26.4.08

HOMENS NOTÁVEIS VII
Rahsaan Roland Kirk

Em 1938, quando tinha apenas dois anos de idade, o menino Roland Kirk foi atendido em um hospital de sua cidade natal, Columbus, no estado de Ohio, nos Estados Unidos. A enfermeira, que, segundo ele “devia estar bêbada, chapada ou louca” aplicou o colírio errado nos olhos de Roland e ele ficou cego. A perda da visão não impediu que Roland Kirk se tornasse um dos saxofonistas mais inventivos de seu tempo. Não apenas saxofonista, foi um multi-instrumentista. Ao todo, tocava 45 instrumentos, entre sax baixo, tenor e soprano, clarinete, corneta, manzello, stritch, harmônica, flautas, apitos e criações próprias como o flexafone e o trompofone (híbridos de sax e trompete).

O mais surpreendente é que conseguia tocar boa parte disso ao mesmo tempo. A chamada técnica da respiração circular lhe permitia executar três saxofones simultaneamente enquanto espirrava através de uma flauta e peidava num apito. Uma penca de coisas pra assoprar ficava pendurada em seu pescoço esperando a vez. Mas não era apenas um virtuoso, tocava com muita emoção. Seus solos beiravam a exuberância caótica do free e traziam a marca da tradição musical afro-americana.

Apesar de já exibir todo esse fôlego em seu primeiro álbum (de 1956), é em 1961 que Roland Kirk revela o seu enorme potencial criativo. A sessão, liderada por Charles Mingus (ao piano, ao invés do contrabaixo) resultaria em dois álbuns: Oh Yeah (1962) e Tonight At Noon (1964). Rahsaan é o solista perfeito para as composições de Mingus. Sua contribuição em temas como “Old Blues For Walt's Torin” e “Eat That Chicken” (recheada de riffs Dixieland) é fundamental. É uma pena que tenha tocado só mais uma vez com o mestre Mingus (Em 1974 no Carnegie Hall, em uma jam session registrada pela Atlantic).

Durante os anos 1960, grava prolificamente como líder pro selo Mercury. No final da década, sonha com o episódio do colírio que o cegou e passa a crer que vive dentro de uma lágrima gigante. Na mesma época se interessa por misticismo e incorpora o Rahsaan no nome. Uma temática onírica, surrealista, dá o tom de suas composições. Passa a circular com os psicodélicos californianos e, ao lado do Grateful Dead, se apresenta em happenings promovidos por Ken Kesey e seus Pranksters. Participa de uma jam com Jimi Hendrix. Lança os celebrados The Inflated Tear (1967) e Volunteered Slavery (1969), ambos pela Atlantic. O primeiro traz composições originais, com exceção do tema ellingtoniano “The Creole Love Call”. Já o segundo, graças à pressão da gravadora, inclui hits das paradas de sucesso ("My cherie amour", "I say a little prayer"). Kirk, que gostava das canções pop, chamava a atitude de "escravidão voluntária". Volunteered Slavery une gospel, blues, Beatles, Motown e Coltrane numa massa sonora delirante. Destaque pra canção-título, uma celebração de som e fúria cheia de soul, e pra fantasmagórica “Spirits Up Above”, cantada pelo “Coral de Espíritos de Roland Kirk”.

No início dos anos 70, participa do Jazz and People's Movement, grupo engajado na luta por melhores oportunidades de trabalho para os negros. Em 1972 é consagrado no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Cria o grupo de jazz-rock Vibration Society e se transforma em uma espécie de celebridade malucona. Eric Burdon o homenageia com uma canção no disco Eric Burdon Declares “War” (1970), e Roberta Flack lhe dedica um álbum inteiro, Killing Me Softly (1973). Mas a euforia, o ecletismo e a extravagância de Rahsaan eram motivo de controvérsia. O músico era considerado por muitos puristas como um espetáculo circense. Alguns críticos afirmam que, se tivesse se dedicado a apenas um instrumento, seria reconhecido como um mestre.

Em 1975 é acometido de um derrame que lhe paralisa os movimentos e morre dois anos depois. Uma vez declarou que, após a morte, “queria ser cremado e misturado à maconha pra que as pessoas o fumassem e tivessem idéias maravilhosas”. Não foi preciso, seu legado musical é o grande barato.
A seguir, Rahsan Roland Kirk em performance no início dos anos 1970 do hino freak "Volunteered slavery". Dez minutos de insanidade sônica num tour-de-force que vai do funk ao free, com direito a citação à Beatles ("Hey Jude"), passeio cego pela platéia, solo de concha e a completa destruição de uma cadeira ao final do espetáculo. A platéia, em delírio. Depois, "Blue rol No. 2" no Festival de Montreux, com de flauta de nariz, rap, rapé e a última estrofe tocada em três sax simultâneos.





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