alguém chegava da Osvaldo e dizia:

Tá lá no João.

E a Paola, a produtora, tinha que resgatar o astro, convencê-lo a fazer o show e sobretudo entupi-lo de café preto. Um tipo de pânico o atormentava antes das apresentações (paranóia é uma de suas caraterísticas mais marcantes) e o tormento só acabava quando enfim ele subia no palco e colocava a platéia no bolso. Fácil. Muitas vezes era impossível lidar com ele. Principalmente em questões envolvendo $$. Quando as cifras apareciam, se tornava mesquinho e ambicioso. A lealdade também não estava entre suas qualidades. Conhecendo-o melhor, entendi que o caráter de um artista nada tem a ver com a grandeza de sua obra.

O show de lançamento do A Sétima Efervescência aconteceu no Circus, o clube de nosso ex-sócio Marcos. Noite de gala no submundo. Tomamos as devidas providências (leia-se, drogas) e fomos pro show. Era sábado e combinamos de abrir o bar somente depois da apresentação do Júpiter, ninguém era bobo de perder essa. Vi o show bem na frente do palco, exatamente como naquela primeira vez em Esteio. Um artista ainda mais completo e surpreendente. No final, o baterista, o Glauco, chutou o instrumento, derrubando pedestais e microfones em meio à zoeira dos feedbacks, enquanto, envolto numa aura gasosa, Júpiter saía pros bastidores deixando a guitarra tombada em frente ao amplificador.

Assim que a música mecânica começou, dei ciao pros amigos, contrariado. Work to do. Tentaram me consolar dizendo que nos encontraríamos mais tarde. A batida do ácido tinha sido potencializada pela intensidade da apresentação. Puxar a viagem, como diria o Reno. Nada melhor pra puxar a viagem do que um show de rock daquele calibre. Fui caminhando pela Osvaldo, curtindo a beleza secreta da cidade que a droga ajuda a revelar. Me sentia um pouco triste, preferia ter ficado com os amigos. Qualquer trabalho é um trabalho, afinal.

Cheguei no bar e, não digo o universo, mas a filhadaputa da faxineira tinha conspirado contra. Maior sacanagem, não apareceu. Toda a sujeira da noite anterior empestava o ambiente: centenas de copos plásticos pelos cantos, bitucas de cigarro nos vãos do piso, garrafas com restos de cerveja, cacos de vidro. Não havia saída, tinha que encarar a limpeza. No que instantaneamente entrei em bad trip. Me sentia abandonado e traído. Todo mundo se divertindo enquanto eu ali, sozinho, varrendo um bar imundo. O porteiro chegou exatamente quando eu colocava o lixo pra fora, o que me fez crer que ele estava mancomunado com a faxineira. Todos contra mim. Demorou algumas horas até que amigos e clientes aparecessem. Tempo de limpar tudo e ainda tomar quatro doses de vodca curtindo a minha bad. O primeiro a aparecer foi o Juca, acompanhado das sobrinhas. As meninas perceberam a fragilidade do meu estado piscológico e vieram ao socorro com o que tinham de melhor (incluindo os peitões da loirinha de olhos verdes que afinal não era assim tão tímida). Depois todo mundo: o Júpiter, a Magra, a banda, um bando de groupies, as Little Sisters, o Xurumelas e seu Simca sem freio, todos os músicos da cidade plus duzentos bêbados sobressalentes. Cinco da manhã e a festa apenas começando. Às sete, dispensei o porteiro e tranquei o portão com corrente e cadeado. O ácido, no ápice. Se pediam pra ir embora, dizia que tinha perdido a chave. Pague para entrar, pule para sair.

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4 Comments:

Blogger Cris said...

Corujito...me divirto muito!Dou intensas gargalhadas...mal posso esperar pelo livro!Abraço de Paris!

9:43 AM  
Blogger Inara said...

nao sou de poa, mas moro aqui há um tempinho. adoooro as tuas histórias, me sinto um pouco mais íntima desta cidade q tão bem me abrigou.....
bjo!

9:47 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ai de ti se nao me convidar pra fazer a capa desse livro! Não sou mais teu amigo!
Quem sabe uma releitura daquela pintura que tava na parede, por exemplo...
Abração

6:40 PM  
Blogger Cris said...

Tú é meu padrinho no blog!!!!
hahahaha
Voilá!

3:55 AM  

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