22.6.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 11 - Caixa acústica

Nessa parte da história entra o Bode.

Além de cocainômano pertinaz, o Bode era guitarrista e tinha um estúdio de ensaios e gravações. Por motivos desconhecidos mas facilmente imagináveis, o Bode foi despejado da casa onde ficava o estúdio. Sem local pra tocar suas atividades, só lhe restavam duas opções: ou reabria urgentemente o estúdio numa outra casa ou cheirava todo o equipamento de uma vez.

Foi aí que entramos na história.

Propusemos ao Bode que ele montasse o estúdio na salinha dos fundos, agora totalmente reformada. A gente pensava nisso fazia tempo: como levantar algum troco com a casa durante o dia. Eu sempre achava bufet a quilo meio despropositado, então essa pareceu a melhor solução, simples e barata: o Bode entrava com o equipamento e a gente com a casa. A grana e o trabalho (que consistia basicamente em esperar enquanto as bandas ensaiavam) seriam divididos.

Compramos pedaços de espuma, colchões velhos e chapas de compensado e lacramos as janelas da salinha. Revestimos as paredes internas com caixas de ovos que arrecadamos em supermercados e armazéns (relembrei bons momentos da adolescência dando umas cheiradas na lata de cola durante o trabalho). O Bode trouxe o equipamento e pronto: o estúdio estava pronto. No ensaio da primeira banda me dei conta de um problema: tanto o forro quanto o piso que a gente tinha colocado na salinha dos fundos eram feitos com umas madeirinhas das mais vagabundas, duas camadas finas de tábuas compradas em saldo de estoque na madeireira. De modo que nada adiantou nossa vedação: o estúdio era uma caixa acústica reverberando música mal tocada por todo o bairro.

O estúdio do Garagem era feio, fedorento e com equipamentos meia-boca. O trabalho era um pé-no-saco. Duas vezes por semana eu era obrigado a passar a tarde no bar, ouvindo a música de bandas que eu não queria ouvir, esperando até o final do ensaio pra pegar a grana - isso quando não penduravam, o que dava no saco mais ainda. O remédio era fechar a porta acústica que ficava no corredor e ouvir (bem alto) boa música na sala da frente. Eu tentava aproveitar aquelas tardes perdidas pra fazer pequenos reparos na casa: cobrir com cimento os buracos que se abriam nas velhas paredes de estuque, trocar as lâmpadas queimadas, limpar a calha entupida que em noites chuvosas provocava uma pequena cachoeira ao lado da pista de dança. Também me dedicava à leitura dos clássicos da literatura junkie: Flashbacks, O teste do ácido do refresco elétrico, A erva do Diabo, Confissões de um comedor de ópio, Junky, Fear and lothing in Las Vegas. Mas na grande maioria das tardes eu fazia porra nenhuma. Só fumando maconha e bebendo cerveja. Tardes eternas, perpetuadas num tédio espesso composto de fumaça, cheiro de cerveja velha e mofo (o cheiro típico dos bares), além de acordes toscos e vozes desafinadas berrando rimas estúpidas que invariavelmente terminavam em verbos no infinitivo.

Um caso de polícia

Conhaque descendo fácil, baseados acesos. Ensaio da Space. O Edu e a Mari (que estão pro Thurston Moore e pra Kim Deal assim como Porto Alegre está pra Nova York) detonando os velhos amplis no máximo numa zoeira sônica. De repente entra o Bode, travadão como sempre, mordendo os lábios, espuminhas brancas grudadas no canto da boca torta, piscando ininterruptamente e esfregando as mãos uma na outra – todos os cacoetes que um cheirador pode ter, todos ao mesmo tempo.

Dizer que o Bode falou alguma coisa naquele momento seria uma figura de linguagem, o Bode grunhiu qualquer coisa gesticulando e apontando pra fora. Parecia mais perturbado que o habitual. O Edu deu mais um pega e foi ver o que era. Saiu da salinha, cruzou o bar e quando chegou na rua viu um gurizão e o barbeiro Gomes acompanhados de um policial. Quase enfartou diante da cena. Recuperado do susto quis saber o que se passava. Nisso toda a banda já tinha saído do estúdio e espiava pra fora tentando saber o que acontecia. Então o gurizão pediu pra ver a nota fiscal do contrabaixo que uma menina (a Mari) entrara carregando.

Como assim? Perguntou o Edu.

Esse baixo é meu. Disse o gurizão.

Nada a ver, a gente comprou esse baixo.

Prova.

Não havia jeito. O baixo tinha sido comprado de segunda mão numa loja cujo dono não dera nota fiscal. E mesmo se tivesse dado ela já teria sido perdida no meio da bagunça de discos, livros, fanzines, cartazes de shows, instrumentos musicais e outras porcarias que atulhavam o quarto do Edu e da Mari. O policial interveio, disse que o único jeito era levar todo mundo pra delegacia pra resolver a pendenga. O Edu quase enfartou de novo.

O dono da loja foi chamado e livrou a cara deles. Alegou ter comprado o baixo de um desconhecido, provavelmente quem tinha roubado o instrumento. Tiveram que devolvê-lo ao gurizão (que tinha nota fiscal). O dono da loja garantiu que restituiria a grana pro Edu e pra Mari e tudo terminou bem.

Bem, o caralho. Diria o Edu mais tarde. A gente nunca viu a cor dessa grana.

O cara de chambre e chinelo

Um dia apareceu um cara de chambre e chinelo e pediu pra falar com o dono. Era um pouco antes do meio-dia e alguma banda barulhenta ensaiava na caixa acústica. O cara não parecia velho mas tinha uma aparência péssima, gordo, barba por fazer de vários dias, olheiras, um punhado de cabelo que nascia só nas laterais da cabeça e dois ou três fios compridos que cruzavam de um lado pro outro pelo meio da careca.

Qual o problema?

Enfiou o dedo na minha cara:

Música alta às três da madrugada eu já me acostumei, mas na hora do almoço eu não vou admitir!

Disse que a mãe tinha acabado de voltar do hospital. A velha se submetera a uma cirurgia e precisava de repouso, canja de galinha e silêncio, sobretudo.

Se ela morrer, eu te mato.

Positivamente ele não estava brincando. Através dos olhinhos raivosos radiações de ódio minaram meu corpo como um jato de raio-X, atravessando pele, gordura e músculos e contaminando meus órgãos internos com a mais nociva das bad vibes. O ódio que os vizinhos nutriam por nós era um sentimento genuíno.

*

Pro bem da mãe do cara de chambre e chinelo (ou pro meu próprio) a caixa acústica não durou muito. Desde o começo o negócio nunca tinha dado muita grana, principalmente em função do pindura. Porém, o que nos levou mesmo a por um fim no estúdio foi o Bode. Não sei se por ingenuidade ou muita fé no espírito humano, a gente confiava no cara. Sempre fungando, braços furados, pele péssima, todo espinhas e pústulas. Drogado-porém-honesto, pensávamos, e, de fato, mesmo com toda a detonação, ele nunca tinha pisado na bola com a gente.

Até o dia em que o Ricardo apareceu no bar e encontrou o Bode e mais três figuras suspeitíssimas no estúdio. Ninguém tinha instrumentos e os amplificadores não estavam ligados. No ar pairava uma fumaça estranha, um cheiro metálico bem diferente da fumaça adocicada do beque.

E aí, Bode, qualé? Perguntou o Ricardo.

Nada não, a gente já tá de saída. E foi dando o fora com as figuras, uns tipinhos de boné e cara de assaltante.

Depois o Ricardo achou as latas amassadas. O Bode trazia seus amigos craqueiros pra fumar pedra no bar. Sujeira total. Decidimos dar um fim no estúdio. Ingenuidade demais confiar num drogadito como o Bode. Por mais honesto que fosse, cedo ou tarde acabaria nos ferrando. Afinal, era o destino de todo junkie: trair os amigos, vender a mãe, a própria alma, qualquer coisa que valha alguma coisa.

A caixa acústica teve suas atividades reverberatórias encerradas. O Bode recolheu o equipamento e ficamos sem notícias dele por alguns meses. Até a noite em que apareceu no bar, pele escamosa, tremedeiras, tiques e manias sacudindo o corpo magricelo. Ofereci uma ceva.

Pra molhar o bico, tirar essa baba seca do canto da boca. Disse pro Bode.

É, tô precisando. E mordeu o lábio e enrolou a língua três vezes.

Enchi um copo de cerveja e enquanto ele bebia perguntei que fim tinha dado no equipamento.

Quem sabe a gente podia fazer negócio num daqueles amplificadores?

Depois de secar a ceva num só gole e limpar a boca com a manga da jaqueta, O Bode deu um pequeno arroto e disse:

Cheirei tudinho, não sobrou um cabo.

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19.6.07

PULP CABARET

O TRIO FRICTURA volta ao Cabaret do Beco!

Sempre na última sexta do mês, RAFAHELL, DREGUZ & LEO FELIPE esquentam a pista do inferninho dos altos da Independencia com doses de mambo-rock, electropolca e funkpunk. Como convidados especiais os famigerados FUNK SOUL BROTHERS,com um set recheado de muito soul, hip hop, old & dirty funk pra botar a moçada pra quebrar.

PULP CABARET
Sexta, 29/06/2007 às 23h
Cabaret do Beco
Av. Independência, 590
Ingressos: R$ 12,00 (somente no local)


DJs Residentes:
Rafahell
Dréguz
Leo Felipe

DJs Convidados:
FUNK SOUL BROTHERS

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15.6.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 10 - Mafaldita

Um dos nossos maiores pesadelos era o tal do alvará, bicho malvado e agourento, pássaro preto assombrando a vida dos pobres donos de bar.

Alvarááá! Pega, mata e come!

Para o nosso tipo de empreendimento, precisávamos de um muito específico: um alvará de funcionamento pra “bar-restaurante 24 horas” com permissão pra música ao vivo. E nada mais.

Mas não pensem que era fácil. Já tinham sido quase mil dias de tramitação – tramitação, essa é a palavra – em escritórios e gabinetes dependendo da rubrica do Secretário interino (o Secretário mesmo nunca está disponível) conforme a demanda do processo arquivado sob o número 44473768-b, em anexo documentação obrigatória, incluso relatório da série de vistorias in loco agendadas aleatoriamente e sem aviso prévio, realizadas por auxiliares técnicos admitidos através de concurso público com remuneração mensal de 800 a 1.300 reais, fora hora-extra, insalubridade, adicional noturno e outras mutretas, e ainda parecer final passível de contestação (caso desfavorável) via processo administrativo registrado no protocolo central da prefeitura em dias úteis das 10 às 17 horas, sem fechar pro almoço, e ENTÃO diante da conformidade do número de registro e da documentação obrigatória, da comprovação da idoneidade moral e financeira do requerente, estando este em dia com todos seus deveres fiscais e no anseio de buscar com presteza a melhor solução para ambas as partes mas sempre prevalecendo os justos interesses desta municipalidade: mais um prazo de 15 dias era concedido pra que o bar permanecesse aberto enquanto o processo tramitava – tramitava, essa era a palavra. E assim se passaram três anos.

A falta do alvará, esse era na verdade o problema.

Lembro da primeira vez em que fui à Secretaria solicitá-lo. O homenzinho no guichê não quis aceitar o pedido:
Manda teu patrão vir aqui da próxima vez, não aceitamos pedidos de estafetas. Disse o filha-da-puta.

Precisou da cópia do contrato social da empresa e o meu documento de identidade pra que ele acreditasse que aquele gurizão com cara de office-boy (eu) era o patrão himself, myself no caso.

Essa primeira visita à Secretaria já deu o tom de todas as subseqüentes. Um martírio, como ir pra uma sessão de tortura, os soldados da burocracia entrincheirados na repartição prontos pra se atirar sobre nós, fios elétricos em nossas têmporas, agulhas enfiadas sob as unhas, alicate apertando a cabeça do pau. Um lance kafkiano, surrealista, que superava qualquer ficção: nada como o absurdo da realidade pra nos deixar perplexos. Urgia uma força sobrenatural pra combater o maquinário da lei e da tributação, gigante feito de arquivos de metal, escrivaninhas, impressoras, grampeadores, carimbos inapeláveis e máquinas de fax, Transformer com cabeça de monitor e coração de CPU brandindo de um lado a bandeira do partido e do outro a guia de arrecadação. A busca do alvará era uma cruzada insana e interminável, perseguição desse objeto mitológico, Santo Graal dos donos de bar. De quinze em quinze dias e durante três anos fizemos a via-crúcis submetendo-nos ao sadismo de funcionários que sempre apontavam incorreções, pequenos erros no preenchimento das segundas ou infinitas vias, a falta da cópia de um documento importantíssimo ou do pagamento da taxa do CREA, amargando por longas horas em filas tão estáticas quanto muros, ouvindo as desventuras de nossos companheiros de batalha, outros comerciantes desesperados que também sonhavam com ele, sublime alvará.

Nosso processo circulou por todos os setores possíveis da burocracia municipal até que enfim aterrissou naquele onde estaria o seu juiz supremo, o setor Ruído da Secretaria do Meio Ambiente. Lá, mediante a averiguação do nível de poluição sonora provocada pelo bar, seria decidido o nosso destino. A liberação do alvará dependia do visto do chefe deste setor, ou melhor, da chefa, mulher temida por todos os donos de bar da cidade, a implacável Mafalda, conhecida em certos círculos como Mafaldita, La Impiedosa.

Malfalda designou uma dupla de técnicos pra ir na casa de um dos (vários) vizinhos que tinham reclamado do barulho. Primeiro os técnicos mediram o ruído ambiente, numa noite em que o bar estava fechado. Depois fariam a mesma mediação numa noite em que a casa estivesse aberta: a música executada em volume máximo, o som de garrafas quebradas, gritos, gargalhadas, choro e muito provavelmente os brados retumbantes de Aêêê do Karl, um punk alemão com voz de barítono que vendia salmão defumado e sempre gritava Aêêê quando estava bêbado e via seus amigos (o que era um saco, porque ele conhecida praticamente todo mundo e estava sempre bêbado). Se o nível de ruído no dia da segunda medição ultrapassasse em cinco decibéis o da medição anterior, estávamos fodidos.

*

Passados os estertores de euforia após a saída do Marcos, Rick and I caímos na real: tínhamos nas mãos um bar falido numa casa caindo aos pedaços com um público fiel composto por um bando de pés-rapados. E sem alvará de funcionamento pra completar.

Só um milagre nos salvaria. Ou quem sabe um empréstimo. Então recorri ao meu avô, o bom & velho Seu Raul que não era santo mas tinha grana. Mesmo odiando o bar e o Ricardo, nos emprestou algum pra que a gente investisse no negócio.

E veio a grande reforma: trocamos todo o piso apodrecido, removemos o entulho do pátio (em três caçambas abarrotadas), reformamos a salinha dos fundos, mudamos o bar e a casinha de DJ de lugar pra ganhar mais espaço, demos uma geral na elétrica periclitante e promovemos uma repaginação geral nas paredes internas com novas intervenções e desenhos. Também pintamos a casa por fora, do cor de rosa mais feio que poderia existir – o que deve ter quase matado de desgosto o pobre Gomes, imaginem um tradicional e respeitável salão de barba, cabelo e bigode numa casa cor de rosa unha-de-puta. Mas a principal mudança aconteceu no banheiro, onde reparamos a infiltração que sempre deixava o piso constantemente com uns dois dedos de aguinha suja: retiramos a banheira-mictório nojenta, construímos uma parede dividindo-o em duas partes, compramos um outro vaso e o que era um banheiro sujo viraram dois! (nosso pedreiro era um gênio primitivo da engenharia e fazia milagres com um saco de cimento, alguns tijolos, madeira e pregos. Chegou a trabalhar em duas reformas conosco. Na segunda vez, durante uma pausa do trabalho comendo pão com margarida e tomando coca-cola, comentou que a esposa tinha contraído o HIV. Perguntamos se ele tinha feito o teste e se usava camisinha e ele respondeu que não.)

Mandamos instalar duas portas acústicas que tínhamos comprado do estúdio do Fabriano, um músico genial que estava prestes a abandonar o roquenrol. As portas foram colocadas, uma logo após o pequeno hall de entrada e a outra ao final do corredor. Serviriam para amenizar o barulho. A nossa última esperança de passar na medição da Secretaria. Também decidimos que não venderíamos bebida pro Karl durante o período.

*

Não sei quais eram as conjunções astrológicas que regiam nosso destino mas acho que elas deviam ser muito favoráveis. Sei que, no dia em que os técnicos foram realizar a segunda e fatal mediação (agendada aleatoriamente e sem aviso prévio), o Karl não apareceu e se apresentou no bar uma banda paulista tipo cult, uma mina e um carinha tocando um som muito introspectivo, suaves bases executadas num tecladinho de brinquedo, vozes femininas sussurradas, uma tímida guitarrinha desenhando leves texturas e o zum-zum de um televisor passando filmes antigos ao fundo. Abafado pelas portas acústicas fechadas, o nível de ruído naquela noite deve ter sido mais baixo que o da medição anterior.

Na semana seguinte ao show da banda cult paulistana, fomos à Secretaria pedir mais um prazo de 15 dias e recebemos a feliz notícia de que nosso alvará tinha saído. “Bar restaurante 24 horas com permissão pra música ao vivo”, exatamente como queríamos. Dizem que nesse mesmo dia, esperando a sua vez na sessão de tortura, o dono de um bar concorrente teve uma síncope na fila da repartição:

Como esses chinelões conseguem um alvará e eu não? Bradava o sujeito.

Eu e o Ricardo saímos dando pulinhos do prédio. Chegando no bar pra comemorar, fomos olhar na agenda pra saber qual tinha sido o show no dia da vistoria: a banda cult paulistana. Baita pé-quente. Durante o trago comemorativo de meio de tarde, pensamos em mandar flores pra Mafalda. Logo deixamos de lado a idéia. Ela poderia suspeitar que por trás da gentileza houvesse alguma sórdida ironia e mandar fazer de novo a medição. Uma banda cult paulistana não cai duas vezes no mesmo lugar.

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8.6.07


EM TERRA DE INDIE QUEM TEM UM BONDE É REI!

Em janeiro de 2003, três amigos inventaram uma festa pra animar a pasmaceira do verão na capital.

Estava criada a PULP FRICTION e inaugurada a onda de festas-rock em Porto Alegre.

Juntando as novas tendências do rock contemporâneo, hits dos anos 90, música eletrônica, disco music e esquisitices sonoras como mambo, jazz e canções folclóricas do Leste Europeu, os DJs do TRIO FRICTURA (Rafahell, Drégus e Leo Felipe), passaram a se apresentar sempre no segundo sábado no Bar Ocidente, o maior bunker da resistência boêmia e festiva do Sul do Brasil.

Depois de quatro anos de festas incríveis com direito a concurso de dança, The Great Little Cheese Context e aparições do enigmático Dançarino Mascarado, a PULP, mãe de todas, trouxe uma nova atração pra alegria geral do pulp-povo. O menu musical da PULP oferece agora shows, que acontecem no Espaço OX, o anexo do Ocidente. Já tocaram na festa as bandas Damn Laser Vampires (art punk), Les Responsables (chanson française), Suedeheads (Smiths cover), além do bardo pós-moderno-terceiro-mundista Tony da Gatorra.

A edição 53 da festa mais divertida de Porto Alegre traz no mês de junho, pela primeira vez na capital, o duo curitibano IMPOSTORA, autor do hit "King dos Blase". Com muita irreverência e, sobretudo, maledicência, e uma receita sonora que inclui funk carioca, electro, indie rock, IMPOSTORA é o bonde da hora. O grupo é um das novas promessas do cenário eletro-rock brasileiro, sendo o próximo da fila que já consagrou CANSEI DE SER SEXY e o seu conterrâneo curitibano, o BONDE DO ROLÊ. As músicas das IMPOSTORA tem como único objetivo achincalhar as "tribos" do mundinho pop: indies, metaleiros, hippies, emos, funkeiros e até os próprios bondes.

Diversão, estilo, tiração de sarro e auto-ironia, isso é PULP!

Sábado, 9 de junho, a partir das 23h no Bar Ocidente. Primeiro lote de 300 ingressos a R$ 15 (valendo um cerveja). Na local, R$ 20.

Discotecagem: TRIO FRICTURA (Rafahell, Drégus e Leo Felipe).

DJ convidado: Claúdio Cunha (Ipanema FM)

Live-act: IMPOSTORA

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A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 9 - Rock fight

Dizem que três anos é a duração-limite de muitos tipos de relacionamentos: namoros, casamentos, parcerias sexuais e comerciais, sociedades anônimas, micro-empresas, bandas de rock. Como for, estávamos entrando no terceiro ano e as coisas não iam lá muito bem. A gente continuava com um único freezer. Ou seja: não vendia MUITO, logo lucrava pouco e nunca sobrava grana pros constantes investimentos que um negócio demanda, reformas urgentes quase diárias, ainda mais numa casa velha como aquela – as mais urgentes: 1) troca do piso podre e 2) das lâmpadas queimadas; 3) remoção do entulho; 4) reparo no banheiro constantemente alagado e 5) reforma geral na parte elétrica periclitante. Quem dirá pra ampliação da pista de dança e pra pintura nova. Até o nosso cardápio andava desfalcado. Não se sabe se por preguiça (nossa) ou indiferença (dos bêbados), gradativamente as comidinhas foram desaparecendo do menu. Sem muita grana em caixa pra manter um bom estoque de bebidas servíamos só o elementar, comprado com o lucro (leia-se: alguns trocados) da noite anterior: ceva, vodca orloff, natu, conhaque dreher, refrigerante (às vezes) e água (da torneira). Além do estado deplorável do imóvel e dos bolsos vazios, a gente não tinha alvará de funcionamento e a vizinhança nos odiava. O movimento não era de todo fraco, os shows legais davam bastante público e algumas festas também, mas a maioria dos eventos era meia boca e ainda tinha os fracassos, noites falhadíssimas que só faziam deprimir ainda mais nossos espíritos combalidos.

Foi nessas circunstâncias econômicas e psicológicas que o Marcos começou a ter idéias. Um dia nos contou que estava procurando uma casa pra alugar. Pensava em abrir um outro bar:

Essa casa aqui tá velha demais, precisa de muitas reformas. Temos que abrir um outro bar, num ponto melhor. Vamos tocando os dois negócios e se um falir agente tem o outro.

A idéia me parecia absurda. Se mal conseguíamos administrar um negócio. De qualquer forma ele estava determinado. Caso a gente não aceitasse a proposta, já tinha até descolado um outro sócio pra entrar com a grana (ele entraria com o know-how, o velho golpe). Na minha opinião o Murruga abandonava o barco quando ele mais precisava de um capitão, entrava no bote salva-vidas e ia remar em outras praias no momento exato em que é preciso ordenar a virada no timão pra que o navio não bata de frente no iceberg.

Marcos Murruga era o mais velho de nós e, sob este aspecto – o da antiguidade – o mais experiente. Dotado de uma personalidade dominadora, acabava por impor sua vontade na maioria das questões que envolviam a administração do bar. Metódico e exigente, passava criando regras de conduta, escalas de trabalho, divisões de tarefas, mandamentos morais e outras aporrinhações. Uma delas, por exemplo, eu julgava completamente inapropriada.

Como não bebia muito, o Marcos se achava em desvantagem em relação a mim e ao Ricardo, que padecíamos de uma sede crônica, então estabeleceu que os sócios deveriam pagar o que consumissem ao final de cada noite de trabalho. Ora, qual a graça de ser dono de um bar se você é obrigado a pagar a própria conta? Outro agravante era o mau humor constante, o que realmente dava no saco. Discordávamos em muitos pontos e passei a achá-lo, cada vez mais, um careta. Com o passar do tempo e o completo esgotamento da minha capacidade escrotal, nossa convivência tornou-se impossível. Muito amável e conciliador, o Ricardo vivia no centro das duas forças, concordando ora com um ora com outro, apaziguando os ânimos, botando panos quentes como diria a avó da minha amiga. Nesse clima e com um provável sócio que lhe financiasse outra empreitada, não era de se espantar que o Marcos quisesse pular fora o mais rápido.

*

Uma das regras do Marcos era aceita em consenso por nós: o responsável pela compra da bebida e pela limpeza do bar nunca trabalhava na noite anterior, sacanagem ter que dormir tarde e ainda ser obrigado a acordar cedo pra fazer compras e limpeza. Outras regras consensuais eram que: 1) a casa deveria ser examinada antes do bar ser fechado; 2) se não houvesse cerveja suficiente pra próxima noite, o dinheiro da compra deveria ficar no caixa e 3) o caixa ficaria sempre num esconderijo secreto, em cima do forro do banheiro.

Foi numa manhã de sábado. Eu era o responsável pela limpeza e pela compra da bebida. Recém tinha aberto o cadeado do portão pra entrar no bar quando se aproximou pela lateral o nosso vizinho Gomes, dono do salão homônimo e que provavelmente nos odiava.

Vocês deixaram um cara trancado aí dentro essa noite.

Como assim? (incrédulo)

Eu abri o salão de manhã cedo e escutei um barulho vindo aí de cima. Fui ver o que era e tinha esse cabeludo saindo de dentro do bar. Ele veio até o portão e disse que tinha ficado preso. Tava com cara de sono. Me perguntou se tinha alguma saída e eu falei que só pulando.

E daí? (ansioso)

Ele pulou.

O Gomes ria do episódio e eu me perguntava se o Marcos, o responsável pela noite anterior (ou, como tudo indicava, irresponsável), que já cometera a cagada fundamental de esquecer um bêbado trancado no bar, tinha escondido o dinheiro conforme o combinado ou também cagara espetacularmente. Duplamente.

A porta da velha casa tinha sido arrombada de dentro pra fora. Encontrei o caixa – uma velha caixa de ferramentas – jogado em cima do balcão só com umas moedas dentro. A cagada viera acompanhada de advérbios com certeza. Corri pro orelhão da esquina e liguei pro Ricardo.

Meia hora depois ele apareceu no bar. Tinha falado com o Marcos que tinha dito que eu era um ladrão mentiroso.

Plagiador talvez e, no máximo, dissimulado. Mas ladrão mentiroso era demais.

*

O gringo do armazém nos vendeu fiado umas caixas de cerveja e pudemos abrir o bar no sábado. O Marcos já tinha trabalhado na sexta e o nosso próximo encontro seria na reunião de segunda à tarde, pro balanço da semana. Passou a noite de sábado e o domingo inteiro e ele nem apareceu pra conversar sobre a cagada. Na segunda, uma segunda chuvosa de verão, o Ricardo me surpreendeu num telefonema pouco antes do meio-dia.
O Marcos ligou, quer nos encontrar. Tá aí perto da tua casa. Tô indo pra lá, o endereço é tal.

Er uma casa que ele queria alugar pra abrir seu novo bar. Larguei o fone no gancho. No bafo úmido e quente do apartamento vestia apenas uma bermuda e ainda lembro de olhar pros coturnos atirados no canto da sala e pensar foda-se é logo ali, calçar os chinelos, colocar uma camiseta, descer as escadas do prédio, caminhar na chuva por duas quadras, entrar no tal endereço, subir as escadas (encharcado) e ver o Marcos com uma cara de cu, segurando uma pasta de couro e um guarda-chuva.

Então vieram as acusações de ladrão mentiroso e cara tu tá louco! e ladrão mentiroso e cara tu não quer admitir que vacilou e depois só me lembro do Marcos me dando uma porrada com o guarda-chuva e eu dizendo algo idiota como tu me obrigou a brigar e de empurrá-lo contra uma janela e de uma vidraça se quebrando e mais porrada de guarda-chuva e de uma mordida na mão (tive que tomar anti-tetânica), de cair no chão rolando entre socos e pontapés e levantar e chutá-lo no abdômen e do corpo dele em posição fetal, a cara contorcida, os braços protegendo a barriga dos chutes, meus pés descalços e eu pensando:

Merda que eu não calcei os coturnos.

Ao mesmo tempo eu achava aquilo tão ridículo, não tinha vontade de machucá-lo realmente, esmagar sua cabeça, arrancar os olhos, triturar os ossos. A gente se engalfinhava como num sonho, como quando não se consegue impingir força nos socos. Tentativa patética de salvar a honra por ter apanhado na cara – isso se há salvação pra dois marmanjos se digladiando encharcados entre pastas de couro, chinelos e guarda-chuvas numa manhã chuvosa de segunda-feira.

O Ricardo – sempre apaziguador – surgiu não sei de onde e separou a briga me empurrando pra saída. Lembro ainda de pegar do chão o que sobrou do guarda-chuva e jogar no Marcos. De bermuda, com a camiseta rasgada e apenas um chinelo (o outro se perdera na luta), completamente molhado da chuva que não dava trégua, entrei num táxi com o Ricardo, que a partir de então comandou as ações enquanto eu apenas me deixei levar, ainda perplexo diante daquele absurdo. Eu? Envolvido numa luta corporal?? Com o Marcos??? Meu corpo doía, principalmente o pescoço (mais de tensão que das porradas do guarda-chuva). Na mão esquerda eu via, naquela parte carnuda embaixo do polegar, a marca vermelha de oito dentinhos. O dedão do pé (sem o chinelo) direito parecia quebrado. Não sabia dizer qual tinha sido o score do combate. Mesmo tendo deixado o inimigo no chão com cara contorcida (menos de dor que de humilhação), não me sentia um vencedor. Nem derrota, nem vitória. Só desclassificação, levando em conta tamanha falta de classe.

Na seqüência foi ir até o bar, trocar cadeados e fechaduras e esperar pelo litígio. Uma cláusula esquecida lá no finzinho do contrato garantia que, em caso de rompimento não-amigável da sociedade, haveria o prazo de 6 (seis) meses pra realização do inventário da empresa, mas como o Marcos não podia esperar 6 (seis) meses acabou fazendo um acordo. Vendeu a sua parte por uma ninharia parcelada em 3 (três) vezes.

O bar seria só meu e do Ricardo. Isso significava o fim das regrinhas aporrinhantes, a caretice, o mau humor. Significava bebida liberada. Antevíamos um futuro resplandecente: cumprir a nossa sina de Whisky a Go-Go. Sem mais as amarras do tirano Mr. Murruga. Depois de assinados os novos contratos, tudo registrado e juramentado em cartório, firmas reconhecidas: a comemoração. No próprio bar, é claro, onde a gente tinha cobertura total, como diria o Hunter Thompson.

Durante a comemoração aparece o Drégus. Justamente quando comemorávamos a primeira. Nada como compartilhar com o nosso Cliente Número 1 que o Marcos tinha pulado fora e agora era tudo com a gente, gente.

...

A mudez do Drégus acompanhada de uma cara de espanto em que eu e o Ricardo podíamos ler: fudeu, é a metáfora perfeita pra expressar todo o apoio que recebemos de amigos e clientes nesse período. Realmente a gente andava em baixa naqueles dias.

Em compensação, o Marcos, não obstante a separação traumática e a mixaria que levou por três anos de trabalho, se revirou muito bem e deu a volta por cima. Montou em Porto Alegre dois bares que foram muito legais enquanto duraram, o Megazine e o Circus - nas versões Cirquinhus e Circãos. Este último, uma mega casa noturna com capacidade pra (sério) milhares de pessoas para onde o Drégus, nosso EX-Cliente Número 1, migrou como DJ, maldito traidor!

Mr. Murruga deve ter ganhado muito dinheiro a julgar por todos os clientes que deixaram de freqüentar o Garagem pra macaquear no Circus e depois voltar com o rabinho entre as pernas quando ele decidiu desmontar o picadeiro e viver em Curitiba. Levou consigo o tal do know-how e hoje é dono de três casas noturnas na cidade das paradas de ônibus mais famosas do Brasil.

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1.6.07

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE

Capítulo 8 - Up against the wall

Parte II

2º Atraque Histórico: O aliciador de menores

De maneira que na segunda vez eles se puxaram, os filhos-da-mãe. Vieram com tudo: mandado, delegada, agentes do Denarc, pé de cabra e o que mais fosse necessário pra arrebentar com aquele abjeto covil de drogas perigosas. Chega a ser engraçado. O único indício de consumo de drogas que acharam foi um tíquete de cerveja que nem fora usado naquela noite, mas não impediu os sacanas de, na falta de nada melhor pra me incriminar, enfiarem um processo por aliciamento de menores no meu rabo. Isso que eu devia ter pouco mais de 18 anos e por muito pouco não era um menor myself.

A história o seguinte:

O Piá, figura central da cena rap gaúcha, começou a agitar umas festas às quartas-feiras. Nessa época o Piá ainda era um branco mirradinho e não me perguntem como, com o passar do tempo e num processo inverso ao do Michael Jackson, o cara conseguiu se transformar num negrão forte. O Projeto Rap POA era conceitualmente bacana (trazer os grupos de rap da periferia (ou não) pra se apresentar no bar), pero economicamente um fracasso. O público incipiente do projeto era composto: 1) ou por uma pirralhada que mal tinha dinheiro pra entrada, por sinal, baratíssima; 2) ou por uma turma de skatistas hardcore que só aparecia na finaleira quando a gente já estava louco pra fechar e dava muito mais trabalho do que dinheiro graças ao comportamento zoador e briguento. Naquela noite o público era, por assim dizer, da primeira categoria: pirralhada sem grana. Também estava no bar, meio perdido e completamente de bobeira, o Caniço, dos Raimundos. Visita internacional. Coitado, deve ter tomando um cagaço quando viu a polícia entrando no bar. Foi um pouco antes do show começar. O grupo de rap, três negrinhas magrelas e um DJ, recém tinha subido no palco quando entrou uma mulher baixinha com um papel na mão. Ia à frente de um pelotão de brigadianos de capacete, cassetete, metralhadora e todo o aparato. A mulherzinha era a delegada e parecia furiosa. O papel se tratava do famigerado Mandado de Busca e Apreensão. Senti que estávamos totalmente fudidos. Se ao menos fosse um delegado.

Ninguém entra, ninguém sai. Gritou um policial.

Todo mundo na parede. Gritou outro, quase simultaneamente.

Eu e o porteiro fomos os únicos que escapamos da revista. Em compensação, tive que aguentar o péssimo humor da delegada. Não parava de sacudir o tal do mandado que lhe dava poderes pra revistar quem e onde bem entendesse. Era a lei, estava lá, assinado pelo juiz.

Confessa, onde estão as drogas? Não parava de inquirir.

Qual não foi o desapontamento da delegada e do pelotão inteiro quando terminou a revista e nenhuma droga foi encontrada. Nada, nada, nem uma pontinha.

Confessa, onde estão as drogas? Me perguntava a mulher, jurando que escondíamos um carregamento inteiro de cocaína em algum lugar na velha casa.

Drogas? Que drogas, minha senhora? Dizia eu. Tudo isso não passa de um grande equívoco.

A delegada foi se dando conta da roubada na qual tinha se metido. Como iria explicar pro juiz que o mandado de busca e apreensão que ele assinara só tinha buscado, buscado, buscado sem apreender porra nenhuma? Sem falar no custo de todos aqueles adicionais noturnos na folha de pagamento do pelotão.

Enquanto isso, um dos soldadinhos que revistava a casa reparou no chão de madeira cheio de frestas e começou a ter idéias. Foi até uma viatura e voltou trazendo um pé-de-cabra. Há alguns dias, após os pogos de um show de hardcore, uma tábua do piso em frente ao palco tinha quebrado. Munidos de martelo e pregos, substituímos a tábua quebrada por uma outra, um pouco mais estreita, que deixou uma sobra, uma larga fresta entre as madeiras. Através desse vão dava pra adivinhar muita sujeira e algumas bitucas de cigarro depositadas em cima do forro da lavanderia, no piso inferior. Foram essas imagens – a tábua nova e mais estreita do que as outras e o vão pelo qual se espiava alguma coisa entre o piso e o forro do andar de baixo, algo escondido, secreto, ilegal talvez – que deram idéias ao soldadinho. Já devia estar certo da condecoração, quando enfiou o pé-de-cabra no vão e arrancou a tábua fora.

Minha senhora, aí já é demais. Falei pra delegada. Quem é que vai pagar o prejuízo?

A delegada rosnou pro soldadinho e ele parou imediatamente. Pros ares os sonhos de condecoração do infeliz, decerto seria rebaixado depois dessa, aonde já se viu soldado ter idéia? O fato é que não havia droga nenhuma, isso era o que mais cedo ou mais tarde eles teriam que admitir.

Inconformados com a apreensão mais frustrada de toda a história do combate às drogas, resolveram apelar. A delegada encontrou um vale-cerveja na mesa do escritório e aí veio com o papo de venda de bebida alcoólica pra menores. A acusação até faria sentido em alguma outra noite, mas não naquela: nenhum daqueles pirralhos tinha dinheiro pra comprar um chiclete sequer.

Vamos pra delegacia lavrar a ocorrência. Disse a delegada já recolhendo o pelotão.

Como a acusação era de aliciamento de menores, a ocorrência tinha que ser feita na delegacia do menor que ficava longe pra caralho da minha casa.

Depois cês me dão uma carona de volta pro centro? Perguntei pra delegada. Não vendemos quase nada essa noite e eu não vou ter grana pro táxi.

Deixa pra depois então. Ela disse, e mandou que eu me apresentasse na delegacia o quanto antes.

Com a mais ingênua honestidade eu tinha quebrado o coração de pedra daquela mulherzinha mal-humorada e, sem saber, salvo meu próprio rabo. Se eu tivesse ido àquela hora pra delegacia, eles teriam me pego em flagrante e eu teria que pagar fiança se não quisesse passar a noite em cana.

Os ingênuos vivem incólumes, já dizia eu mesmo.

E aí veio mais um processo e dessa vez foi eles contra nós. Mas no fim foi happy-end. A coisa se arrastou por uns três anos nos quais, de seis em seis meses, eu tinha que me apresentar lá na tal da delegacia de menores, mas isso foi o pior que me aconteceu (ter que depor longe pra caralho de casa), porque o processo mesmo deu em nada. Arquivado. Totalmente sem fundamento: três menores numa festinha vazia, um vale-cerveja achado no escritório, um quase-menor acusado de aliciamento: era tudo o que tinham: nada. Ainda não foi dessa vez.

3º Atraque Histórico: O caso do cachorro

Nem dessa. Mas foi quase. Ao contrário dos dois outros atraques, em que o bar estava quase vazio, a casa estava atulhada de gente. Foi num show do Egisto e o Ricardo era o dono de plantão (leia-se: o cu na reta). Acontece que o secretário de segurança do momento era algum repressor filha-da-puta e a Brigada Militar vinha com tudo na ronda noturna. Todo final de semana eram blitzes em bares e esquinas movimentadas. Na noite em questão, o alvo foi o Garagem.

O bar bombava. Show rolando a todo volume, consumo de drogas desenfreado, doideira, loucurama. Típica noite garageira. De repente entram os hômi:

Parado aí!

Mão na cabeça!

Encosta na parede e abre as pernas!

Eram muitos, mas como a casa estava muito cheia demorou pra que eles controlassem tudo. A notícia de que os hômi tinham invadido percorreu o bar de boca em boca e quem tinha droga em cima atirou tudo pelos janelões. Chuvarada de cocaína e maconha no pátio, coisa nunca dantes vista. Mandaram parar o show e acender as luzes. Começou a geral.

O Ricardo estava no escritório e, qual marido traído, foi o último a saber. Quando se deu conta, entraram os hômi arrebentando a porta com metralhadora em punho como se fosse operação de guerra. Chegaram barbarizando, revirando equipamentos e derrubando coisas. Dessa vez não pouparam nem a staff do bar:

Mão na parede, Alemão. Disse um policial pro Ricardo (que na verdade é polaco).

De repente, apareceu fungando no escritório um desses cachorros treinados pela polícia. O bicho entrou e foi direto prum canto perto da parede, grudou o focinho no rodapé e não parou de latir. Rosnava, babava, gania, revirava os olhos. Encontrara alguma coisa a julgar por seu comportamento. O policial que o segurava pela coleira não parecia concordar. Puxava o cachorro pra trás, dava uns murros no lombo do bicho e dizia:

Esse cachorro tá doido.

O Ricardo prestou os devidos esclarecimentos, mostrou documentação, chorou, implorou de joelhos como de praxe. Enquanto isso o cachorro latindo com o focinho grudado no rodapé e o policial puxando-o pra trás, batendo no bicho e dizendo:

Esse cachorro tá louco.

Ignorando os avisos do cachorro, as porcos foram embora do escritório. Mandaram fechar o bar, recolheram pro camburão vários clientes que não portavam documentos ou que não tinham conseguido se livrar das drogas a tempo e saíram em parada militar cidade afora. Cortaram o nosso barato. Uma grande noite desperdiçada.

Mais uma vez, depois da passagem devastadora da polícia, ficou um clima de desolação no ar. No bar sobraram só os funcionários, os amigos, os músicos e os que tinham pulado os janelões em busca das drogas jogadas no pátio, funcionários, amigos e músicos inclusos. O Ricardo tomou as providências necessárias pra fechar o bar e depois voltou pro escritório pra acertar as contas. Mesmo com o fim da festa antecipado pela invasão da polícia, a bilheteria tinha rendido uma graninha. Durante o fechamento o assunto era um só: o atraque. O operador do som, o Olair, que já tinha desmontado o PA e também queria a sua parte do butim, entrou. O Ricardo comentava:

Ainda bem que eu não tinha nada em cima porque dessa eu não escapava.

É, mas um baseado caía bem agora. Disse alguém.

Eu tenho um beque. Falou o Olair.

Uma onda de suspense se formou na porta e veio crescendo ao lado do Olair conforme ele caminhava pelo escritório percorrendo o mesmo caminho do cachorro e se abaixando em frente ao exato ponto do rodapé onde o bicho tinha grudado o focinho. A onda atingiu seu apogeu e arrebentou em espumas de puro pasmo quando o Olair deslocou um pedaço solto da madeira do rodapé e retirou um tubinho de filme do buraco. O Ricardo parou de contar a grana e olhou incrédulo pro Olair que abria o tubinho e virava na mesa um monte de pontas fedorentas enquanto perguntava:

Alguém tem colomy?

O Ricardo surtou. As espumas brotavam de sua boca numa arrebentação de ódio. Uma raiva canina que dava vontade de avançar e trucidar com dentes e garras o Olair.

Idiotaimbecilretardadocretinofilhadumaputa!

Não havia ofensa no mundo que pudesse apaziguar a raiva do Ricardo e ofender propriamente o Olair. O filha-da-mãe quase nos ferrara por causa de um tubinho de filme cheio de pontas fedorentas. Ainda bem que o policial tinha tirado o cachorro pra doido, porque o Ricardo nunca seria capaz de dar uma explicação satisfatória pra um tubinho de filme cheio de pontas fedorentas mocozado no rodapé do escritório:

Isso não é meu, seu guarda. Diria o Ricardo.

É o que todos dizem, meu filho. Diria o policial, algemando e conduzindo pro camburão o meu pobre sócio.

Depois de xingar o Olair com todas as ofensas constantes no dicionário e muitas outras que não estão lá e ainda outras que ele inventou na hora, o Ricardo foi se acalmando e a raiva acabou passando. Alguém conseguiu um colomy e o Olair fechou o baseado de pontas fedorentas. Tocaram fogo. Vagamente distorcida pelo torpor da fumaça concentrada, a imagem do cachorro latindo e do policial puxando-o pra trás não saía da cabeça do Ricardo que, de repente, explodiu numa gargalhada. Que piada. O cachorro era o animal mais bem treinado do pelotão.

*

Eles nunca mais voltaram. Ou talvez até tenham voltado, mas nenhuma outra visita foi tão marcante quanto a última. Assim sendo, não há na memória registro de outras aparições da polícia no bar.

Também reza a lenda que, no final da década de 90, o Departamento de Narcóticos, após anos de investigações, teria estabelecido um ‘mapa das drogas’, no qual eram assinalados os bares de consumo e de tráfico de entorpecentes na capital. Essa separação possibilitaria que a polícia concentrasse suas ações somente nos pontos de tráfico, onde o volume de drogas era maior. Fontes ligadas à polícia afirmam que o Garagem era considerado um ponto de consumo: somente um bando de doidões inofensivos, músicos, artistas e estudantes, cheirando aspirina, pó de mármore, sal de fruta. Coisa pouca.

Seja como for eles nunca mais voltaram. Ou melhor: voltaram mas não puderam entrar. Naquela que seria a noite do nosso 4º Atraque Histórico, por mais um desses lances de sorte ou iluminação, a nossa incrível disposição pra sair completamente ilesos das mais fudidas enrascadas, não abrimos o bar. Um pelotão inteiro de policiais civis e militares, em ação conjunta e fulminante pra coibir o consumo de drogas e a baderna nos bares e imediações da Barros Cassal, teve que coibi-los tão somente noutros bares e imediações porque nada havia a coibir no Garagem. Silencioso e escuro, portas fechadas, vazio. Ninguém dentro pra ser coibido.

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