31.8.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 17 - My own private Summer of Love ou As sobrinhas do Juca

Parte II

O Juca era um amigo do Ricardo que tinha uma fabriqueta de comida pra cachorro. Ele comprava tudo que o ser humano não consome num animal: pulmão de vaca, unha de galinha, cu de porco, triturava e embalava toda a caca e vendia pra criadores de cães das mais diversas raças. O detalhe sórdido da profissão do Juca é que um dos seus maiores clientes era o dono de um rodízio de pizzas na Cristóvão, onde toda semana ele descarregava de sua kombi fedorenta quilos da gororoba. Segundo o Juca, o dono da pizzaria tinha também um enorme canil. Via das dúvidas, ele desaconselhava as pizzas do rodízio, especialmente a sabor bolognesa.

Além da fabriqueta de comida pra cachorro o Juca tinha duas sobrinhas. Dicotómicas, faziam uma combinação explosiva. A mais nova era uma loirinha de olhos verdes e peitos grandes do tipo tímida. A outra, moreninha bunduda, fazia o tipo safada. Estavam sempre pelo bar, impregnando o ambiente de uma enorme tensão sexual. Uma noite apareceram com uma cartela de ácidos. Uma folha de cartolina colorida dividida em quadradinhos pontilhados que, juntos, formavam o desenho de um personagem de história em quadrinhos. O amigo dum primo de não sei quem tinha trazido de não sei onde e sabe-se lá por que tudo aquilo caíra nas mãozinhas das sobrinhas do Juca. Fiquei com uma parte com a desculpa de vender pros amigos, mas como não nasci pra ser traficante, acabei tomando tudo. Tudo não, minto. Vendi um, superfaturado pra cobrir os custos.

De repente, aquela droga até então-tão díficil de descolar estava na boca do povo. Todo mundo tomando ácido, if 6 was 9, ou vice-versa. Além das sobrinhas do Juca tinha o Reno. O Reno era um nerd fã de Funkadelic e fissurado em LSD. Ele trabalhava numa produtora de áudio, morava no Rio e duas vezes por ano aparecia na cidade. Sempre com os melhores ácidos da temporada, uns petardos que faziam com que as figurinhas com personagens de história em quadrinhos das sobrinhas do Juca parecessem desenho da Mônica. O cara lidava com coisa de gente grande: o Dragão Chinês, o Sol Asteca, o Ganeshi.

O lance é puxar a viagem, dizia o Reno.

E lá ia a gente pro Play Center em histeria conjunta, testando a paciência dos funcionários do parque de diversões (eu podia viver disso), girando de ponta-cabeça em geringonças piscantes, rindo convulsivamente, sacando tudo em telepatia. Minha grande parceira nessa longa viagem pelos limites da consciência, portas da percepção adentro, foi a mulher mais linda e louca que já pisou naquele bar. Síntese de divas italianas, Sophia Cicciolina: minissaia sem calcinha gritando na montanha russa, trêbada às nove da manhã segurando balões de gás coloridos parando o trânsito da Barros Cassal, correndo nua em orgias ao meio dia, estroboscópica ligada, corpos isolados da luz externa, a batida do ácido no ápice, trilha sonora: Sly and the Family Stone, trepando em colchões sujos atirados na pista de dança cheia de copos plásticos com restos de cerveja choca de ontem agora há pouco.

*

A pista de dança fervia ao som dos djs Black Moses e Rick Red Neck, pseudônimos inventados pra gente usar nos relises. Nas tardes de sábado eu e o Ricardo pintávamos na Sound & Vision, uma locadora de cds que mantinha a cena informada das novidades do distante mundo fonográfico. A Sound & Vision era gerenciada pelo Dudu, um cara gente finíssima que cantava (mal, por sinal) na Crushers, banda em que o Ricardo tocava baixo. A gente ficava na Sound & Vision ouvindo uns cds da Matador. O Diego "Doiseumindoiseuma" Medina estava sempre por lá com uma turminha que viria a ser a banda Os Massa. O Drégus vendeu seu passe de dj pro Circus mas a gente importou o Malásia pra auxiliar nos embalos de sábado à noite com a categoria de quem tem a cor. A Urro, tocando um samba atravessado from outter space, exorcizava o ambiente em sessões de descarrego sonoro. Júpiter Maçã, Graforréia Xilarmônica, Space Rave, Ultramen e Walverdes eram as pratas da casa. O Ricardo juntou forças com o Plato Divorak e eles produziram o Monterrey Popstock Festival, o evento reuniu uma pequena mostra do cenário alternativo nacional. O Tavares seguia fazendo seus tributos: o Dia dos Namorados Psicodélico, em que acompanhava, na guitarra, casais cantando em duetos; os Spiders, a banda glam que tocava Bowie, Iggy Pop e Lou Reed; ou a homenagem aos 30 anos do Sgt. Peppers. O show teve participação de Argonautas, La Infâmia, Júpiter Maçã e Moses, a banda em que eu cantava (mal, of course, sina de dono de campinho). A Grazi fez bonito cantando "Lucy in the sky with diamonds" com os Argonautas, combo de surf music instrumental liderada pelo Moreira, um cara que iria abandonar o roquenrol pela religião, deus me livre! O Ricardo e o Tavares mandaram muito bem na La Infâmia, tocando umas músicas casca grossa de executar como "She's leaving home". Eu, por minha vez, tomei uma figurinha das sobrinhas do Juca e destruí "A day in the life", Lennon se revirando no túmulo etc. O Júpiter não tocou "It's getting better" conforme o combinado, mas transformou "Mr. Kite" em dez minutos de pura psicodelia sônica, digna dos melhores power trios. Em 98 foi a vez do Álbum Branco.

Os afters se prolongavam até uma, duas da tarde. O sol assando a rua enquanto a gente seguia trancado lá dentro numa atmosfera controlada de fumaça de cigarro e cheiro de ceva azeda. O Júpiter era o centro solar daquela galáxia de loucos. Todo mundo gravitando em torno dele. Bebendo cachaça no Bar João por 18 horas consecutivas, amanhecendo na grama da Redenção com as roupas cobertas de folhas, falando inglês cockney fake, trepando em banheiros sujos, rodando em busca de cocaína no Simca Chambord laranja sem freio do Xurumelas. Era sempre tarde (ou cedo, dependendo do ponto de vista) quando trôpego ele entrava no bar, paramentado de Sargento Pimenta, mãos dadas com a louríssima Magra de mini-vestido vermelho e sem sapatos, os joelhos escalavrados de cair no chão e seguir arrastada pelo outro. Disparava pelo corredor puxando a boneca de pano de vestido vermelho e ia atormentando um por um até conseguir quantas doses de qualquer coisa pudesse extrair de qualquer um disposto a cair no papo infalível. Ou seja: todo mundo. Quase não ingeria sólidos. Quando o sushi-bar ainda existia (resistia?) a gente dava uns sushis pra ele comer no final da noite. Engolia dois sushizinhos e já perguntava se não tinha sakê. Nossas conversas giravam basicamente sobre dois temas: ele ou eu. Sendo que ele era geralmente o assunto mais comentado, seu egoncentrismo sobrepujava o meu. Ah, e música, é claro. Música, sempre:

Os anos 1960, eu dizia.

No que ele cortava:

Anos 2000, o lance é anos 2000.

Quando A Sétima Efervescência saiu, fazíamos audições consecutivas do disco, superchapados, descobrindo todos seus nuances. O adolescente cujo dilema existencial era a menstruação da namorada tinha crescido e se tornara um artista capaz de criar cenas de uma beleza cinematográfica (como a da ex dividindo o guarda-chuva pelas ruas de uma Porto Alegre de cenário da Nouvelle Vague). Ao violão, ele nos mostrava as músicas novas, umas bossinhas pra inglês ver tipo Um convidado trapalhão. E os shows que sempre começavam muito tarde, depois de horas apreensivas em que a gente nunca sabia se ele iria aparecer, o bar lotado. Até que alguém chegava da Osvaldo e dizia:

Tá lá no João.

E a Paola, a produtora, tinha que resgatar o astro, convencê-lo a fazer o show e sobretudo entupi-lo de café preto. Um tipo de pânico o atormentava antes das apresentações (paranóia é uma de suas caraterísticas mais marcantes) e o tormento só acabava quando enfim ele subia no palco e colocava a platéia no bolso. Fácil. Muitas vezes era impossível lidar com ele. Principalmente em questões envolvendo $$. Quando as cifras apareciam, se tornava mesquinho e ambicioso. A lealdade também não estava entre suas qualidades. Conhecendo-o melhor, entendi que o caráter de um artista nada tem a ver com a grandeza de sua obra.

O show de lançamento do A Sétima Efervescência aconteceu no Circus, o clube de nosso ex-sócio Marcos. Noite de gala no submundo. Tomamos as devidas providências (leia-se, drogas) e fomos pro show. Era sábado e combinamos de abrir o bar somente depois da apresentação do Júpiter, ninguém era bobo de perder essa. Vi o show bem na frente do palco, exatamente como naquela primeira vez em Esteio. Um artista ainda mais completo e surpreendente. No final, o baterista, o Glauco, chutou o instrumento, derrubando pedestais e microfones em meio à zoeira dos feedbacks, enquanto, envolto numa aura gasosa, Júpiter saía pros bastidores deixando a guitarra tombada em frente ao amplificador.

Assim que a música mecânica começou, dei ciao pros amigos, contrariado. Work to do. Tentaram me consolar dizendo que nos encontraríamos mais tarde. A batida do ácido tinha sido potencializada pela intensidade da apresentação. Puxar a viagem, como diria o Reno. Nada melhor pra puxar a viagem do que um show de rock daquele calibre. Fui caminhando pela Osvaldo, curtindo a beleza secreta da cidade que a droga ajuda a revelar. Me sentia um pouco triste, preferia ter ficado com os amigos. Qualquer trabalho é um trabalho, afinal.

Cheguei no bar e, não digo o universo, mas a filhadaputa da faxineira tinha conspirado contra. Maior sacanagem, não apareceu. Toda a sujeira da noite anterior empestava o ambiente: centenas de copos plásticos pelos cantos, bitucas de cigarro nos vãos do piso, garrafas com restos de cerveja, cacos de vidro. Não havia saída, tinha que encarar a limpeza. No que instantaneamente entrei em bad trip. Me sentia abandonado e traído. Todo mundo se divertindo enquanto eu ali, sozinho, varrendo um bar imundo. O porteiro chegou exatamente quando eu colocava o lixo pra fora, o que me fez crer que ele estava mancomunado com a faxineira. Todos contra mim. Demorou algumas horas até que amigos e clientes aparecessem. Tempo de limpar tudo e ainda tomar quatro doses de vodca curtindo a minha bad. O primeiro a aparecer foi o Juca, acompanhado das sobrinhas. As meninas perceberam a fragilidade do meu estado piscológico e vieram ao socorro com o que tinham de melhor (incluindo os peitões da loirinha de olhos verdes que afinal não era assim tão tímida). Depois todo mundo: o Júpiter, a Magra, a banda, um bando de groupies, as Little Sisters, o Xurumelas e seu Simca sem freio, todos os músicos da cidade plus duzentos bêbados sobressalentes. Cinco da manhã e a festa apenas começando. Às sete, dispensei o porteiro e tranquei o portão com corrente e cadeado. O ácido, no ápice. Se pediam pra ir embora, dizia que tinha perdido a chave. Pague para entrar, pule para sair.

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24.8.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 17 - My own private Summer of Love ou As sobrinhas do Juca

Parte I

Lá por 89/90 eu trabalhava num banco, morava com a mãe e gastava quase todo o salário em discos (o quase por conta do resto de salário que eu gastava em drogas). Dia do pagamento, final do expediente, batia o cartão ponto, saía zunindo pela Rua da Praia até a Galeria Chaves e me atirava dentro da extinta Pop Som. Numa dessas incursões saí com o primeiro do Stone Roses, recém lançado no Brasil, e outro álbum de estréia: The Piper at The Gates of Dawn. Eu conhecia o Pink Floyd através de uma prima hippie do meu pai que eu achava o máximo e teve bastante influência no meu gosto musical adolescente. Ela e o namorado eram ligados em rock progressivo: Yes, Renascense, Focus, Jethro Tull e, é claro, Pink Floyd. Eles também eram adoradores do Blow by Blow, do Jeff Beck, do infalível The Dark Side of The Moon, e do Physical Grafitti, do Led Zeppelin - aliás, a prima do meu pai era muito parecida com o Robert Plant, o namorado dela também, só que careca. Eram fãs de Roger Waters e David Gilmor mas nunca haviam mencionado Syd Barret. Quando escutei pela primeira vez o The Piper fiquei com a grave impressão que a prima hippie do meu pai e seu namorado tinham me enganado em algum momento, me ocultado alguma informação muito importante. O Stone Roses foi o próximo no toca-discos. A música que saía dos alto-falantes soou aos meus ouvidos completamente de acordo com a do disco anterior, lançado trinta anos antes. Como se os 90 fossem os 60. If 9 was 6, ou vice-versa. Fiquei fissurado por aquela década mitológica do século XX. O advento do cd possiblitou acesso a muitas daquelas gravações legendárias que eu conhecia apenas através de resenhas na revista Bizz. O universo conspirava a favor e uma mostra psicodélica entrava em cartaz no Ponto de Cinema, uns filmes dirigidos pelo Roger Corman com gangues de motoqueiros, boates em Sunset Strip e o Peter Fonda no elenco. Simultaneamente vinha toda uma literatura dando embasamento pra loucura: os beats (especialmente Burroughs, Burroughs, sempre Burroughs); O teste do ácido do suco elétrico, do Tom Wolf , livro-reportagem que narra as peripécias de Ken Kesey e seus Merry Pranksters a bordo de um ônibus carregado de drogas na América de 1965; e o Novo Testamento do ácido: Flashbacks, biografia do guru do LSD Timothy Leary. O proselitismo lisérgico do Doutor Leary e a prosa alienígena de Bill Lee me pegaram pelo cu. Fuderam minha vida pra sempre, como diria o Johnny Depp. Caí matando nas drogas. Na busca dos tais estados alterados da consciência, valia tudo, até borra de café. Eu acreditava que tomando todas aquelas drogas poderia voltar no tempo e viver os incríveis anos 1960 como o Timothy Leary, o Ken Kesey ou o Peter Fonda. Perambulava apertado nuns terninhos de brechó da João Pessoa dois números menor, achava os Byrds a melhor banda do mundo e deixava de almoçar pra completar a grana de um disco que eu queria muito. Uma coletânea Peebles, por exemplo. Pensando bem, por um disco desses eu nem jantava.

*

Sempre que eu falava nos anos 1960. O Júpiter me interrompia dizendo:

Anos 2000, o lance é anos 2000.

O sujeito é uma lenda deste rock que além de gaúcho é brasileiro. Na província de Porto Alegre, nos idos 1980's fundou duas das bandas mais adoradas por estas plagas: TNT e Cascavelletes. Clássicos de um gênero, esses grupos contrapondunham a sonoridade de Beatles & Stones a letras juvenis apelativas de qualidade duvidosa. Só nos 1990's, depois da passagem por um estrelato meteórico que incluiu música-tema de novela, apresentação no programa da Angélica, pelada no sítio do Chico Buarque (me disse uma vez que o Old Blue Eyes tupiniquim não joga um ovo, sina de dono do campinho) e o auto-exílio num quarto-e-sala qualquer no centro da cidade, com sorte com vista pro rio (que é lago), foi que o roqueiro Flávio Basso se reinventou numa persona psicodélica que enfim pode revelar toda sua potencialidade como compositor.

Senhoras e senhores: Mister Júpiter Maçã!

A chegada dessa estranha e sedutora figura nos assoprou novos ares. Vapores estupefacientes? Bafo de biter? Não saberia dizer. Novos ares, mais chapados com certeza. Vendaval de sensações. Beber, falar, tomar LSD, Syd Barret e os Beatles e, principalmente, o refrão com as pessoas loucas e superchapadas. Quando ouvi aquela música, saquei tudo. Aquele lugar do caralho que ele cantava era um lugar muito parecido com o Garagem (se bem que a Joy sempre dizia que lugar do caralho é a cueca). Aquelas músicas falavam de coisas que estavam acontecendo naquele momento, com referências que me eram caríssimas, de forma poética e bem humorada. Deliciosas canções pop que sintetizavam esteticamente muito do que a gente acreditava, cantadas por aquele arauto do Aqui e Agora, o espírito do tempo estava em suas mãos. Deve ter sido arrastado até nós pelas melodias que escapavam das frestas da velha casa, pelo chamado da loucura, uivando em frequência inaudível aos ouvidos sensatos, pelo faro do cio das meninas de cabelo curto e grudado na testa.

A primeira vez em que vi o Júpiter em ação ele ainda era Flávio Basso. Tinha 14 aninhos, nem fumava maconha direito. Fui com uns amigos da escola num evento com o auto-explicativo título de Fenajovem, em Esteio. Lojinhas de tênis, gurizada andando de skate, vinho barato em garrafas plásticas escondidas na mochila, ninfetinhas bronzeadas. Um pé no saco: eu não tinha dinheiro pra comprar tênis, não sabia andar de skate, o vinho tinha terminado e as minas sequer notavam a minha existência. Mas a idéia era ficar até o show das bandas e pegar o dernier metrô (como diria o Truffaut) pra voltar pra civilização. Não lembro das outras duas bandas que devem ter tocado antes do show dos Cascavelletes. Lembro daquele cara com uma mancha marrom no pescoço, coberto de pó facial, dançando como o Mick Jaegger. Também lembro do rodie que toda hora entrava em cena e desenrolava o fio do microfone do pescoço do vocalista. Lembro de um cowboy de mullets tocando guitarra e do magrão de óculos de mosca no baixo. A música era aquele roquinho grudento que meus amigos da escola ouviam em fitas cassetes gravadas de programas de rádio. Caminhei até a frente do palco e, de perto, fiquei curtindo aquele o show de rock que tinha me salvado o dia.

A segunda vez foi na Boca do Disco, a clássica loja do Professor Getúlio, o ponto mais quente pra se adquirir discos venenosos na cidade. Eu vivia lá. Meus turnos prediletos eram os finais de tarde e sábados sem ressaca. Torrava meu salário de bancário em cds, fazendo mil escambos com o Professor que me via entrar na loja com a sacolinha de cds usados e disparava:

Cuidado com a Polícia Federal.

Era o método que ele usava nas trocas: desvalorizar o produto alheio já de cara. Daí o Getúlio me deixava esperando por horas com a minha sacolinha de drogas. Ele atendia todos os clientes, falando sem parar com aquele monte de expressões que ele inventava ("pai deles" pra qualquer banda influente e pioneira; "venenos" pros discos essenciais como Forever Changes, A Love Supreme, Hunky Dory ou qualquer outro que desse "cãibra no cerébro"; "Peidones" era como o Getúlio chamava os Stones, os Mutantes eram "Peidantes" e assim por diante; o Axl Rose ele chamava de "Pato"; uma sacola como a minha, cheia de discos pra trocar, podia dar cana por "porte de drogas"). Em jejum, ficava olhando fixamente praquela coletânea Peebles esperando o Getúlio me atender. Nas horas perdidas na loja, com todos aqueles discos à espera de uma audição, tirando uma casquinha de um e outro, pescando dicas de colecionadores, caindo na conversa escolada do Professor, eu ia aprendendo. A alcunha é por mérito, o sujeito sabe o que faz.

No que estava lá eu na Boca do Disco aprendendo com o Professor. A loja nessa época era um corredor escuro cheio de caixas de discos pelo chão, capas de vinis raros pelas paredes e pilhas de cds em cima de uma escrivaninha ao fundo. Foi quando, na contraluz de raios solares que vinham da rua, o vi entrar. Uma mudança havia se operado nele: desempertigado, um jeitão de cantor folk andarilho, só faltava o violão nas paletas e a harmônica no pescoço. Bingo! Entrou e foi direto na caixa com a plaquinha da letra B, de Bob, e hoje penso que o que eu vi naquela tarde de sábado, iluminado na treva da loja do Getúlio, foi um homem em processo de transformação. Um homem se transformando num planeta. A construção de uma persona artística erigida à base de muito Dylan, o Bob, o mito.

A tarde já caía e a loja era iluminada apenas por uma lampadinha fraca pendendo de um fio no forro. Não havia mais contraluz quando vi o planeta em transformação saindo com o Planet Waves embaixo do braço. Tive um impulso de sugerir pra trocar pelo Blood on The Tracks mas fiquei frio. Inútil tentar interferir no curso dos astros.

(continua)

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23.8.07

Argumento para comercial de cerveja em tempos de Lei Seca:

O Ricardo e o Diego, numa komi cheia de gostosas e caixas de Polar, fogem para Santa Catarina.

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21.8.07

PULP CABARET

Say it loud:
I'm black, I'm proud!

O intrépido TRIO FRICTURA retorna na próxima sexta, 24/08, a mais uma aventura musical na pista do Cabaret do Beco (o inferninho nos altos da Independência). Dregus, Rafahell & Leo convidam para um safari sonoro de grooves balcânicos, funk carioca, space disco & british mambo.

Guest stars: FUNK SOUL BROTHERS, dizendo alto: sou preto, sou proud!

Ingressos a R$15

Say it again:

O quê? PULP CABARET
Quando: Sexta, 24/08, 23h
Onde? Cabaret do Beco - Av. Independência, 590
Quanto? R$15

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17.8.07

Homens Notáveis IV

Tony Wilson (1950-2007)

Sujeito exemplar pra esse tipinho de gente que leva a vida inventando festas, criando bares, produzindo bandas de rock, se virando no tal do jornalismo cultural. Partiu pra Grande Rave lá de cima no último dia 10, vitimado por um ataque cardíaco. Tinha 57 anos.

O nome Tony Wilson aparece pela primeira vez no livro de história da cultura pop em fins dos anos 70 quando fundou a Factory Records, gravadora que lançou Joy Division e, em seguida, New Order. Ele foi o motor por trás da cena que agitou Manchester a partir dos anos 80 e transformou a cidade num centro produção de música tão importante quanto, digamos, Seattle na década seguinta. Lá, produziu e lançou os Happy Mondays e fundou o Haçienda, QG dessa cena louca (Madchester foi como a cidade passou a ser chamada).

Nos anos 60, Manchester deu ao mundo os Hollies, os Bee Gees, o bluseiro John Mayall e os açucarados Herman's Hermits. No apogeu do punk vieram os Buzzcocks, o Joy Division e logo com a virada pra década 80 The Fall, New Order, The Smiths. Depois, Stone Roses e Happy Mondays estabeleceram de vez a cidade ao norte da Inglaterra como pólo da música pop mundial. O que aconteceu em Manchester lá por 1989 foi semelhante ao Verão do Amor, em São Francisco, em 1967. Um Veranico do Amor. Madchester foi uma revisão do movimento hippie, com suas roupas coloridas e drogas estimulantes.

E Tony Wilson estava lá, articulando, criando, produzindo. A vida do homem é coisa de filme. Tanto que se transformou no 24 Hour Party People, de Michael Winterbotton, um falso documentário em que Tony Wilson aparece em todas suas facetas: apresentando o seu programa de TV, o So It Goes; em busca da batida perfeita com o Joy Division; coordenando a loucura dos Happy Mondays. Uma cena é emblemática: em pleno Haçienda lotado, o ator Steve Coogan, no papel de Wilson, comenta da importância dos DJs na nova estrutura da música contemporânea. É isso: Tony Wilson foi um dos articuladores da fusão da música eletrônica com o rock. Pense na batida orgânica e ao mesmo tempo sintética do Joy Division. Em TODO o New Order. No balanço pré-New Rave dos Happy Mondays. Não existiria James Murphy e LCD Soundsystem não fosse Tony Wilson, resumindo.

Mister Wilson foi diagnosticado com câncer e chegou a extrair um dos rins, em 2006. Seu tratamento custava 3500 libras mensais. Ele lutava na justiça para que o medicamento (chamado Sutent) fosse disponibilizado gratuitamente através do serviço de saúde pública. Julgava um escândalo o fato de o governo financiar cirurgias cosméticas e não pagar o remédio que salvaria sua vida. Sempre foi um notório duro, a vida toda administrando os altos custos dos seus sonhos. Costumava dizer que alguns homens fazem dinheiro enquanto outros fazem história.
(Abaixo, um trecho da estréia de So it Goes, em 28 de agosto de 1976, com os Sex Pistols)


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13.8.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Entra em recesso momentâneo.

Até voltar a inspiração/disposição/transpiração e, enfim, o fim da história. Abaixo (e na falta de qualquer coisa melhor pra postar) vai o índice pros leitores se inteirarem do que vem por aí. Não perguntem quando.

Parte I – Early Years (1991-93)

1) Ab ovo
2) A casa assassinada
3) A primeira noite do resto de nossos dias
4) Ah, cês querem roque?
5) Banda desenhada
6) Um corpo que cai

Parte II – Hard Times (1994-95)

7) Pega ladrão!
8) Up against the wall
9) Rock fight
10) Mafaldita
11) Caixa acústica
12) Noite vazia
13) Cocaína dez real ou Não basta descer até o fundo do poço, tem que cavocar
14) Edu K perneta

Parte III – Renascença (1996-98)

15) Sushi!?
16) Ceva uruguaia
17) My own private Summer of Love ou As sobrinhas do Juca
18) Rock pauleira
19) Electronica
20) Cinemeando
21) Mais um corpo que cai

Parte IV – Finale (1998-2000)

22) A noite das garrafadas
23) Seu Antônio
24) Os porteiros da percepção
25) Bailão dos jovens
26) Titanic
27) Apocalipse now

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6.8.07

Pulp pra que te quero

PULP #55 - A original!

Comemorando 55 edições da festa mais divertida de Porto Alegre, o centenário (somando as idades do DJs) TRIO FRICTURA (Dregus, Leo e Rafahell) apresenta no próximo sábado, 11/08, no Bar Ocidente, sua deliciosa salada sonora de eletro-rock, tecno-polca e punk-funk.

No OX, ali do ladinho, festa-baile anos 50 com a banda OLD STUFF TRIO, interpretando os maiores clássicos dos anos doirados. DJs convidados: Billy Joe e Diego Cartier.

Ingressos a R$18, no local, ou antecipados a R$15 nas lojas Rouparia e Lei Básica (sempre valendo aquela cervejinha).

De nuevo:

O quê? PULP FRICTION #55
Festa-baile anos 50 com Old Stuff Trio
Quando? Sábado, 11/08, a partir das 23h
Onde? Bar Ocidente (João Teles esquina Osvaldo)
Quanto? R$18, no local, ou antecipados a R$15 nas lojas Rouparia e Lei Básica (sempre valendo aquela cervejinha).
Como? 1950's style


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A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 16 - Ceva uruguaia

Oito da noite, fim de um cansativo turno de trabalho, o do dia: compras, abastecimento, limpeza, passagem de som. Eu saía levando um pack de long necks, ou melhor long nets, como se diz. Fechando o portão e saindo com meu pack de long nets quando o Gomes, barbeiro no salão homônimo, comenta:

E essa cervejinha?

Pois é, Gomes, levando um pouco de trabalho pra casa.

Em outra ocasião um taxista tentou me convencer que dono de bar não podia beber. O mesmo que eu dissesse que ele não podia andar de táxi: papo furado. A cerveja está pro dono de bar assim como o táxi está pro taxista, é sua razão de existir.

No início - onde seria a primeira parte do livro - tinha tanta inflação que o preço da bebida subia diariamente. A gente alterava o cardápio todo final de semana. Aí veio o plano real com um dead-line pra trocar todo aquele dinheiro por um monte de moedas. Nessa época era mais barato comprar cerveja no supermercado do que encomendar das distribuidoras. Então a gente passava carregando engradados de cerveja de um lado pro outro, trabalho de estivador. Como a minha compleição física nunca foi adequada pra esse tipo de atividade, eu achava aquilo tudo um suplício. Não raro deixava uns engradados num canto escuro da salinha da frente pra não ter que carregar até os fundos. Um dia um cliente chegou dizendo:

Dois caras saíram carregando um engradado de cerveja, vocês tão fazendo alguma promoção?

Nem todo canto escuro é perfeito. Corri pra rua a tempo de ver um carro zunindo pela Barros Cassal. Mais um engradado na minha conta. Ia passar batido.

Promoção foi a vez que eu comprei várias caixas de Malt 90 no supermercado. Super promoção. Ou seja: o supermercado quase me pagou pra levá-las, afinal aquela era a pior cerveja do mundo. Na hora eu pensei: vou colocar lá no fundo do freezer, deixar pra vender no final de noite, sem opção, o povo vai beber tudinho. Me dei mal. Os clientes quase se amotinaram. Achei que iam depredar o bar, arrancar minha cabeça e deixá-la cravada num espeto. Tive que oferecer uma rodada pra todos. Saborearam felizes. De graça bebiam tudo, até uns drinks bagaceiros que a gente inventava, como o Jack Rabit's, uma mistureba à base de uísque vagabundo, xarope de qualquer coisa, cachaça e gelo.

Depois a gente começou a comprar de distribuidoras, até o dia em que o banco parou de cobrir nossos cheques. Eis que apareceu um uruguaio chamado Julio oferecendo Norteña a um preço imbatível. Caímos de boca (literalmente, contando a quantidade de cerveja que a gente bebia). De onde tinha surgido aquele moreno piadista e com pinta de picareta ninguém sabia. Mas ele era útil e isso era o que importava. Um oportunista oportuno.

Toda a semana, uma caminhonete fuleira costurava um espaço entre o mundaréu de carros que entupiam a Barros Cassal caótica de fim-de-tarde e descarregava à frente do velho portão do número 386 dezenas de caixas de cerveja. O motorista fazia o serviço enquanto Julio coordenava a operação, falava compulsivamente e acertava os detalhes ($) da compra. Os prazos eram bons. Ele também nos conseguiu umas mesas e um freezer enferrujado que fedia a peixe, com os quais (a mesa e o freezer, não os peixes) montamos um bar na salinha dos fundos, pro conforto dos bebuns que gostavam de ficar no pátio.

Completamente fora-da-lei (já que nosso alvará não otorizava) o pátio era um dos pontos mais legais do bar. Ficar por ali, curtindo um arzinho noturno no verão era o que havia de melhor no menu garageiro. Outra utilidade importantíssima era a função de refúgio em show de bandas chatas, além, é claro, de ser o local mais agradável pra se queimar uma gorda ponta. Sem falar nas paqueras, fodas e boquetes à luz da Lua, puro romantismo punk. O pátio era o must. O difícil era chegar lá em noites muito cheias. A gente tinha que passar se espremendo no estreito corredor do banheiro, um povo na fila, outro vindo do lado oposto, um monte de mão alisando a bunda da gente, uma esfregação do inferno. Que perigo.

De vez em quando a fiscalização aparecia pra ver se nossas atividades estavam em conformidade com o alvará. Nossa sorte é que os fiscais iam muito cedo, lá pela meia-noite, com o bar recém aberto. Aí era apagar a luz do pátio e eles nem suspeitavam que aquilo ali iria bombar algumas horas adiante.

Uma vez a gente quase se fudeu. Eu bebia uma cerveja com uns amigos, recostado tranqüilo numa cadeira perto do muro. No meio do papo, num lance assim completamente olhos de águia virei a cabeça em direção à entrada e, lá longe, na frestinha que eu conseguia enxergar do portão, vi dois sujeitos descendo de um carro branco estacionado na frente do bar, um deles carregava uma pasta embaixo dos braços. Saquei tudo. Olhei pros amigos e disse:

Vamos tomar uma ceva lá dentro?

Ah, não!

Aqui tá tão bom.

É, vamos ficar aqui.

Eu pago, insisti. Mas tem que ser lá dentro.

CERVEJA DE GRAÇA.

A frase ficou ecoando no ar como num solo do flautista de Hamelin e a rataiada veio toda atrás. O tempo de chegar no balcão que o porteiro apareceu correndo:

Sujou, fiscalização.

Os fiscais surgiram logo depois. Um baixinho com cara de mal humorado e um grisalho simpático. Mostrei a documentação. O grisalho parecia satisfeito e pronto pra ir embora quando o baixinho soltou:

E o pátio?

Às ordens, eu disse no maior sangue frio.

Levei os fiscais até lá. Mesas e cadeiras dispostas por tudo. Algumas garrafas vazias e copos de plástico com restos de cerveja. Olhei pro baixinho através de uma máscara rígida de cinismo, sorriso forçadamente natural entalhado no meio da cara de pau:

Fizemos uma pequena confraternização com os funcionários antes de abrir o bar.

Ele sabia que eu sabia que ele sabia que eu mentia. Mas não podia fazer nada.

Te pego da próxima vez, espertinho.

Deve ter pensando enquanto colocava a pasta embaixo do braço e o rabo entre as pernas.

Tempos de prosperidade aqueles. Breves, mais ainda assim tempos. O suficiente pra esticar o pescocinho e tirar um pouco a cabeça da merda. A Norteña era um sucesso de vendas.

Bárbaro, cerveza uruguaja!

Todos bebiam felizes. Menos eu. A Norteña não me descia. Tinha alguma coisa errada com aquela cerveja. Não fazia espuma, era turva, meio fedida. Dava dor de barriga, gases, enxaquecas medonhas. Eu fora. Passei a comprar minha cerveja no bar da esquina. Todo mundo bebendo Nortenã e eu na Brahma, comprada no Bambu's. That's Garagem.

Os clientes também começaram a perceber que alguma coisa estava errada com aquela cerveja. Começamos a ter um número enorme de devoluções, noite após noite.

Essa cerveja tá choca.

Como? Eu dizia me fazendo de surdo enquanto bebericava minha Brahma. Aí olhava o copo do sujeito com aquele caldo gelado e turvo, cor de ovo podre, e abria outra cerveja pra ele. Torcendo pra que não estivesse bichada também.

Chegou um ponto em que não deu mais pra vender a Norteña. Todos os clientes reclamando de dores de barriga, ressacas devastadoras, mau hálito. Noite após noite, caixas de cerveja devolvidas. Por fim, o Julio acabou depositando uns cheques pré-datados antes da data e aí nossa parceria comercial com aquele uruguaio picareta terminou pra sempre.

Graças à momentânea prosperidade nossos cheques voltaram a valer na praça. Aproveitamos o bom momento pra saldar as dívidas com nossos credores e a cerveja nacional voltou ao cardápio. Pra alegria geral da nação garageira. Made in Brazil-zil-zil! Ganhamos um freezer vertical novo em folha, daqueles de vidro pra gelar long net, e prometemos exclusividade pro nosso antigo fornecedor.

Um dia, durante uma dessas "reformas" entre aspas que a gente fazia de vez em quando, mexendo numa pilha de engradados esquecida no pátio, ao relento, encontramos meia dúzia de caixas de Nortenã. O prazo de validade já tinha expirado há dois anos. Minúcias. Enchemos um freezer inteiro de ceva uruguaia e o povo bebeu feliz. Brasileiro tem memória curta.

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1.8.07

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