17.9.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 18 - Rock pauleira

Parte I

Antes de se consagrar como santuário de preservação de bandas independentes o Garagem ficou conhecido pela música ducaralho que rolava em sua pista de dança. Eu tinha um prato Gradiente (roubado depois) e a gente tocava muito vinil, a maioria do Marcos. Ele tinha uns discos bacanas: o duplo ao vivo dos Talking Heads, The queen is dead dos Smiths, aquele Jorge Ben com as músicas todas em medley, o primeiro dos Beastie Boys, o primeiro Defalla, a trilha do American Grafitti, um disco do Gueto com a música "Borboleta psicodélica", o 3 lugares diferentes do Fellini. O Ricardo botou na roda uma coletânea do The Cure, se bem me lembro. Eu entrei com os cds, muito Pixies, Mutantes, James Brown e Aretha Franklin, Kinks, Stooges, Bowie e Velvet Underground (no final da noite, sempre que pediam Velvet, eu lascava os dezessete minutos de zoeira de "Sister Ray", piadinha interna). Também apareciam uns discos estranhos, velhos vinis doados pelos clientes: uma coletânea do Abba ("Fernando" era a nossa faixa preferida), a trilha do filme Saturday night fever e a da novela Dancing Days (a internacional, com Dee Dee Jackson e Charo) e um disco de MPB obscura dos anos 70, cujo intérprete nem o Google se lembra, do qual extraímos o hit "Pra fazer busseca". O Drégus também nos emprestava muitos cds e acabou bebendo-os todos depois que o bar foi arrombado. Antes de ser transformada em cerveja (e em xixi, por consequência), a discoteca do Drégus incluída uma coletânea de b-sides do The Fall, um ao vivo dos Young Gods (tocando Kurt Weil), o primeiro Us3, o Pills'n'thrills and bellyaches dos Happy Mondays, o Ritual de lo habitual do Jane's Addiction e vários do Nick Cave.

Rock pauleira era o que a gente menos tocava. A não ser considerando, como meu avô, rock pauleira qualquer música barulhenta e distorcida. O Iggy Pop disse uma vez que a música, pra ele, deveria sair do alto-falante e agarrar o sujeito pela garganta e bater a cabeça dele contra a parede e basicamente matá-lo. Pauleira pouca é bobagem. E o Iggy era o nosso papa. O que deixava o Seu Raul terrivelmente desapontado: seu querido netinho, aquele mesmo que um dia seria um grande homem da ciência (quando crescesse, queria ser cirurgião plástico) era catequista num santuário do rock pauleira.

Ainda nos primeiros meses recebemos a visita do Bebeto Alves, músico consagrado localmente, cuja carreira tinha começado quase vinte anos antes com uma banda de inspiração folk-progressiva de nome Utopia (enquanto em outros lugares mais interessantes do planeta, o levante punk botava abaixo qualquer intenção de bucolismo ou virtuosismo). Pois o Bebeto se apoiou no balcão e, diante do despojamento das paredes mal pintadas, fios elétricos expostos, escuridão completa à quisa de equipamentos de iluminação, proclamou:

Mas isso é tão punk, tão fora de moda.

Isso é falta de grana.

Foi a primeira e única coisa que me ocorreu dizer. Não ia discutir com o homem sobre moda ou a relevância deste ou daquele gênero musical. Até porque eu achava que o punk tinha resistido muito mais à prova do tempo do que o rock progressivo no qual ele tinha se inspirado lá nos anos 70. Mas deixa assim, o cliente tem sempre a razão.

Mesmo não nos sentindo parte do tal do movimento (principalmente por sermos individualistas demais pra ficar por aí andando em bando, prática obrigatória entre integrantes de qualquer movimento, seja musical, político ou religioso) seguíamos a risca o do it yourself, aforismo que está pro punk assim como o penso, logo existo está pro cartesianismo. DIY. Faça você mesmo era justamente o que a gente havia feito até então: o nosso próprio bar na falta de outro melhor. No que por insistência (resistência?) a coisa toda foi adquirindo um caráter de movimento. Nos tornamos ícone de um movimento de contornos vagos que pregava, mais em ações do que em palavras que não fossem música, a independência, o caos, a tolerância e a alegria, porque afinal de contas a gente veio aqui pra beber ou pra conversar? Politicamente a gente se situava à esquerda de quem entra, na segunda porta depois do corredor, subindo a escada de caracol ao fundo. Se havia governo a gente era contra, tinha pavor do aparelho repressor e na maioria das vezes torcia pro bandido. A gente queria ser herói. A gente era punk e não sabia.

*

Com suas cabeleiras exuberantes, roupas pretas, botas e rebites, os headbangers são a personificação do rock pauleira. Vulgarmente chamados de metaleiros, passam as noites de lua cheia em rituais macabros, evocando satã, comendo morcegos, entoando cânticos fúnebres de morte e destruição em gritos agudos e urros guturais. Esses dinossauros redivivos se recusam a morrer. Pra escapar da extinção multiplicam-se em variadas espécies, de olho no salto evolutivo: heavy, black, death, trash, speed, prog, power, white, symphonic, goth, alt, NU e o que mais cair nas garras do monstro.

Um desses monstros, dos maiores por sinal, pisou suas patas destruidoras no bar. O bicho saiu aqui da província na forma de três cabeludos que conquistaram platéias no mundo todo com um metal extremo, veloz e agressivo, de dar medo. Numa dessas brechas de turnê mundial, de volta a terrinha, o Krisium tocou no Garagem. O show atraiu centenas de headbangers. Como corvos se agrupando pra pilhagem, chegaram aos poucos. Imóveis, sem consumir nada (nadinha, nem água) foram se agrupando e aumentando em número, assustadores. O show começou numa explosão de brutalidade através dos amplificadores importados e os corvos seguiram no mesmo lugar, apenas as cabecinhas balançando. O efeito daquela massa sonora era de dar náuseas. A vibração atravessava meus órgãos e tecidos, causando alterações celulares irreparáveis. Tudo tremia em torno, como se de repente a casa fosse se desintegrar. Me tranquei no escritório até que o estupro sonoro parasse e quando a música acabou um zunido ainda vibrava na altura dos ouvidos. Coloquei um Daft Punk pra espantar os metaleiros. Levantaram vôo devagar, como aves estúpidas, e saíram, amáveis.

E os skinheads, também amam? Uma vez fizeram uma festa de despedida prum amiguinho, olha que meigo. O Aranha era um sensei, ninsei, nem sei, que ia pra Tóquio. Um careca bem humorado, forte que nem um pequeno gorila, que me fazia agradecer a deus por tê-lo como camarada. O Aranha ia se mudar pro Japão, queria confraternizar com os amigos e como eu conhecia o cara desde os tempos do Lola, marquei a festa. Imaginava que iam aparecer alguns skinheads e, numas de camaleão, resolvi me disfarçar: cabeça raspada, coturnos, jeans, suspensórios, camiseta branca. Saí de casa achando a piada divertida mas quando cheguei no bar não teve mais graça. Um esquadrão de skinheads de verdade esperava na frente do portão, assustadores. O esquadrão de amigos do Aranha achou o ingresso caro e, usando técnicas de guerrilha, entrou no bar escalando pela sacada. Depois, os carecas foram poguear em frente a uma TV que passava vídeos de bandas com fortões de camiseta apertada e suásticas nos braços. Tive vontade de rir mas o medo me impedia. Um ponto de interrogação marcou a minha testa quando o olhei o Aranha chegando: sendo o meu camarada amigo de uns nazistas fodidos, seria ele próprio um nazista fodido? O Aranha olhou pra mim com seu sorriso largo, garantia pra escapar ileso de uma invasão de skinheads. Sorri de volta, controlando o pânico.

(continua)

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