22.5.08

A FANTÁSTICA FÁBRICA
Parte IV - Finale
Capítulo 22 - A noite das garrafadas

Um episódio histórico do Brasil Imperial empresta seu nome pro evento-chave na decisão de vender a PORRA DESSE BAR de uma vez por todas. Tipo: agora deu. Nervos em frangalhos. O Ricardo vivia tendo uns pesadelos terríveis envolvendo incêndio, desabamentos, pilhas de mortos. No dia seguinte, vinha contar o sonho-tragédia:

Tudo pegava fogo, todo mundo morria e tu ia algemado num camburão.

O único sonho catastrófico que eu tinha era o seguinte: numa noite de bar lotado, o equipamento de som dava pau eu tentava resolver o problema, sem sucesso, enquanto o público, sedento por música, berrava na pista:

Enforquem o DJ!

Um sonho recorrente no sono intranqüilo daquelas manhãs depois de horas de trabalho, como se nunca terminasse a festa. Eu não temia premonições nem assombrações nem qualquer coisa que não fosse tão concreta quanto o extrato da minha conta bancária sempre no negativo. Mas naquela fatídica noite, pela primeira vez, senti medo. Um medo tão espesso que congelou minhas veias e deu o sangue frio necessário pra lidar com uma situação que eu definiria facilmente como caótica.

Aconteceu lá pelo fim da década. Nessa época, a esquina da Barros com a Independência era um ponto de encontro de gente de todo tipo: desde uns mauricinhos que freqüentavam o Líder e suas respectivas patricinhas, até os vagabundos do Bambu’s, passando por todos os tipinhos que iam no Garagem. O tradicional Bar Líder havia inaugurado um anexo que, nas segundas, servia chope em promoção e aquilo ficava lotado de gente, a ponto da galera ocupar as calçadas e dali a pouco já aparecia ambulante vendendo cerveja em caixa de isopor:

Long net gelada!

Em plena segunda, haja boemia. Pra tentar fazer com que pelo menos uma parte daqueles bêbados entrasse no Garagem, inventamos a Segunda 1,99. O título é auto-explicativo. Pra reduzir os preços e não ter prejuízo, a gente reduzia também os gastos com pessoal e trabalhava com um contingente enxuto de: um segurança, Dj Shufle e eu. Valendo o mesmo pro Ricardo. A gente improvisava um P.A. pra economizar no aluguel do equipamento do Vilson e o 1,99 de cada entrada ia direto pros bolsos dos músicos. Ou pros nossos, dependendo do quanto eles bebessem.

Aconteceu de uma dessas segundas cair em véspera de feriado. Se o povo farreava mesmo tendo de trabalhar no dia seguinte, imaginei que seria conveniente chamar um segurança adicional. Com dois brutamontes na retaguarda, Dj Shufle e eu daríamos conta do resto. O Ninja era o nosso segurança nessa época, um rapaz de feições orientais, muito educado, chamado Alex.

Ninja, tu tem algum segurança pra indicar?

Em silêncio, o Ninja respondeu que sim.

Às dez da noite a esquina estava completamente tomada. As pessoas bebiam em grupos no meio da rua, atrapalhando o trânsito. Muitos ambulantes em volta:

Long net gelada!

Abri espaço na multidão até a entrada do bar. Encostado do portão, aquele imponente portão de ferro trabalhado em arabescos que remonta ao início do século passado, estava o Ninja acompanhado de um senhor que tinha idade pra ser o pai dele.

Esse é o meu pai, disse o Ninja.

E na primeira oportunidade a sós com ele, enquanto a gente empilhava umas caixas atrás do balcão, reclamei:

Porra, Ninja, tu indicou teu pai! Que merda, o velho não vai dar conta.

O Ninja não disse nada. O velho apareceu e eu perguntei o nome. Jorge, disse. Falava com a língua presa.

O evento da noite era promovido pelo Dionísio, o carismático vocalista da Produto Nacional: uma confraternização da comunidade reggaeira local que juntou centenas de pessoas com dread-locks, todo mundo subindo no palco pra dar uma canjinha. Muita gente. Dentro e fora do bar, portanto. Graças a um comprido cabo que cruzava o forro do casarão, desde o amplificador na cabine de som até uma saída atrás do balcão, Dj Shufle e eu podíamos manusear o nosso cd-player carrossel pra cinco discos com destreza, mesmo em noites movimentadas como aquela. Enfiei ali dentro cinco coletâneas Garage Hits que a gente tinha mandado fazer, pirateando cds de todos tipos e origens (emprestada, a maioria). Só interrompi o set do Dj Shufle quando o Dionísio avisou que o show ia começar.

A reggaeira comia solta. De repente o Fabinho surgiu esbaforido:

Fechou o maior pau lá na rua.

O Fabinho era nosso vizinho do prédio da frente e sempre aparecia pra dar uma força. O Fabinho adorava dar uma força, tanto que acabou virando gerente. Deixei-o tomando conta do balcão e fui ver o que acontecia. Do patamar da escada, espiei o que parecia ser uma zona de guerra. Tumulto generalizado. Uma pauleira envolvendo cinqüenta pessoas, no mínimo. Outras correndo, gritaria, a mulherada chorando. Uma viatura da polícia surgiu na curva da Barros Cassal e quando o carro entrou na área de conflito foi atacado pela multidão. Das janelas dos apartamentos, os vizinhos atiravam ovos, frutas, legumes e até garrafas. Sabiamente, Ninja e Pai Mei tinham fechado o portão.

Deixa assim por enquanto, disse pra eles.

Voltei pro bar pensando que ao menos ali dentro estávamos seguros. No balcão, uma cliente falava com o Fabinho, parecia contrariada:

Roubaram a minha bolsa.

Lastimei o ocorrido e disse que ia tomar as devidas providências, apesar de não fazer idéia quais fossem. Passou um minuto e veio outra garota:

Roubaram a minha carteira.

E depois vieram outras. E outras. Sempre o mesmo:

Roubaram.

Digamos assim, concomitantemente, tinha essa turma muy sospechosa infiltrada na negritude, uma gangue de bonezinhos que vinha pegar cerveja de cinco em cinco minutos. Muita sede: três, quatro, cinco cevas de cada vez. Era só uma garota chegar comunicando o furto, que logo depois vinha um deles comprar bebida. Uma situação delicada. Alguém teria que resolvê-la, gentilmente, convidando-os a se retirar, no mínimo. Fabinho no balcão e fui chamar os seguranças.

Na rua, o quadro de batalha campal adquirira contornos ainda mais dramáticos. Do lado de dentro, Ninja e Jorge bloqueavam o portão com todo o peso de seus corpos, impedindo que uma turba raivosa invadisse o bar. Dois trogloditas davam voadoras contra o portão e os hunos restantes atiravam garrafas na direção dos seguranças, as centenas de long nets (sic) que agora jaziam, vazias e letais, no meio fio. As garrafas voavam no ar, explodiam nos arabescos de ferro do portão e se esfacelavam em estilhaços, polvilhando com vidro quebrado os braços e as mãos da Família Ninja, que resistia bravamente. Perigo real. E duplo. A fortaleza sendo invadida e uma gangue atuando sob nossas barbas. E se depois de abrir todas as bolsas e surrupiar todas as carteiras a gangue resolvesse investir no nosso caixa? Pela quantidade que bebiam era lá que devia estar boa parte da grana dos furtos. E os bárbaros, o que fariam se invadissem a casa? Estuprariam nossas mulheres, decerto. Ainda bem que a minha namorada estava em casa, pensei. Alheia a tudo, a comunidade reggaeira seguia tocando no palco, chapadona. Olhei as horas: uma da manhã. Ainda havia muita noite pela frente. O lance a era controlar o pânico e esperar o tempo passar. Rezar, talvez. Que Jah nos proteja.

*

Os policiais da viatura apedrejada devem ter pedido reforços, porque não creio que Jah chamaria a polícia. Sirenes anunciaram a chegada espalhafatosa dos tiras que rapidinho dispersaram a multidão bêbada enfurecida. A rua ficou vazia. Vazia de uma maneira desoladora, com garrafas quebradas e manchas de sangue no chão. Do lado de dentro do portão envergado a chute, uma montanha de cacos de vidro dava a idéia do que tinha sido o ataque. Ao lado, o Ninja, mudo como sempre, mirava o nada com um olhar vazio de catatonia. O velho Jorge, que tinha segurado o tranco melhor do que eu poderia imaginar, retirava pequenos cacos de vidro dos braços ensangüentados. Depois dessa noite, ele foi contratado como segurança oficial, porque seu filho Ninja não quis mais trabalhar com a gente. A tal da ironia do destino.

O show terminou. Deixei tocando uma baladinha espanta-freguês e logo acendi as luzes.

Acabou a cerveja, menti.

Chamei o Jorge e fomos procurar a gangue mas ela já tinha caído fora. Ainda bem. Antes de fechar, um cara entregou uma carteira que tinha encontrado no banheiro. Haveria outras, pensei. Com sorte alguém ainda poderia recuperar os documentos. Tranquei o portão que custou um pouco a fechar, empenado por causa dos pontapés. Caminhei por aquela Barros Cassal do pós-guerra até um orelhão. Liguei pra namorada e disse que ia dormir na casa dela. Na cama (deitado em posição fetal, conforme ela me contou depois), chorei como uma criança assustada.

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4 Comments:

Blogger Leonardo Prado said...

TU TEM QUE ESCREVER TB SOBRE OS ANIVERSÁRIOS DA ULTRAMEN LÁ NO BAR. ERA FODA. OS MELHORES SHOWS DOS CARAS ERAM LÁ NO GARAGEM. E AGORA QUE A BANDA ACABOU, JÁ ERA.

12:24 PM  
Blogger Leonardo said...

Bah, cara, descobri o teu blog só agora. Mas a tempo de ler todas as histórias já escritas sobre o garagem. Parabéns pelo blog!
Linkado e comentado.

4:42 PM  
Blogger Entardecer na cidade said...

Viajante a história, e viajante a asemelhança com um festa que rolou em viamão, epoca em que eu organizava festas com um sócio, veio muita gente e saiu do nosso controle, rolaram duas brigas, quebraram um espelho no local, meu sócio tomou um soco no olho, quis sair armado pegar o cara, deprê total, ao amanhecer, muito cansado, abraçado a minha namorada na cama, nada mais a fazer senão chorar.

12:43 AM  
Anonymous Anônimo said...

acender nao tem S. só um toque. só se for ascender aos céus..

3:16 AM  

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