25.4.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 4 - Ah, cês querem roque?
Parte II

O primeiro show aconteceu exatamente uma semana depois da inauguração: Graforréia Xilarmônica. Foi um show barulhento, o PA do Vilson ainda se ajustando à acústica da velha casa. No palco – usando ternos e gravatas completamente demodês, shorts de educação física, chinelos de dedo e óculos escuros do tamanho de morcegos de asas abertas nas caras intencionalmente panacas – Carlo Pianta, Frank Jorge e Alexandre Ograndi comandaram por quase três horas, com a maestria dos grandes, a catarse coletiva que é um bom show de rock. Um calor infernal e os janelões abertos impunemente como se não houvesse vizinhos. Tenho uma cena muito nítida dessa noite, o Carlo suando feito um camelo febril, gotas brotando em cascata da cabeça e dos braços, escorrendo pelos dedos e molhando as cordas da guitarra. O Carlo tocando e chegando perto de uma janela aberta ao lado do palco pra se refrescar. O som amplificado pra todo o bairro ouvir, explodindo pra fora da janela que mais tarde seria lacrada pra sempre com espuma e compensado naval.

A platéia, umas cento e poucas pessoas se acotovelando em frente ao minúsculo palco, era composta por obstinados fãs da banda, virtuais garageiros e diversas figurinhas fáceis do under, os-de-sempre, gente sem nada melhor pra fazer na vida do que sair de segunda a segunda percorrendo a ronda noturna dos bares, galzinhas de vestido tubinho e bota de cano longo, roqueiros tatuados e cheios de couro & estilo, minas de roqueiros tatuados tatuadas e cheias de couro & estilo, grunges de camisa de flanela, poetinhas mal vestidos, nerds de óculo de grau e pulôver azul bebê, mulheres barangas de colã branco decotado, tipos invisíveis com roupas absolutamente ordinárias.

Vendemos toda a cerveja de nosso único freezer.

Graças ao respaldo que a Graforréia tinha com a imprensa local, o show obteve uma ótima divulgação, a custo praticamente zero – apenas uns poucos trocados pros cartazes A3 e pros panfletinhos em xerox, chamados também de felipetas, mosquitos ou flyers: a mídia garageira por excelência. O principal jornal da cidade estampou uma fotografia da banda, destacando o show de estréia na programação de final de semana. Desde cedo estava traçada a nossa trajetória de menina-dos-olhos de segundo caderno.

Depois que a Graforréia tirou o cabaço, os shows continuaram em série. Geralmente às quintas, sextas e sábados, mas também nas segundas, terças ou quartas, conforme a demanda. As principais bandas do guetinho cultural da província, desfilando uma após a outra em nosso pequeno palco. Guitar bands, bandas punk, de rock retrô, de metal, de funk-metal, hardcore, new wave, experimentais, instrumentais, com letras em inglês, bandas de blues, jazz, reggae, bandas-cover, bandas de outros estados, de outros países, de outros planteas, bandas efêmeras e outras como Ultramen, Space Rave, Walverdes e Comunidade Nin-Jitsu, que fizeram seus primeiros shows por lá e seguiram tocando por muito tempo, bandas de dois ensaios, bandas de nenhum ensaio, bandas que terminaram após seu primeiro show, bandas que nunca gravaram, bandas que ninguém sabe que existiram, bandas cujos integrantes abandonaram o roquenrol e hoje trabalham como consultores administrativos em firmas multinacionais, bandas só de minas, bandas de um-homem-só, trios, quartetos, quintetos, big-bands, Academias Chiquérrimas, Acretinice Me Atray, Aristóteles de Ananias Jr., Barba Ruiva & Os Corsários, Barkley House, Benedyct, Borboleta Negra, Brigitte Bardot, Chapman, Colarinhos Caóticos, Cosmonauta Spiff, Coupe de Ville, Cowabunga, Crushers, Dellips, Experience, Funkenstein, Hip Horse, La Infâmia, Lovecraft, Mais Umas Coisas, Maldoror, Marmanjados, Mequetreques Suplicantes, Molly Guppy, Moses, Motor Mojo Junkie, Musical Spectro, Nada Público, Narciso, Omstrons, Pére Lachaise, Psicopompos, Qual?, Smog Fog, Spiders, Tarcísio Meira’s Band, The Clones, Undisco Bones...

Um rol de bandas mortas.

Shows inesquecíveis que pouca gente lembra, dispersos nessa coisa enganosa chamada memória, meleca super seletiva de imagens, sons e cheiros, sabão escorregadio que pra ser agarrado tem que se moldar no formato da mão.

Lembranças tópicas de eventos superespecíficos.

Por exemplo, o solo do Frank Jorge no show do Frank & Plato no festival Monterey Popstock durante aquela música: “Rod Stewart é amigo do Roger McGuinn”. A guitarra tremendo, rangendo, zunindo, vibrando e absorvendo a atenção da platéia delirante como a flauta que hipnotiza a serpente mais pelo movimento que pelo som que produz.

Ou a testa postiça de Frankenstein feita de espuma que o Chico Machado usava nas apresentações dos Omstrons e as luzinhas e engenhocas eletroacústicas e brilhantes que deixavam o show com um jeitão de performance multimídia de puteiro do interior e os acordes dissonantes que não saíam de cinco mil alto-falantes mais dos seis que compunham o PA do Vilson.

Ou o show da Experience, power trio com a legendária dupla Mitch Marini e Schneider, uma parede de amplificadores importados expelindo Jimi Hendrix e Cream a todo o volume, participação especial de Luizinho Louie com seu enorme kit de percussão, o Luizinho quase chorando emocionado em perfeita sintonia com as ondas sonoras que saíam dos potentes amplis importados, batucando em transe toda a parafernália de tambores, pandeiros e sininhos, sem a mínima noção que ninguém ouvia nada porque o Mitch tinha dito que não precisava microfonar a percussão.

Mas tem microfone sobrando. Argumentava o Vilson, durante a passagem de som.

Nã, nã, nã, não precisa. Replicava o Mitch, de cantinho, fazendo um sinal de quem diz não dá nada, enquanto ao fundo o pobre Luizinho, na maior das compenetrações, edificava passo a passo sua complexa traquitana percussiva.

Ou o show da banda Pirâmide, de Santa Catarina, uma cousa assim mezzo progressivo, mezzo Iron Maiden – fase Powerslave – com direito a cenário de esfinges e pirâmides de isopor, palmeiras de plástico e tochas de celofane emoldurando o palco numa recriação patética e totalmente fundo de quintal de algo que só com muito esforço poderíamos chamar de Egito Antigo.

Ou o show da Psicopompos. Uma data especial, aniversário de uns poucos anos. Eles tinham uma música que chamava Garagem Hermética e dizia no refrão algo como “beber e cheirar no corredor”. A música virou tipo um hino interno e resolvemos convidar a Psicopompos pra fazer esse show especial, o bar superdecorado pra ocasião, centenas de balões dependurados sobre as portas e espalhados pelo chão, os balões espalhados pelo chão estourando durante o show e enlouquecendo os músicos da Psicopompos, banda poética, intimista e até meio chata como dá pra imaginar só pelo nome psicopomposo.

Ou o show da Luciana Pestana, uma roqueira folka de voz grave e feiúra tipo Janis Joplin que, terminada a apresentação fracassada com pouquíssimos pagantes, pega seu violão, diz só vou comprar cigarro e dá no pé sem pagar o aluguel do PA.

Ou o show da Space Rave em que o Edu, vocalista, guitarrista e compositor que nos próximos dez (quinze?) anos ainda montaria as bandas Hip Horse, Musical Spectro, Undisco Bones, The Clones, Celophanes, Planondas, Dirty, Autobahn e sabe-se lá quantas mais, o incansável, merecia uma medalha de honra ao mérito under, o Edu resolve colocar pólvora na frente do palco pra queimar em efeito noise-pirotécnico, no auge de um solo explosivo. Quando a coisa explode, explosão mixuruca, quase um peido, um fumacê medonho toma conta do ambiente com um fedor de enxofre ou qualquer outra coisa diabolicamente fedorenta. Toda a platéia se vira de costas instantaneamente e sai em direção à rua, mão no rosto tapando nariz e boca, tosse, tosse, tosse. E m seguida, a própria banda foge também, sufocada.

Ou o show da Brigitte Bardot, a banda do Ricardo e do Marcos, o Ricardo de vestido longo da avó tocando uma guitarra completamente desafinada. O Marcos desce da bateria cuspindo palavrões e atira as baquetas no Ricardo.

Ou o show da Mais Umas Coisas (outra banda do Ricardo e do Marcos), o Ricardo saindo do palco bem no meio de uma música, sem razão aparente, louco de qualquer coisa ou várias, arrastando nos pés um emaranhado de cabos de instrumentos e microfones, fios e pedais. O Vilson indo atrás dele puto da cara pra cobrar o prejuízo. O Marcos roendo as baquetas de ódio depois de uma cusparada de palavrões.

Ou o show da Benedyct, outra banda do Marcos. Ele me diz:

Corta o som que nós já vamos começar.

E eu esqueço completamente e quando termina a primeira música do show todo mundo escuta de fundo o som mecânico que não tinha parado de tocar, quer dizer, todo mundo menos eu, que chapado demais não escutava nada, a não ser uma música interna que tocava dentro de mim lá-lá-ri-lá e o Marcos larga a bateria, sai do palco e me fustiga com um olhar de fúria extrema muito cuspe verbal.

Ou um outro show dessa mesma Benedyct. A vocalista, a Gaby, dá três pulinhos performáticos pra trás e cai por cima da bateria, e do Marcos.

Ou outra envolvendo o Marcos, só que dessa vez num show da banda Qual?. Por alguma razão (grana ou trago, decerto), o Marcos se desentende com um dos caras da banda e lá pelas tantas, no furor da discussão, saca um tubo de gás lacrimogêneo (o Marcos era meio extremado, se é que isso existe) e lava a cara do cara com aquele jato corrosivo, borrifando o infeliz como quem extermina uma barata no canto da cozinha. O troço quase deixou o cara cego, o rosto queimado, uns pedaços de pele despregados da carne e balançando pra baixo. No final da noite o cara que quase perdeu a cara foi visto sentado no meio-fio, rindo e chorando ao mesmo tempo, chapado até os ossos de gás lacrimogêneo. Na semana seguinte foi preciso o Fabriano intervir e dissuadir a figura de nos meter um processo por dano físico e moral, o qual (Qual?) perderíamos na certa.

Ou a brincadeira de amigos premiando amigos: o Garagito, troféu de nome simpático de tão simplório constituído de uma boneca Susy de atacadão do centro, fixada num pedestal de gesso e colorida por imersão. Low budget tosco de gaulês com inclinações artísticas. O Garagito premiou, de 93 a 2000, alguns dos mais obstinados roqueiros da cidade (a escolha da categoria principal, a de melhor banda, ilustra bem a preferência dos garageiros: Graforréia e Ultramen levaram três Garagitos cada, no ano em que não foram premiadas foi a vez do meteórico Júpiter Maçã levar o seu).

Ou o advento dos tributos. Pra ocupar datas vazias, homenagear cultuados artistas mortos (ou não) ou apenas se divertir tocando as músicas prediletas, a gente inventou essa modalidade de evento. Geralmente no aniversário de algum herói do ronquerol. Quando morria alguém também era tiro-e-queda: a gente tributava logo em seguida. Por exemplo, na semana da morte do nosso papa junkie William S. Burroughs, quando armamos o William Burroughs Last Words, uma homenagem sincera com show de bandas, performances literárias, exposição e venda de livros e drogas. Ou no mês do suicídio (esse sim, tiro-e-queda) do último mártir do roquenrol Kurt Cobain, um acontecimento que abalou toda uma geração que acreditava na indissociação do rock e da camisa de flanela. A figura central nessa história dos tributos era o Tavares. Alcoólatra byroniano, com um estilo de tocar que sintetizava John Lennon e Paulinho da Viola – ainda que totalmente desafinado quando muito bêbado ou sóbrio demais – o Tavares tirava tudo de ouvido, na hora, sem frescuras, sem nem mesmo ouvir.

Kurt Cobain foi deste prum Nirvana melhor?

Chama o Tavares.

Um bando de saudosistas ligeiramente góticos e bichas morre de saudades dos Smiths, Echo, Cure ou qualquer merda dos anos 80?

Call Tavares.

30 anos de Sgt. Peppers?

Ô Tavares, cê não tá a fim de?

Ano que vem tem Álbum Branco?

Já combinei com o Tavares.

Ou ainda uma história clássica envolvendo este sincero narrador: é sobre um show que não houve. Episódio sinistro. Envolve também uma banda de Santa Catarina que eu não lembro o nome. Os caras ligaram de Floripa querendo uma data pra se apresentar. Expliquei as condições e eles reservaram uma quarta. Pensei que era conversa furada e que eles nunca se abalariam lá de Floripa pra tocar em Porto Alegre numa quarta. Uns quinze dias antes da tal quarta chega pelo correio uma caixa contendo centenas de cartazes da banda. Uns cartazes de xerox em folha A3 com o nome que eu não lembro, uma foto da ponte de Florianópolis e um espaço em branco pra preencher à mão com data, horário e local do show. Um pincel atômico vermelho estava incluído n o pacote. Daí lembrei de uma vaga conversa telefônica, alguma coisa sobre a gente colar os cartazes, e eu dizendo claro, sem problemas, me lembrava dizendo convicto, afinal, eles nunca se abalariam de Floripa pra tocar em Porto Alegre numa quarta. Por via das dúvidas, na fatídica quarta, convoquei o Vilson e ele prontamente montou o PA e ficamos à espera da banda de Floripa. Tomei o cuidado de esconder a pilha de cartazes que não tinham sido colados, muitos, quer dizer, TODOS, camuflados em meio ao caos da salinha dos fundos. A menos que eles tivessem algum parente ou amigo na cidade, ninguém em Porto Alegre sabia do show. Como de praxe, a passagem de som foi marcada pras cinco da tarde. Esperamos até as oito. Nada. Decidi fechar o bar e ir pra casa: show cancelado. O Vilson desmontou a aparelhagem, apaguei as luzes e na hora de trancar o portão pra ir embora, estaciona um carro cheio de gente e instrumentos e amplificadores.

A gente tá procurando uma vaga pra estacionar já faz quase uma hora. Diz o motorista.

Olha, sinto muito, mas o show foi cancelado. Tão pensado o quê? Se cumpre horários aqui.

Mas a gente veio dirigindo lá de Floripa com todo o nosso equipamento, vocês não podem cancelar o show desse

Podemos sim. Tchau.

Fechei o portão e subi a Barros Cassal pra pegar o ônibus. Os caras ficaram ali parados, entre perplexos e putos da vida, sem acreditar no que tinham acabado de ouvir. Não sei como um deles não desceu do carro e me rachou os cornos com uma guitarrada, o mínimo a se esperar diante de tamanha filhadaputice. É que na hora eu só pensava nuns filmes pra devolver na locadora. Dei no pé. Mas a consciência pesou. Uma barra. Puta remorso por tamanha sacanagem com os caras. Porra, eles tinham se abalado lá de Floripa pra tocar numa quarta em Porto Alegre, isso não se faz! Naquela noite, revirando na cama, penei a insônia dos injustos. Tempos depois apaguei o episódio da memória, com remorso e nome da banda junto. Já a banda, tenho certeza que lembra direitinho de tudo o que rolou, meu nome e fisionomia inclusos. Algum guitarrista à espreita numa esquina qualquer da Ilha, pronto pra me rachar os cornos com uma guitarrada, enquanto eu passeio lindo, leve e solto de bermuda e havaianas em pleno feriadão.

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23.4.07


PULP CABARET é a versão 'cabareco' da confirmadíssima Pulp Friction, a sua festa predileta. Acontece no próximo sábado, 28/04, a partir das 10 da noite, naquele inferninho-delícia chamado Cabaret do Beco. Na discotecagem o não menos delícia TRIO FRICTURA, apresentando sua seleção especial de hits matadores. Ingressos a módicos (nada a ver com mods, plis!) R$ 12.

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18.4.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCLATE
Capítulo 4 - Ah, cês querem roque?
Parte I

Limbo. Desde o chamado boom do rock gaúcho dos anos 80, quando brilhou uma luz no fim do túnel para a (se é que podemos chamar de) indústria fonográfica deste que é o estado mais meridional do país, nada de espetacular acontecia na cena roqueira de Porto Alegre (minto, a aparição do Kingzobullshitbackinfullefects do DeFalla foi algo espetacular, um disco fundamental na história do rock brasileiro e também a última vez que o DeFalla tocaria com formação e repertório decentes, o Edu em sua melhor forma, todo o gás e a malemolência funk, gritos irados à la James Brown e uns dreads de fio de lã colorida colados com bonder direto na cabeça). Passada quase uma década do tal do boom, a luz no fim do túnel parecia ser o trem vindo contra.

Bandas cover. Esse era o boom do início dos anos 90. Boom-dão. U2 Cover, The Doors Cover, Legião Urbana Cover, Deep Purple Cover, os nomes eram originalíssimos e os vocalistas, normalmente, uns clones mal projetados dos frontmen das bandas as quais tentavam imitar. Então o Bono Cover era meigordinho e usava uns óculos escuros iguais aos do Bono; o Jim Morrison Cover tinha um cinto de medalhões prateados, calça de couro, bota de caubói, cabeleira; o Renato Russo Cover de barba, camisa branca, óculos de grau e assim por diante. Uma epidemia, as bandas cover se multiplicando de forma alarmante e tomando conta dos escassos lugares que havia pra tocar na cidade, até que não sobrasse quase nada para sinceros roqueiros interpretando composições próprias.

Alguns poucos artistas e grupos da década anterior ainda persistiam bravamente seguindo o ensinamento do ditado gauchesco que diz “não tá morto quem peleia”. Júlio Reny arrebatava corações apaixonados com uma repaginação do seu antigo Expresso Oriente e, logo depois, com uma guitar band; Wander Wildner trocara Os Replicantes pelo podresco Sangue Sujo e os Replis contra-atacavam com o Gerbase assumindo os vocais; o Defalla chegava ao ponto alto de sua carreira, culminando com uma apresentação polêmica num enorme festival com nome de marca de cigarro, no Rio; remanescentes do TNT se erguiam das cinzas num formato poser à la Guns’n’Roses muy em voga no período.

No submundo cultural, sobrevivia-se graças a (como sempre) iniciativas modestas como festinhas em estúdios e apartamentos, shows em butecos desqualificados e uma ou outra tentativa em alguma casa de show com maior infra-estrutura – tentativas estas fadadas ao prejuízo total, mediante as condições aviltantes geralmente impostas pelas casas (aluguéis de PAs carésimos, porcentagens injustas nas bilheterias, custos com divulgação exorbitantes). O Ocidente, um marco da resistência alternativa, passava por uma fase dance, tendo ampliado seu espaço com uma enorme pista de dança e fechado suas portas pro rock: nenhum show rolava por lá. No circuito estudantil, uma banda formada por uns estudantes de biologia da UFRGS, a Ultramen, agitava uns showzinhos bicho-grilo no campus central. Alunos das belas artes promoviam umas festas malucas, porém bissextas, no último andar do Instituto de Artes, um clima de liberou-geral entre estudantes, artistas, músicos e os freaks de plantão que podiam assistir a shows de bandas total arty, tipo a Pére Lachaise, do sydbarretiano Plato Dvorak ou a Aristóteles de Ananias Jr., uma versão mais hardcore (no sentido atonal) da Graforréia Xilarmônica.

A volta da Graforréia também foi um acontecimento importante pra cena da cidade. A banda tinha lançado há alguns anos uma fitinha demo – esses eram tempos pré-cd – que teve boa aceitação entre o público ligado na produção roqueira local. A Graforréia tinha um pequeno séquito de fiéis que comparecia religiosamente a seus shows, cantarolando e dançando todo o repertório da banda, umas canções neo-Jovem Guarda cantadas num sotaque tri-portoalegrense e repletas de trocadilhos infames, piadinhas sexistas e sacadas poéticas nonsense.

Eis que, do nada, a Graforréia decide pendurar as chuteiras e abandonar os palcos.

Após uma breve pausa, de um ano, mais ou menos, a banda volta pro segundo tempo com uma formação mais enxuta (de quarteto passou a trio), velhos sucessos rearranjados, todo o gás, prontos pra agitar a cena novamente.

O fim de semana de estréia foi bacana. Não foi fracasso, o que já consideramos sucesso. Na segunda noite, umas pessoas que tinham aparecido na inauguração repetiram o dose, alguns amigos a tiracolo. Noitada tranqüila, sem tumultos. Diversão na medida pra uma noite que é quase a ressaca da noite anterior – trago forte na véspera. Dentre aquele pessoal que aparecia no bar pela segunda vez, uns clientes assíduos potenciais, começavam a surgir os primeiros e legítimos garageiros, um público fiel e ao mesmo tempo transmutável que passaria a freqüentar o Garagem fazendo chuva ou sol, seja no inverno ou no inferno, na seca ou na ressaca, em noites movimentadas ou naquelas completamente vazias, em que somente eles próprios se revezariam entre os espaços desocupados do bar, uns deitados semi-adormecidos no sofá da sala dos fundos, outros em pé no patamar da escada tomando um arzinho e papeando à vontade, outros dançando excessivamente animados na pista e ainda os representantes do tipo mais clássico de personagem boêmio, o bêbado solitário: com o cotovelo colado no balcão por cinco horas consecutivas (pausa pra mijada), secando garrafa por garrafa, sabe tudo o que acontece no lugar, quem está afim de quem, quem ficou com quem, quem cheirou cocaína, quem vendeu cocaína pra quem cheirar cocaína, ele é o cara que salva o caixa em noites fracassadas, não come ninguém e chama o barman pelo nome. É o verdadeiro herói da noite. Anônimo, como deve ser o herói que se preze.

A seguir, alguns garageiros da primeira fase:

Drégus. Por um bom tempo foi o nosso Cliente Número 1. Graças a um descorno antológico que durou uma eternidade (love hurts, indeed), o Drégus mateve uma conta que, ao final de cada mês, praticamente cobria o aluguel da casa. Eu passava no banco em que ele trabalhava todo santo quinto dia útil do mês, pegava o cheque e depois repassava direto pra imobiliária. Nunca foi tão fácil. O que nos leva a uma das mais tristes constatações acerca das relações sócio-econômicas em nossa sociedade: é preciso um se fuder pro outro se dar bem. O Drégus apareceu com sua turminha na primeira noite. E na segunda, terceira, quarta e assim ad vomitum. De cliente passou a DJ, colocando som em festas, inclusive na concorrência. Sua canção-assinatura é I will survive, na voz de Tony Clifton.

Otto Guerra. Cartunista, cineasta e colecionador de ninfetas.

Cris e Guillermo. Namorados e artistas plásticos. O Guillermo era argentino e tinha um trabalho de pintura muito massa que deixou registrado em nossas paredes. A Cris era uma morena magrinha e pilhadíssima com uma voz estridente, adorava Sam Cooke. Uma vez ficou puta da cara porque eu disse pra ela a Factory é aqui, apontando pro papel laminado sujo e rasgado que cobria a parede dos fundos do palco. Vivem hoje nos States. Um em Nova York, a outra em Los Angeles.

Joy. Uma loira vamp e louca. Três em Uma: linda, rica e inteligente. Cocainômana empedernida.

Orson. O nome dele era Arthur, mas como era a cara do Orson Welles, virou Orson, de cara. Adotou o pseudônimo e viveu feliz pra sempre em meio à fauna (faina) garageira. Arthur era um pacato controlador de vôo no Aeroporto Salgado Filho.

Suzy Dolls. A mais célebre das groupies porto-alegrenses, imortalizada na canção do DeFalla.

Jimi Joe. O nosso Lester Bangs.

Teminha e Sonsinha. Duas meninas (hoje nem tanto) fiéis garageiras desde o começo. Eram irmãs.

Andréa e Carol. Idem. Só não eram irmãs. Amantes, i guess.

Márcio Ventura, o Rei Magro. Produtor cultural e vocalista da Nada Público – que, como o nome já indica, sempre padeceu por falta de... O Márcio inventou juntamente com o Fabriano (outro desses grandes músicos que abandonou o roquenrol) o Hermético Programa de Garagem, um show de variedades que estreou nos primeiros meses de 93, e agregava música, performances, esquetes, entrevistas, sorteios e o que mais pintasse. Mais tarde o Márcio se envolveu numa briga, foi expulso do bar e acabou virando persona non grata (por pura implicância, admito). Depois virou persona grata de novo e seguiu promovendo um monte de eventos no bar.

João Olair, vulgo João Palmeira, vulgo João Smog, vulgo João Vulgo. Baixista da Smog Fog, uma das bandas mais injustiçadas da história do rock gaúcho. Os caras nunca alcançaram o reconhecimento que mereciam. Eram geniais. Sozinho, o João era apenas um notório pentelho com uma cabeleira à Bob Smith (daí o Palmeira do vulgo) que mais tarde se tornou o operador de som do bar. Mesmo sendo um chato, falador compulsivo e bêbado invertebrado, pegava várias minas.

Big Ant. Um negão desdentado, malandro pra caralho, que vendia a cocaína mais malhada da cidade.

Fabinho. Morador do Edifício São Paulo, um prédio quase em frente ao bar. Com o passar dos anos, o Fabinho se tornaria o nosso braço direito. Coitado. Tudo sobrava pra ele: esperar a cerveja, fazer a limpeza, quebrar um galho no balcão, dar um jeito na elétrica. Valeu, Fabinho!

Gabardine. Um caso triste. Essa figura apareceu logo nos primeiros dias e a gente presenciou a trajetória descendente do cara. No começo era apenas um alcoólatra chato. Usava sempre uma gabardine creme. Aos poucos foi ficando um alcoólatra chato violento. Filão de cerveja, já não tinha dinheiro pra comprar sua própria bebida e uma noite agrediu uma menina depois de ter tentado tomar o copo das mãos dela. Foi expulso do Garagem e mais tarde, naquela mesma noite, vimos o Gabardine desmaiado no vão da escada que dava acesso ao bar, um buraco onde todo mundo mijava pra evitar a fila no banheiro, a gabardine creme encharcada e um cara em pé mijando em cima dele enquanto outro dizia mira da cara. O Gabardine sumiu completamente depois dessa noite, até que um dia eu e o Ricardo vimos a figura no centro. Tinha um olhar perdido e não nos reconheceu quando pedia a esmola, uma mão aberta e esticada pra frente e a outra na altura do peito, fechando a gabardine sem botões, preta de sujeira.

A gente tinha feito um acordo com o Vilson, um cara que tocava bateria em várias bandas e era a cara do Mick Finn, o parceiro do Bolan no T.Rex. O Vilson tinha um estúdio de gravação com equipamentos razoáveis (em termos de qualidade e bolso) e nos alugaria um PA por uma quantia justa, que seria paga com uma pequena parcela da bilheteria, o equivalente a 30 ingressos. O Vilson seria também o nosso operador de áudio oficial. Com um PA decente, capacidade pra 150 pessoas (mais tarde, com todas as mudanças e reformas, esse número quadruplicaria) e uma proposta justa de divisão dos lucros: 100% da bilheteria pros músicos, menos o custo do som. Óbvio que todas as bandas da cidade iriam querer tocar no Garagem.
(continua)

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11.4.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 3 - A primeira noite do resto de nossos dias
Parte II
Apenas uma semana pra inauguração e o bar ainda estava uma bagunça, cheio de detalhes pra resolver. Faltando a instalação do som e da luz, sem a decoração “entre aspas”. Só o piso novo, o palco e o balcão prontos – o que já era um começo. O freezer também já tinha chegado, mas não tinha sido ligado porque faltavam alguns “retoques” (total “entre aspas”) na elétrica. Como que estabelecendo um padrão que seria seguido até o fim da nossa, digamos, administração, a reforma iria terminar a apenas poucos instantes da festa começar, o primeiro cliente entrando no casarão e ouvindo ecos das marteladas no derradeiro prego. Sempre assim. Mas de qualquer forma havia prazos e um fim de semana antes era o que a gente tinha estabelecido pro início da divulgação e da distribuição dos convites – o que, por sinal, também tinha sido um parto.

Os convites deixa comigo. Dizia o Ricardo. Eu faço o design e a gente imprime na gráfica de um amigo meu, ele faz um preço bom. O cara é praticamente meu irmão.

O design (que também poderia vir “entre aspas”) era a coisa mais minimalista do mundo. Um cartão retangular em papel cuchê cinza, com o nome do bar escrito em azul escuro com umas letras distorcidas.

Dois dias antes do dead-line e o cara da gráfica nem sinal. A gente ligava e ele não atendia. Pior: o pagamento tinha sido adiantado.

Não se preocupem. Dizia o Ricardo. O telefone dele deve tá com problema. Amanhã eu passo lá e pego os convites. Fiquem tranqüilos, o cara não ia nos sacanear. Ele é praticamente meu irmão.

Um dia antes do dead-line e o cara da gráfica tinha sumido com a nossa grana.

Filha-da-puta. Dizia o Ricardo. A mãe dele disse que faz dois dias que ele não aparece em casa. Sacana, era praticamente meu irmão.

O Ricardo descobriu uma outra gráfica. Por sorte, de um completo estranho. O cara tinha uma gráfica bem ao lado da do praticamente irmão. Desesperado, o Ricardo entrou na gráfica do completo estranho e foi tão incisivo que conseguiu que ele aprontasse os convites pro dia seguinte, ou seja, no dead-line. Tiveram que ser impressos num papel mais vagabundo porque a grana já tinha saído com muito esforço, puxada do fundo de nossas contas (poças) bancárias. Moral da história: praticamente nunca confie em praticamente irmãos.

Então era sexta à noite e eu estava na esquina do Lola, na Osvaldo com a João Teles, distribuindo convites da festa de inauguração. Passou a Bia, de camisola branca e coturno de milico, indefectíveis olheiras.

E aí Bia, tudo bem?

Mais ou menos. Eu tentei me matar hoje.

Como assim Bia?

Eu liguei o gás e coloquei a cabeça dentro do forno.

Tá e aí?

Tava muito demorado e eu saí pra tomar uma cerveja. Deixa pra outra hora.

Bom, se não rolar até sexta, toma esses convites e pinta lá na inauguração do meu bar.

A Marion também perambulava por ali naquele fim de semana. Toda de preto, tatuada.

Oi, Marion, olha uns convites pra inauguração de um bar novo, bem bacana.

Legal, consegue mais uns que eu vou com uma galera.

E assim os convites foram se espalhando pela noite.

Mais tarde encontrei o Régis e a Liana (uma mina que depois se mudou pro Velho Oeste, Mato Grosso, eu acho). Depois de umas cervejas, tirei do bolso as chaves da casa e mostrei pra eles, sacudindo na ponta dos dedos.

Cês querem conhecer o bar?

Era uma noite quente de primavera. Dentro do casarão, a única fonte de luz era uma lâmpada ligada a um rabicho que levamos pro lado do palco. O ambiente era caótico, tábuas e tijolos, serrote, fios, pregos e martelo, os indícios da obra espalhados pelo chão. Encontrei, pela metade, uma garrafa plástica de cachaça do Popeye e servi um pouco num copinho de extrato de tomate. O Popeye também tinha um radinho e o Régis ligou-o e sintonizou na Continental. Fechei um baseado e ficamos conversando, os três, ao som daquele Fabuloso Som dos 70's: Billy Paul, Donna Summer, Wings, Barry Manilow. Contei como seria o bar e todas as nossas idéias de festas e shows e precisamos agitar essa cidade que não tem um lugar legal pra gente se divertir e ver um show e dançar uma música boa e eles ouviam atentos, a cachaça plástica do Popeye pegando forte, a fumaça e o som do radinho se espalhando lentamente pelo casarão vazio e escuro. Pensei se tudo der errado eu não me importo, já está valendo a pena. Eu sabia que não ia ser um comerciante pro resto da vida, mas a verdade é que não encarava a minha empreitada como um comércio: era um estado de espírito, a tentativa de realizar aquela obra de arte que eu queria fazer mas não sabia como nem quando e muito menos qual. Tinha a ver com acreditar em certas coisas, muito mais que com ganhar dinheiro vendendo cerveja, e era isso o que eu pensava e falava pro Régis e pra Liana naquela noite quente de primavera e também sobre tantos outros planos (sonhos) sentado no palco do bar que eu inauguraria em uma semana, quando subitamente percebi que eu era feliz e sabia.

O trabalho do Popeye tinha terminado, mas o nosso estava longe de acabar. Pegamos pesado na semana-reta-final, martelando, pintando, limpando, arrumando, decorando “entre aspas”. Glamour nenhum, só trabalho braçal.

Passou a semana e chegou a grande noite. Tirar o cabaço. Todo mundo nos maiores penteados & terninhos & vestidos. A staff preparada e bem passada quem nem criado de casa de verão de lorde esperando a chegada do patrão.

A propósito, algumas palavras sobre ela, a staff. Nossa Armada Brancaleone do trago:

Narciso era o DJ. Mas como disse um amigo, é colocador de som mesmo, apertador de play. Se bem que naquela época tinha um prato e discos de vinil, mas sem criação, scratches, mixagens e essas pirotecnias. Anti-DJ. Era dar play e só e às vezes até isso era muito. Mas eu era o dono da (dos) bola (discos).

Rick Red Neck e Marcos Murruga. (In)Gerência. No início eles não botavam som. Ficavam solamente administrando. Uma beleza, administrar era também encher freezer, resolver problemas, carregar peso. Colocar som era só colocar som, dar play praticamente, às vezes nem isso. Mas não durou muito. Um dia eles socializaram o trabalho e como eu era apenas 33,3 contra 66,6 (a Lucianinha nunca opinava) fui voto vencido. Não fui baixo a ponto de: os discos são meus. Não. Viramos todos DJ-administradores. Mas voltando aos 66,6, era notável o quanto contrastavam em temperamento e personalidade: MM, o Pequeno, era algo como uma raposa (dada a ataques esporádicos de fúria) em esperteza e malícia, enquanto Ricardo, o Ruivo, era ingênuo, franco e pacífico, características que iria abandonar com o tempo, depois de uma vida de agruras – problemas financeiros, mulheres histéricas, drogas pesadas, fiscais do imposto de renda e da vigilância sanitária no encalço – transformando-o num machista durão, implacável polvo capitalista.

Lady 16,65%. Além de mentora intelectual, divulgadora e produtora, Lucianinha se dividia entre o caixa e a cozinha (que consistia numa folha de compensado sobre dois cavaletes com alguns vidros de maionese, mostarda e catchup, azeitonas e salame, e uma geladeira com outros adereços que servissem tira-gostos rápidos, comidinha de bêbado, que com o tempo até os bêbados parariam de comer, terminando a cozinha desativada até o episódio sushi-bar, mas isso já é um outro capítulo). Na cozinha, Lucianinha era habilidosa no preparo de picadinhos com molho de maionese, mostarda e catchup. Mrs. Murruga também não escapava da limpeza, assim como toda a staff, DJ incluso.

The Little Sisters. Uma era (minha) irmã e a outra praticamente. Amigas inseparáveis. Ambas menores de idade. Uns quinze cada, creio. A Flavinha e a Virgínia. Típico exemplo do nosso grau de irresponsabilidade, não bastasse os menores que iriam freqüentar o bar. Criaram lindos objetos que iriam marcar a decoração do Garagem em várias épocas: os peixinhos de tecido que ficavam na parede atrás do bar, a tabela de preços forrada de papel laminado e botões antigos, a aranha de fio preto e durepoxi na porta do banheiro das mulheres. Foram também as piores garçonetes que o bar já teve. Bebiam mais que vendiam. Na hora de pagar o salário, a gente dizia: vocês nos devem trinta, cada uma. Bebiam por noite quase duas vezes o que ganhavam por noite. Uma vez compramos uma garrafa de vodca importada pra qualificar o nosso bar. Enxugada na primeira noite. Pelas irmãzinhas.

Seguranças não havia.

Meio minuto antes de abrir o bar. Tudo OK (pros nossos padrões, ao menos), exceto pela tinta óleo da pintura Pollock de última hora das mesas e cadeiras que não secou a tempo e mancharia a roupa de alguns dos nossos primeiríssimos clientes, também inaugurando um certo padrão de expectativas: vá ao Garagem e tudo poderá acontecer com você, desde se dar bem no banheiro até ter sua calça predileta manchada irrecuperavelmente (ou quem sabe levar um alto-falante na cabeça: isso aconteceu com uma amiga, dançando feliz na pista quando o último de uma pilha de quatro alto-falantes despencou em cima de sua pobre cabecinha, levous uns pontos e na outra semana já estava lá de novo, dançando mais pro meio da pista, e isso me lembra uma vez que um globo de espelhos caiu em cima da cabeça de um cara bem no meio da pista, mas aí já é digressão por demais). Eu gelava de expectativas, frio na barriga, cheio de dúvidas, pensando num mundaréu de coisas que poderiam acontecer, turbilhão de emoções.

Será que a gente vai conseguir segurar esse tranco?

Pagar todas as contas?

Aluguel?

Luz?

Fornecedores?

Funcionários?

E se não aparecer ninguém na primeira noite?

A gente faz o quê?

Fecha o bar no dia seguinte?

Se mata?

Será que eu me meti numa roubada?

E se a mãe tinha razão?

Com que cara eu fico com o Bernoto?

E se eu mato o Bernoto?

Em meio à ansiedade, a excitação e as inúmeras cervejas, a noite transcorreu sem maiores transtornos. Nenhum escândalo que coroasse de estréia o nosso destino escandaloso. Nenhum acontecimento bizarro. Talvez apenas uma ou outra bolinação mais intensa, algumas droguinhas pesadas e um prazer sincero em dançar ao som da boa música.

Nosso freak show estava apenas ensaiando suas primeiras coreografias.

E a noite permaneceu na lembrança como uma bolha azul de vagas recordações, vaguíssimas. Basicamente colocando som na cabine do DJ, que era do lado do palco, vendo entrar o Luke, um carinha que tocava guitarra superbem, mistura de Tom Verlaine e Roger McGuinn, mas que acabou abandonando o ronquenrol (como muitos daquela época), o Luke e sua turminha foram os primeiros. Depois já estavam todos os amigos e alguém disse bota um som mais animado (porque eu ainda fazia um clima lounge de aquecimento) e aí comecei a esquentar a pista e as pessoas se levantaram das cadeiras com as calças manchadas de tinta e foram dançar e a coisa pegou fogo.

Lembro também do Six chegando com a namorada.

A festa tá ducaralho. Dizia o Six, cabeleira despenteada, jaqueta jeans e um jeitão de Jim Morrison.

E o som tá muito legal. A namorada (a Bia, uma que se mudou pra Londres e hoje deve ser vegetariana).

O Six perguntou se eu não queria fumar um com eles.

Só deixa eu colocar um disco antes.

Coloquei uma coletânea dos Sex Pistols, aquela que tem um cocô na contracapa. Saímos do bar e sentamos na frente do casarão, bem na porta da lavanderia. Um baseado importante na minha vida. De volta à pista, o pessoal dançava a faixa cinco com a mesma empolgação da faixa um, mas quando cheguei na cabine bateu um pânico horrível. Eu detestei estar chapado. A maconha tinha me deixado completamente descoordenado, confuso, paralisado. Dar um simples play se tornou uma coisa complicadíssima, os botões e as luzinhas do mixer terrivelmente ameaçadores. Mas no fim foi happy end. Consegui controlar a paranóia e os clientes dançaram felizes. Vendemos o freezer inteiro, as garçonetes não vomitaram muito, nenhuma briga, clientela satisfeita. A sensação do dever cumprido. Recordações de alegria, otimismo e esperança, boiando difusas numa grande bolha azul. Até aqui tudo bem.

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O MINI-MUNDO SEM COMERCIAL, invenção do quarteto Scott, Murilo, Celsinho & 4Nazzo, acontece hoje à noite no Elo Perdido. Um mundaréu de escritores e músicos fazendo barulho, eu incluso. Às 8, grátis!

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9.4.07


Sábado tem mais uma edição da PULP FRICTION, cheia de atrações bacanas como o cultuadíssimo Tony da Gatorra, DJs convidados e ainda o espetacular TRIO FRICTURA.
Dia 14, a partir das 23h. Ingressos a R$ 18 (valendo uam cerveja)

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4.4.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCLATE
Capítulo 3 - A primeira noite do resto de nossos dias
Parte I

Não havia tempo a perder. As reformas começaram assim que pegamos as chaves da casa. Logo no início da obra, constatamos que as condições do imóvel eram piores do que supúnhamos, mas (o pior d)o pior era que não haveria dinheiro pra arrumar tudo. O Ricardo tinha conseguido um semi-acordo na empresa de óleo de soja, o Marcos dispunha praticamente da metade da grana inicial e eu tinha pego uma mixaria pelos três anos de banco.

Então fizemos o mínimo, apenas o estritamente necessário pra fazer o bar funcionar. Trocamos o piso das três primeiras salas da casa, onde seriam o palco e a pista de dança. Demolimos duas paredes pra abrir mais espaço, construímos um palco e um balcão de madeira e compramos alguns metros (não muitos) de fios e um disjuntor. O resto ficou como estava. Nosso pedreiro, indicado pelo Marcos (cuja família tinha a tradição de construir as próprias casas, todas no mesmo terreno) ganhou o apelido de Popeye. Era queixudo e banguela, com uns braços fortes de estivador, só não era caolho nem fumava cachimbo. Durante um dia de trabalho bebia em média uma garrafa (plástica) de cachaça. Como a maioria dos pedreiros, tirava a sesta depois do almoço. Todavia não fumava maconha.

Enquanto Popeye e seu Assistente, um guri preguiçoso de uns 15 anos, sobrinho ou neto, i guess, faziam o trabalho no QG, nós atacávamos por outros fronts: compra dos equipamentos (freezer, ventiladores, aparelhos de som e luz etc.), contatos com os fornecedores, diagramação e impressão dos convites, redação dos relises de divulgação. O nome Garagem Hermética já era consenso. Foi fácil. Fuçando numa caixa cheia de livros, revistas e histórias em quadrinhos, dou de cara com uma edição colorida da obra prima do Moebius. A Garagem Hermética, satélite flutuante de portas e possibilidades infinitas, caixote surrealista de alucinações sci-fi, buraco cósmico de incoerências e sonhos coloridos. A palavra garagem também estava diretamente associada ao rock: as garage bands dos anos 60 que eu colecionava obsessivamente (além da piada interna com a furada que foi toda a história do Violeta: o nosso Funhouse seria na garagem) e hermética já era bom demais só por ser proparoxítona, mas também era certo que o nosso inferninho seria hermético o bastante. Airtight, alright.

Na hora de comprar os equipamentos, optamos por várias coisas de segunda mão, como uns ventiladores que deram uma porção de problemas até serem jogados no lixo algum tempo depois. O receiver também era usado, mas essa foi uma compra auspiciosa, escapou a dois arrombamentos e não sei quantos blecautes, mantendo-se firme e potente (exceção de uns dois consertos e meia dúzia de fusíveis queimados) até a venda do bar. Alguns itens foram zero quilômetro: o mixer, os cd players, uma estroboscópia, três canhões de luz. Também parcelamos numa loja de departamentos (em seis vezes) um freezer novinho em folha. Durante mais de um ano esse foi o único que tivemos. Nessa fase inicial, somente no início da noite era possível beber alguma cerveja gelada no Garagem. Quando o freezer chegava à metade de sua capacidade, já começávamos a abastecê-lo pra que não faltasse cerveja. O resultado era nada diferente do que preveriam as leis da física: a metade que já estava dentro esquentava e a outra não gelava. Compramos seis jogos de mesas e cadeiras de metal branco e pintamos, com tinta óleo preta, motivos abstratos à la Jackson Pollock de última hora. O Marcos tinha uma esposa, a Lucianinha, que, como tal, segundo as normas que legislam a comunhão de bens neste país, era dona de 16,66% das ações da nossa empresa. Era uma mulher pequenina (aliás, pouco menor que o próprio Marcos, cujo apelido (que detestava) era Murruga) estudante do Instituto de Artes. Lucianinha deu uma força na “decoração”, assim mesmo, “entre aspas”. Como não tínhamos dinheiro pra pintar todo o bar, ela fez uns desenhos nas paredes, inspirados na Garagem Hermética do Moebius: o Major Fatal, personagem principal da história, entrando e saindo de portas rabiscadas na tinta branca suja. Na sala onde ficaria o bar, enchemos as paredes com dezenas de páginas de histórias em quadrinhos. A mesma coisa foi feita no hall de entrada, onde as folhas cobriram o teto. Um amigo nos deu um pôster com o rostão do Picasso com uns olhos penetrantes de artista excêntrico que colamos sobre as páginas de revista. Bem em cima da porta do hall, e o Picasso ficava lá em cima, como um vigia, cuidando todo mundo que entrava. A iluminação era composta por umas sete lâmpadas azuis espalhadas em cantos estratégicos, três canhões de luz com filtro vermelho no palco e só. No banheiro, colocamos um compensado com a mesma pintura Pollock-chinelona sobre a banheira (que acabaria virando um gigantesco e nojento mictório) e, antecipando o que ocorreria de maneira inevitável, pichamos todas as paredes com manchas, borrões, desenhos obscenos e frases de desordem (lembro duma: “free your mind and your ass will follow”, que alguém escreveu embaixo: “bando de viados”), resumindo: um banheiro muito jovem. E unissex. (aliás, por isso e outras tantas coisas mais, esse banheiro, por si só, já mereceria um livro, um livrinho assim tipo pocket). Ah, e com um pequeno vazamento bem na base do vaso que não foi arrumado e o transformaria no terror das meninas de sandália. Em noites movimentadas, com o fluxo intenso de pessoas mijando, cagando e puxando a descarga, o banheiro estaria sempre inundado com uma aguinha suspeita que escorria do vaso, encharcando tudo em volta.

Todas essas coisas foram ou não foram feitas somente após o trabalho do pedreiro. Pra colocar o piso novo, Popeye teve que remover primeiro todo o madeirame antigo, deixando a casa por dois ou três dias com as vigas à mostra.

Olha só essas vigas. Dizia o Popeye sentado numa delas, com as pernas balançando pros lados a poucos centímetros do forro da lavanderia. São de madeira de lei, já duraram uns cem anos e vão durar mais cem. Foi sorte, guris, se essas vigas não fossem de madeira boa, os cupins já teriam comido tudo e cês tavam fudidos.

Durante a remoção do piso foram achados trocentos ovos de baratas, além de um número semelhante das próprias. Popeye ia arrancando as tábuas com o pé-de-cabra e as baratas correndo em todas as direções, cena de filme de horror. O piso da parte dos fundos e do corredor, que estava num estado menos pior, teria que esperar ainda dois anos pra ser trocado. Enquanto isso ficaria lá, com uma forração cor de rato sujo por cima, meio irregular e inclinado, rangendo conforme a pisada e deixando acumular nos cantos aquele pozinho de madeira que indica a presença de cupins.

Em função da dureza total, não tivemos grana sequer pra contratar aquelas caçambas de tele-entulho que levam embora os dejetos da obra. Então o Marcos teve a idéia de colocar tudo no pátio, que não tínhamos a intenção de usar. Popeye e Assistente descarregaram todo o entulho lá nos fundos: metros de tábuas velhas, restos de compensado e forração, sacos de farinha cheios de pó, cacos de tijolos e pregos tortos, um material capaz de produzir a abiogênese de alguns ratos e baratas e (com as pontas de baseado, tocos de cigarro e restos de bebida que seriam lançados ali a partir da abertura do bar) de dois ou três freqüentadores mais asquerosos. A salinha dos fundos também não seria usada, o piso podre demais, e foi transformada num depósito onde acabariam acumulados engradados de cerveja, cadeiras e mesas danificadas e, por razão que ninguém explica, todas as garrafas vazias dos destilados que a gente acabaria vendendo nos próximos meses. A sala também não tinha luz e passar por ela pra fumar um no pátio, à noite, era um desafio. Mesmo com a ajuda de um isqueiro, o tropeço em alguma garrafa (depois de um tempo elas já cobriam quase todo o chão) ou canelada em ponta de mesa ou cadeira, inevitável.

As garrafas espalhadas pelo chão iriam render ao menos uma boa história.

Cansado de tropeçar sempre que eu ia fumar um, resolvi por um fim naquela bagunça. Numa tarde, munido de vários sacos plásticos, recolhi todas as garrafas da salinha, não sem antes entornar o restinho de cada uma delas – vodca, uísque, tequila, rum, gin, cachaça – numa única garrafa de tequila. A mistureba encheu a garrafa com um líquido fulvo (leia-se: cor de mijo), e foi colocada em cima da geladeira, na cozinha. Pra todos os efeitos, meia garrafa de tequila ouro. Não demorou muito pra que viesse um:

E essa tequila, só pra diretoria?

Era um amigo baterista, o Bolonha.

Tafim?

Enchi um copo e, conforme o Bolonha ia bebendo, a cara dele ia ficando vermelha, quase roxa. Soltava fumacinha pelos ouvidos que nem personagem de desenho animado, engasgava de vez em quando, tossia. Mas respirava fundo e seguia engolindo o drink maligno.

Na ceninha alternativa da província os rumores da abertura do bar já corriam de boca em boca. A gente só tinha comentado com os amigos mais chegados que só tinham comentado com os mais chegados que só comentaram com os mais chegados e então todo mundo comentava. Alguém tinha dito que o Renatão e a Carla, os donos do Elo Perdido, um bar que a gente freqüentava, tinham ficado putos porque alguém (eu certamente, boca grande!) tinha dito que o Garagem ia ser bem melhor que o Elo. E alguém tinha dito que alguém tinha dito pro Renatão e a Carla que o nosso bar ia ser uma merda e que a gente era uns guris de merda. O bar nem estava aberto e já causava polêmica.

Também encontrei na rua o Bernoto que me olhou com um sorrisinho sarcástico (minto, o Bernoto era muito burro pra manifestar sarcasmo, o sorriso era mesmo de um deboche mesquinho, grosseiro e invejoso) e perguntou se eu já tinha alugado a casa.

Sim, Berna, não se preocupe, o bar abre no próximo final de semana. E tasquei um convite na mão do filha-da-puta.
(continua)

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