13.5.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: FERNANDO ARRABAL E GERALD THOMAS

­Segunda noite consecutiva no Auditório da Reitoria.

Digressão exibicionsita: no domingo, show do cantor e guitarrista John Pizzarelli, que, acompanhado de um combo estilo West Coast, fez uma apresentação honestíssima na primeira parte, revisitando alguns dos maiores standards do gênero: “All of me”, “It’s only a paper moon”, “They can’t take that alway from me”, “I got rhythm”. Em seguida, uma homenagem a Frank Sinatra com três clássicos do repertório do bom&velho Old Blue Eyes: “Witchcraft”, “How about you” e “In the wee small hours of the morning”. Uma pena que na segunda metade a coisa descambou pra releituras insossas de Beatles e uma seqüência interminável de melosos hits da bossa nova, bem ao gosto da platéia que cantou a “Garota de Ipanema”. Direitinho, tenho que confessar.

Segunda palestra do seminário, já que o, perdão, prometido Christo e sua parceira Jeanne-Claude foram excluídos da programação (descumprimento de obrigações contratuais, segundo os organizadores).

O auditório não estava cheio como na noite inaugural. Achei uma cadeira na lateral, perto do palco. Na fileira da frente, um carinha com uns oclinhos de publicitário devorava um pacote de Cheetos, e eu jurando que isso só acontecia em coletivos da região metropolitana. Ao meu lado duas lésbicas conversavam com a arrogância dos que se julgam mais inteligentes do que os outros. Um delas era colega de profissão e segurava uma câmera de vídeo no colo. Num gesto de simpatia, ofereci chicletes. A outra me olhou com hostilidade e fulminou:

Conhece?

Não, a jornalista respondeu.

Por que, vocês não aceitam balas de estranhos?

A outra riu com sarcasmo:

Temos medo de sermos estupradas.

Olhei pra cara feia e respondi em segredo que com isso ela não se preocupasse.

No telão passava um documentário sobre o primeiro palestrante da noite. Depoimentos de intelectuais e artistas europeus eram intercalados com cenas de filmes, umas cenas escatológicas, cheias daquelas referências católicas típicas dos espanhóis (um elenco de punks encenando o milagre da multiplicação com hambúrgueres no lugar de pães, por exemplo).

Fernando Arrabal, poeta, dramaturgo, cineasta e ficcionista, deveria falar do “Surrealismo à Patafísica: onde está a vanguarda da arte”. Oba, pensei. Uma oportunidade de saber um pouco mais sobre essa escola filosófica inventada por Alfred Jarry, a ciência das soluções imaginárias. Mas como bom surrealista, Arrabal sequer mencionou a Patafísica.

Acompanhado de um cocodrilo (o espanhol é a língua mais divertida que existe) empalhado, que acariciava e beijava de tempos em tempos, o velho provocador contou histórias de sua vida, lembrou dos amigos (Brecht, Breton, Picasso, Dali, Duchamp, Ionesco) e reafirmou as obsessões que caracterizaram sua obra (sexo e a estupidez humana, entre outras).

O encenador de si mesmo, foi como se definiu. Vestia um traje chinês com um par de dragões (cocodrilos, segundo ele) e um espiral jarryano bordados na camisa negra de largos punhos dourados. Caminhava de um lado pro outro e parecia se divertir bastante. Lembrou que aquela era a segunda vez na cidade. A primeira tinha sido há dez anos, quando foi patrono da mesma Feira do Livro que homenageou Paulo Coelho.

“Não tive culpa”, brincou. E despejou outras máximas deliciosas na platéia:

“A inteligência é a arte de servir à memória.”

“Se eu fosse Gary Cooper iria dançar pela noite em vez de escrever.”

“Imaginação é a arte de combinar as recordações.”

“Um comunista só crê nos Estados Unidos.”

“Ou inteligente, ou gênio.”

“A próstata é misteriosa.”

“Picasso era um pesado insuportável.”

Em concordância semântica com o nome do famoso pintor, Arrabal afirmou que Picasso era bem-dotado e sofria de priapismo. Ficava de pau duro ao simples sol da manhã. Até que a misteriosa próstata tirou sua virilidade, enquanto a esposa, a jovem e bela Jaqueline, amava verdadeiramente o pintor. Porque “o amor engendra a castração”.

Uau!, gritei mentalmente.

“Un cocodrilo habita my vida”, disse o pequeno grande homem apontando pros dragões no peito. Abriu a camisa, revelando uma reprodução da “Aula de anatomia do Dr. Tulp” estampada na camiseta. A enigmática tela pintada por Rembrandt em 1632. Ou 1932, segundo Arrabal, o ano de seu nascimento.

Até que uma das atendentes gostosas o interrompeu com um papelzinho, claramente indicando que seu tempo de fala havia terminado. Quando o apresentador (um jornalista do Jornal do Comércio, não lembro o nome) agradeceu a presença do palestrante, alguém berrou:

“Deixa ele terminar, porra.”

Ou quase isso. E quando foram perguntar se Fernando Arrabal podia terminar, soube-se que “aparentemente” aquela era a palestra do senhor Arrabal.

Se alguém ficou surpreso, imagino a reação após a palestra seguinte. Indignação, eu chutaria, aquele velho sentimento sovina de quero meu dinheiro de volta. A colega de profissão ao lado (que estranhamente só gravara um rápido take da palestra de Arrabal) já tinha me dito sobre o clima de hostilidade entre os dois palestrantes. “Aparentemente”, Fernando Arrabal e Gerald Thomas haviam discutido no jantar da noite anterior sobre quem era mais amigo de Samuel Beckett. A situação se agravara na entrevista coletiva quando perguntaram a Arrabal o que ele achava de Gerald Thomas.

“Thomas quem?”, teria respondido o dramaturgo espanhol.

Quem ri por último ri melhor, deve ter pensado Thomas Quem. E veio com tudo. Literalmente. Parecia recém chegado da rodoviária. Ou aeroporto, como talvez fosse mais apropriado pra um sujeito que mora em Nova York. Casacão, cachecol e uma enorme mochila, “aparentemente” cheia.

“Não trouxe o jacaré, é que eu superei a fase do teatro do ridículo, quer dizer, absurdo.”

Daí pôs a mochila no chão, foi tirando aquele monte de roupa e deixou o microfone cair, fazendo um barulhão. Encenador de si mesmo. Lembrei da frase de Arrabal e pouco me surpreendi com a representação do papel de polêmico que Gerald Thomas construiu pra si em 25 anos de carreira. Cidadão brasileiro e norte-americano, com uma educação privilegiada e uma biografia conturbada (li no Wikipédia que teria se envolvido em prostituição em Nova York. Na enciclopédia livre também li uma frase constante no site oficial do Fronteiras do Pensamento, ipsis litteris, como se diz naquela velha língua morta: “Trabalhando regularmente em no mínimo oito países, Gerald é visto pela opinião pública como um diretor polêmico pela maneira autêntica como expressa sua independência artística através do teatro”), encenou dezenas de peças marcadas pelo experimentalismo.

Caminhava de pra lá e pra cá de um jeito meio autista, ficando muitas vezes de costas pro público. Do alto de sua enorme boçalidade, ordenou que pusessem no telão a sua foto com Samuel Beckett. Depois passou uma espécie de clipagem muito cafona de suas montagens teatrais, enquanto proclamava:

“Não tenho me interessado muito por meu trabalho.”

Sugeriu que se falasse de outros assuntos: o último estupro no Louvre, o novo corpo no Tâmisa, o tráfico de cocaína no Rio. Declarou-se cansado de pessoas se exibindo em tom teatral. Dupla canseira, já que aquilo era exatamente o que fazia, tirando o notebook da mochila pra zombar da era da comunicação virtual, “aparentemente” um ato casual, em meio ao profundo tédio de ali estar.

“Vim aqui conhecer o anexo do teatro da minha amiga Eva Sopher”, confessou.

Recebeu alguns aplausos quando se manifestou contra o estado de Israel, que visitou uma vez por conta da revista Caras, já que nunca pagaria pra ir lá. Disse que devemos brincar com a tragédia da vida. Evocou Franco (em direta provocação a Arrabal) e Hitler e zombou da “gente do Bonfim” que abandonava o auditório. Enfadado, abriu pra perguntas e logo alguém gritou:

“Fala sobre o Barack Obama.”

Mexeu na longa cabeleira tipo Milli e Vanilli e disse que aquela era a luta pela qual poderia se engajar: colocar um homem negro na Casa Branca. Alguns aplausos foram ouvidos, mas o clima geral era de hostilidade. Tatibitate, um idiota leu uma pergunta constrangedora sobre o “papel das artes”, o que deu munição pro polêmico profissional tripudiar sobre interlocutor. Bem feito, pensei. Decretou a insignificância dos intelectuais num mundo de fome e miséria:
"A gente não existe. Vivemos numa bolha."
Terminou dizendo que não vivia de palestras e achava todo aquele circo uma enorme ação de marketing.

“O resto é hipocrisia”, disse encerrando prematuramente a palestra. E saiu sob vaias.

Na rua notei duas senhoras em exagerados casacos de pele comentando que tinham gostado muito do primeiro, mas que o segundo...

“Imagina o quanto ele ganhou pra fazer isso.”

Dei o braço a torcer pro escroto do Gerald Thomas: essa gente merece que lhe tirem o dinheiro.

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4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muito bem, fiquei sabendo de todos os babados da noite, de como mais ou menos acorreu o ocorrido. Obrigada heheheh. Quero ver se na próxima eu pelo menos tento entrar...

6:03 PM  
Blogger Gabriel Cevallos said...

John Pizzarelli canta bem em português porque pegava a Cissa Guimarães. SAY NO MORE.

12:29 AM  
Anonymous Anônimo said...

Até que enfim mostrou um tino jornalistico, sem literatices forjadas...ufa!

12:19 PM  
Blogger ZÉ FERNANDO said...

John Pizzarelli encantando a turminha do "bom gosto" como se mestre fosse, Gerald Thomas posando pra tigüerada, velhinhas de desnecessários casacos de pele exercitando a sua boçalidade, lésbicas militantes/pseudo-radicais/metidas (ôps!) fazendo o papel que imaginam ser um dever fazer ... bem Porto Alegre

12:29 AM  

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