10.6.08

FRONTEIRAS FOR DUMMIES: MILTON HATOUM E SERGIO RAMÍREZ

A senhora ao lado disse alguma coisa pra comadre e eu acordei do cochilo. Espero que não tenha babado, pensei enquanto me arrumava na cadeira. Que preguiça. O suco e o chocolate não foram suficientes pra recompor as energias. Talvez precisasse de alguma coisa mais forte pra vencer o acachapante tédio de segunda-feira potencializado pela umidade asquerosa e a tarde morrinha no trabalho. É que supervalorizando meu espanhol de feriado no Uruguai, tinha recusado os fones da tradução simultânea e adentrado o recinto confiante, retirando resquícios de ânimo do fundo do... Ah, deixa pra lá. Mas exigia atenção acompanhar Sérgio Ramírez em sua fala monocórdica. E o sono veio vindo de mansinho.

O escritor participou da Revolução Sandinista que tomou o poder após quase meio século de ditadura (apoiada pelos States, of course) do clã Somoza, dono de meia Nicarágua. Ramírez foi vice de Daniel Ortega, deputado na Assembléia Nacional e candidato à presidência do país em 1996. Sua fala, Cadernos de encargo (oficios compartilhados), dava conta justamente da profissão de dublê de escritor e político.

Lendo um calhamaço de anotações, Ramírez elencou colegas que mesclaram esses ofícios contraditórios, de Daniel Defoe a Normam Mailer (a lista era extensa e dividida por nacionalidade, mas eu só lembro da seção britânica que, além do autor de Robinson Crusoe, incluía John "Paraíso Perdido" Milton e Sir Francis Bacon). Também traçou um paralelo entre a ação política e a criação artística: mudar a realidade é uma forma de imaginar. Falou dos escritores da América Latina, "que carregam paixão pela vida pública". Citou o substrato rural do continente que gerou, na política, o caudilhismo e, na literatura, o realismo mágico. Lembrou os grandes temas da literatura: 1) amor e morte, conforme Garcia Márquez; 2) amor, loucura e morte, segundo o uruguaio Horacio Quiroga, e 3) amor, loucura, morte e poder, conforme ele próprio.

"O poder deteriora os ideais no momento em que se o assume."

Disse, com conhecimento de causa, um pouco antes de eu cochilar. Acordei quando ele falava que ainda tinha fé nas utopias.

"A sociedade perfeita é impossível, mas é preciso ter fé na justiça e na igualdade. Imaginar é uma forma de aproximar-se da utopia."

Aplausos e eu pensando:

Espero que não tenha babado.

Dei uma rápida espreguiçada e fui salvo do sono pela fala envolvente de Milton Hatoum. A sisudez do político nicaragüense foi substituída pela leveza do libanês culto criado à beira de igarapés tropicais. Em tom jocoso, Hatoum começou falando da professora de filosofia que conheceu no vôo que o trouxe de São Paulo (que acabou pousando em Caxias, graças à "cerração") e da conversa sobre os confins do mundo. Confins: limite e essência de um lugar. A passagem entre a vida e a literatura, por exemplo. As tais das fronteiras, resumindo.

O autor amazonense, filho de imigrantes libaneses e tri-campeão no prestigiado Prêmio Jabuti, faz uma literatura cujo combustível principal é a memória. São relatos que misturam reminiscências da infância, fatos biográficos, lendas e fantasia. Daí o mote de sua palestra: Passagens entre a vida e a literatura.

Hatoum lembrou da infância em Manaus no final dos anos 1950, das aulas no Colégio de Aplicação, em Brasília, e dos dias de militância política na Sampa da década de 1970. Citou livros importantes (os contos do velho Machadão encabeçando a lista) que, segundo ele, nos mostram que precisamos sair dos nossos confins, avançar através dos limites, cruzar as fronteiras da imaginação.

"A literatura diz o tempo todo: você tem que sair do seu lugar."

E lá foi Milton Hatoum rodar o mundo. Estudou na Espanha, morou na França, tentou poemas, contos e um romance político que, segundo ele, não era político nem romance.

"Têm coisas que não podem ser aproveitadas, temos que ser brutais."

E jogou tudo no lixo, enquanto percebia que a mediadora entre a literatura e a vida é a experiência. Mas ela só serve à arte depois de filtrada pela linguagem, pois fazer literatura é transcender os fatos, transfigurar o vivido.

Citava sua "viagem ao preciosismo de Euclides da Cunha", em Os Sertões, quando um blackout fez acender as luzes de emergência da Reitoria e deixou as senhoras inquietas por alguns minutos. Na fila de trás alguns expoentes-da-nova-geração-de-autores-gaúchos esperavam ansiosos a volta da palestra.

Quando a luz voltou, Hatoum alertou pro perigo do dogmatismo político da Era Bush e lembrou que religião também é cultura. Sobre o ofício de escrever, citou Céline:

"Ser escritor é passar do plágio à petite musique."

O escritor deve achar sua própria voz e, pra isso, é necessário se distanciar dos seus confins para, então, recriá-los. Daí lembrou quando tentou fazer terapia. A psicanalista o expulsou do divã e o mandou escrever.

"Tanto a literatura quanto a psicanálise são biografias de fantasmas."

Com a modéstia dos laureados, Milton Hatoum afirmou que nunca quis ser um grande escritor.

– COMO ASSIM?

Escrevi no bloco de anotações (em capital letters, como diria o Justice). Estava na cara que aquele sujeito tinha trabalhado a vida inteira pra isso, perseguindo os grandes mestres, tentando capturar a essência de sua arte. Sua literatura era um espelho dessa pretensão, construída à base de memórias da infância e mitologias re-contextualizadas num cenário regional, a petite musique de imersão sensorial em sons, odores e sabores amazônicos, cascas rugosas de árvores na umidade da mata escura etc. A pretensão de "grande escritor" era tão visível que eu não tinha conseguido terminar o primeiro capítulo de seu aclamado segundo romance. Dois irmãos me pareceu um bom esquema preenchido com frases bonitas de sons e odores e sabores amazônicos. A fórmula do sucesso da grande literatura.

Mas pra tanto, há de se labutar. Hatoum trabalha oito horas por dia e um romance pode lhe consumir anos de trabalho.

"O romance é a narrativa do desencanto, da desilusão."

Afirmou, fazendo crer que a utopia pertence muito mais à política que à literatura.

Mas mesmo com tanto desencantamento, não deve haver sofrimento no processo da escrita: escrever deve ser tão prazeroso quanto ler. E mandou um aviso pros aspirantes: leiam, sobretudo. Na despedida, citou Borges:

"Afinal, ler é um ato muito mais civilizado do que escrever."

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