20.8.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: WIM WENDERS

Parte I

Eu tinha 17 anos, lembro muito bem. A sessão foi num domingo, no extinto Ponto de Cinema Sesc. Num belíssimo preto-e-branco, começava com um filme dentro do filme, rodado num hotel abandonado em algum lugar da costa portuguesa. Terminava com a impactante cena do diretor alvejado num estacionamento na Califórnia, apontando sua câmera no derradeiro tiro de revide contra a indústria que assassina a arte. Deixei a sala de projeção e fui caminhando em direção à obrigatória Osvaldo Aranha. Trazia comigo uma sensação estranha, mistura de deleite e melancolia. Estava feliz e triste ao mesmo tempo, seria possível? Eu me sentia desoladoramente vivo enquanto tocava os pés nas pedras frias das ruas de Porto Alegre. Tão sozinho quanto sempre estarei, meu cérebro ebulindo em milhares de idéias. No frescor dos meus teens, eu desfrutava uma espécie de epifania, a tal da vertigem da arte. Barato total que estimula, juntos, coração e mente.

Recentemente, ou seja, 17 (!) anos depois, revi O Estado das Coisas e pude experimentar a exata sensação daquela antiga noite de domingo. A mesma vertigem causada pela obra que Wim Wenders produziu em resposta a uma situação traumática: a experiência malfadada da parceria em Hollywood com o produtor Francis Ford Coppola, em Hammet. Durante estes 17 (!, não canso de me espantar) anos, procurei conhecer a filmografia de Wim Wenders e considero alguns de seus filmes os melhores que o cinema já produziu, incluindo o epifânico O Estado das Coisas e também Paris, Texas, que chega a ser covardia: é o filme mais lindo que existe. Há ainda os pequenos e não menos belos diários filmados, como Tokyo-Ga e Nick’s Movie, poemas de amor ao cinema e seus artesãos. Obras de arte singulares e confessionais que convergem passado e futuro: dialogam com a história do cinema e desenham formas muito diferentes do modelo industrial hollywoodiano. Desde os anos 1990 a filmografia do cineasta parece ter perdido um pouco da força, mas Wenders ainda é um artista que tem muito a dizer. Espero rever seus filmes que menos gosto para reavaliá-los. Wim Wenders merece todo o meu respeito. Em sua passagem por Porto Alegre, mostrou que grandes artistas também podem ser pessoas legais.

Falar sobre fronteiras parece apropriado para um cineasta que tem na viagem o grande tema, é famoso por rodar road movies e ainda traz na bagagem produções filmadas nos cinco continentes. Eu sabia que ele não apareceria por aqui vendendo livrinho de auto-ajuda. Wenders, que no final dos anos 1960 participou, ao lado de nomes como Herzog e Fassbinder, da retomada do cinema de seu país, é um pensador das imagens em movimento. Além disso é um humanista que sofre de otimismo e sabe que tem uma grande responsabilidade enquanto artista. “Uma alma germânica romântica”, como se definiu com sua fala mansa, marcada pela inquietação com o estado das coisas no mundo e o futuro dessa arte que chamam por aí de sétima.

Carlos Gerbase, que fazia a condução do evento, anunciou o tema da fala: Cinema além das fronteiras. Wenders apareceu em suas botas de cowboy, calça baggy e casaco de malha. Uma cabeleira cinzenta tapava metade do rosto. Trazia um pequeno note book embaixo do braço. Foi aplaudidíssimo, creio que a maioria dos presentes compartilhava do meu enorme respeito a ele (exceto uns idiotas que deixaram o celular tocar durante a conferência, feio, muito feio). Estacionou com as pernas abertas (deve ser problema de coluna, disse lá pelas tantas a senhora a meu lado) e se apresentou:

“Como vocês devem saber agora, meu nome é Wim Wenders.”

O mesmo jeito de falar que eu já tinha escutado em seus documentários. Aquele devanear sincero, com a serenidade germânica por trás das frases pronunciadas pausadamente num inglês muito claro.

“Antes de tudo, sou um viajante.”

Tornou-se viajante em função daquele misto de vergonha e culpa que aflige os alemães de sua geração. Nascido em 1945, nos escombros de uma Alemanha devastada pela Segunda Guerra, Wenders teve de deixar para trás um país estigmatizado pelo erro nazista. Viajar pra se encontrar.

“Às vezes você tem que viajar muito longe para se conhecer de perto.”

Faraway, so close. Durante a tarde, eu tinha participado da coletiva concedida no hotel em que ele estava hospedado. Não fiz perguntas, me contentei com as dos colegas. Acompanhava as respostas atenciosas do entrevistado, fazendo algumas anotações (coletiva + conferência = 15 páginas, preparem-se). Era uma saleta apertada e quente, e a entrevista foi longa. Wenders foi solícito e muito bem humorado (na medida, é claro, que um alemão pode ser muito bem humorado).

“Viajar se tornou minha profissão.”

E revelou que seus últimos 21 filmes foram instigados pelo interesse em descobrir lugares. A sensação de estar num lugar é a base de seu cinema. Antes de qualquer processo intelectual, é este “sense of place” que guia seu trabalho.

“Não tenho interesse por histórias que possam ser contadas em qualquer lugar.”

Na adolescência, os filmes foram “as primeiras mensagens de um território desconhecido”. A América dos westerns de John Ford e Nicholas Ray. A América do documentário de Fernando Solanas, que viu, matando aula aos 16 anos, em Oberhausen. Ou Terra em Transe, que pôs o Brasil em seu “mapa mental”. Também lembrou dos recortes de Brasília, colecionados pelo jovem que sonhava ser arquiteto. O Brasil, para ele, era esse lugar inventado por Niemeyer no meio da selva. Um país irreal.

“Eu não estava tão errado.”

Brincou e eu tive que concordar: Brasil, não dá pra acreditar.

Para Wenders, a sensação de estar num lugar está ligada a duas forças criativas: o pertencimento e o descobrimento. Há os cineastas do primeiro tipo, como Fellini, que jamais saem de sua terra de origem. E há os viajantes, como ele, que acreditam que os lugares têm suas próprias histórias pra contar. Ainda que suportem inúmeras metáforas, lugares são reais, a memória está gravada neles, em suas pedras, e a câmera capta o que acontece em sua superfície. Eles são o principal protagonista da obra wenderiana.

“Os lugares não podem nos esquecer.”

Falou abertamente de seu processo criativo. De como surgiram muitos de seus filmes, do equivocado A Letra Escarlate ao cultuado Asas do desejo. O motor criativo de todos eles é o senso geográfico que obceca o viajante.

Wenders tem pavor de turistas. Por mais que viajem, carregam sempre sua origem consigo. Em todos esses anos, o cineasta-nômade aprendeu a respeitar e aceitar as fronteiras. Vistas geralmente sob uma ótica negativa, encerram cercas, guerras e a limitação da liberdade. Mas elas também nos ajudam a preservar nossa identidade, atributo da maior importância para o artista. Identidade que tem a ver com escolhas, opções e limites.

“Só as fronteiras podem manter nossa identidade.”

Identidade que está ligada diretamente à experiência e ao conhecimento.

“Apenas as histórias pessoais interessam.”

A platéia parecia enfeitiçada pela fala de Wim Wenders. Ao meu lado, um casal suspirava em êxtase, grudado nos fones de tradução. Desisti das anotações e fiquei apenas ouvindo e olhando o homem. Pela primeira vez em todo o ciclo de conferências meu olhar era compelido diretamente para o orador no centro do palco e não para os telões nas laterais. Por trás dos pequenos óculos de fundo de garrafa, Wenders encarava a audiência com serenidade. Tinha nas mãos um pequeno pedaço de papel que manuseava entre os dedos, único sinal de que alguma coisa pudesse perturbar sua calma germânica.
(continua)

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4 Comments:

Blogger Aretha said...

Se inveja matasse... :)

2:11 PM  
Anonymous Anônimo said...

eu ainda não tinha lido teu blog, querido. que delícia! e que burrice a minha :(
te vejo amanhã.
luv
b

9:44 PM  
Anonymous Anônimo said...

ai, nada mais sexy que inteligencia. teu blog me deixou com tesao. bom te ler! beijo de londres

1:15 PM  
Anonymous Anônimo said...

Fantástico.
Adorei acompanhar o Fronteiras de forma anônima e remota.

Favor continuar.

Abraços.

6:42 PM  

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